Capítulo 86 - Brincadeira de criança II
10.
Emilly escorregou as costas pela parede áspera, com o frio da cerâmica quebrada incrustado em sua blusa úmida de suor. A capacidade respiratória não era um privilégio, mas um valor a ser avaliado: eram três segundos para inspirar e dois para expirar. A respiração funcionava como um relógio, apesar de cada batida do coração acelerar o tempo.
Continuou avançando. O corredor afunilava, e as lâmpadas piscavam em lapsos intermitentes, lançando sombras que se contorciam e se dissolviam antes de se tornarem ameaças reais. À sua direita, uma porta de ferro semiaberta gemia nas dobradiças como um lamento, como se estivesse convidando-a com um rangido doentio. Ela não entrou.
O Mephisto segue regras e não devem ser quebradas. No entanto, o medo humano constitui uma regra que nem ela podia ignorar.
9.
O som mudou. Já não era um farfalhar etéreo, e sim o deslizar de algo denso pelo teto acima dela. Emilly recuou dois passos e se virou, olhando atentamente pelas frestas das placas metálicas.
“Nada que eu possa usar por aqui também.”
Ela passou por outra porta, empurrou-a com o ombro e entrou em uma sala de figurinos. Manequins decapitados a observavam ameaçadoramente. Ternos dos personagens clássicos – Benny, Ruth, The King – pendiam de cabides como peles sem dono. O cheiro de naftalina era sufocante. Havia muito silêncio.
“Não vai ajudar.”
8.
O corredor à frente estava mais estreito. O teto podia ter ficado mais baixo ou era apenas claustrofobia? Não tinha certeza. De qualquer forma, o concreto local estava coberto por desenhos infantis, riscados com carvão e algo mais viscoso, formando padrões espirais que só faziam sentido se vistos de um ponto específico.
— O que é isso?
Ela tocou as paredes. Pó e umidade. O caminho dobrava para a esquerda.
O riso veio de trás dela.
7.
Seus passos soaram secos, denunciando o caminho que havia percorrido. Era a única escolha possível. O tempo era seu inimigo. Ela entrou em uma sala escura. A luz do corredor mal invadia o ambiente, e tudo o que se via era uma placa torta com a inscrição: “Arquivo 3B”, com gavetas arrombadas e fitas VHS espalhadas como entranhas de celulóide.
Mas aquele não era o lugar.
“Merda. O que eu posso fazer contra essa coisa? Nicholas teria uma resposta mais rápida.”
6.
Ela parou. Algo mudou novamente. Todos os sons cessaram, como se tivessem sido arrancados do mundo ou cortados em tiras finas. Isso não era bom.
Emilly pressionou a palma da mão contra a porta à frente. O metal estava quente. Atrás dela, os passos recomeçaram. Não eram pesados. Eles eram deslizantes. Mais pareciam dedos arranhando concreto, mas que não tinham fim.
“Ele já está vindo!? Porra, a contagem nem acabou!”
Não havia mais tempo para considerações. Apenas impulso. Girou a maçaneta com força, atirou-se porta adentro e trancou a respiração, na esperança de que isso impedisse de ser ouvida.
O odor a atingiu imediatamente. Parece que ela mergulhou no interior de uma máquina em estado terminal. Óleo consumido, carbono seco, poeira impregnada com a ferrugem acumulada por décadas. Estava em um ambiente de projeção. As máquinas, relíquias de um passado que jamais deveria ter perdurado até aquele momento, se posicionavam lado a lado como cabeças sem rosto, seus olhos de vidro quebrado refletindo os espasmos de luz que escorriam do corredor atrás delas.
As bobinas de filme estavam caídas dos suportes, espalhando-se pelo chão frio e irregular como serpentes de celulóide. Algumas ainda agarradas a carretéis oxidados, enquanto outras se desfaziam em tiras rasgadas, exibindo fragmentos distorcidos de cenas congeladas.
Emilly percorreu o espaço sem fazer ruído, silenciosa como uma sombra entre as sombras. Seus dedos iniciaram o trabalho ao abrirem portas, destravar mecanismos de encaixe e cortar cabos com um estalido seco de isolamento se rompendo. Seu cérebro já não seguia apenas o instinto de sobrevivência, mas adotava um raciocínio mais racional e lógico.
“Essas coisinhas podem ajudar. Apesar de serem Mephistos, ainda agem como se fossem um personagem dependentes da narrativa que representam.”
Fez uma pausa diante de uma mesa de rolos. Seus dedos trêmulos repousaram por um momento na superfície, onde perceberam as marcas do tempo gravadas no metal. O cheiro de cobre em chamas ardia em sua garganta.
“A transmissão depende de um receptor. O sinal precisa de um canal.”
Retirou um conjunto de fios dos circuitos de controle, expondo suas extremidades, e as envolveu com fita isolante retirada de outro cabo rasgado. O isolamento era provisório, mas duraria apenas alguns instantes. Depois, pegou uma das bobinas quebradas que estavam no chão, enrolou-a novamente e criou um circuito fechado ao cruzar a fita magnética com o cabo energizado.
Emilly tinha consciência do que estava fazendo – ou, pelo menos, estava convencida disso.
“Se ele se alimenta da narrativa, então ele depende do ciclo. O início, o meio e o fim. Se eu bagunçar a ordem, se eu cortar o arco antes do clímax… posso quebrar o circuito. Desvitalizá-lo.”
O problema era o onde e como.
Porém, já tinha a resposta esboçada em sua mente. Precisava de um ambiente simbólico que pudesse representar o núcleo do “jogo”, o local onde se reinicia e se estabelece a “base”. A famosa “casa” do pega-pega. Se localizasse essa “base”, talvez conseguisse prender o Mephisto ali ou impedir sua fuga.
Ela apertou o fio final em seu local improvisado e verificou a conexão com um estalido rápido. Uma centelha azul brilhou em seus dedos brevemente. Sinal positivo. Ele encerrou o circuito e reuniu os fios numa espiral tensa.
“Centro. Ponto de convergência. Todo jogo precisa de uma casa segura… E se eu transformar a casa dele em uma armadilha?”
5.
A contagem recomeçava. E ela não pretendia desperdiçar mais um segundo.
Emilly deslizou novamente para fora da sala, o corpo movendo-se com a precisão de um fio de alta tensão prestes a arrebentar. A respiração, antes errática, agora era um compasso ritmado de uma lógica fria.
Seu raciocínio era claro: Ruth não criara monstros apenas para caçar. Criara fantoches para preencher funções. O Mephisto queria brincar. A brincadeira era pega-pega. Mas sempre há uma base. Sempre existe um ponto onde o perseguidor não pode tocar.
Ela só precisava encontrar essa base antes que a contagem chegasse a zero de novo.
E então o viu.
A porta à frente. De metal azul-clara, a pintura lascada em faixas, tinha o nome:
“Arquivo 5C. Deve servir.”
Antes de dar o passo final em direção à sala, Emilly forçou o corpo a parar. Os dedos já roçavam a superfície fria do metal, mas ela não podia atravessar aquele limiar despreparada. A ideia estava formulada, o plano fazia sentido – ao menos nos parâmetros lógicos que aquele inferno distorcido ainda permitia –, mas faltavam as ferramentas na mão. O arsenal improvisado.
Girou os pés, permitindo que o olhar rápido traçasse novamente o mapa da sala de projetores, como se pudesse perceber as falhas na própria estrutura do local.
Retornou à sala com as antigas máquinas e ajoelhou junto à mesa de rolos onde havia feito a primeira conexão. A bobina de filme magnético, agora forçadamente enrolada no eixo, se assemelhava a uma serpente de celulóide selada com marcas de fita isolante. Com a mão esquerda, ela girou o carretel, verificando a integridade do improviso. A atração magnética naquele local era irregular, mas era isso que ela desejava.
Pegou o rolo e enrolou-o em torno do antebraço. Do compartimento inferior da mesa, arrancou outro conjunto de cabos de energia. Os fios de cobre expostos estavam manchados de oxidação, mas ainda eram condutores. Cortou as pontas com uma ferramenta de decapagem rudimentar que encontrou jogada no chão – um alicate de corte gasto, mas ainda funcional. Então, envolveu os fios em torno da bobina, garantindo que houvesse pequenas exposições nos pontos de contato, para criar nós condutores que pudessem servir como emissores.
— Uma gaiola de Faraday, ou melhor… um transmissor de ruído branco narrativo. — sussurrou, um sorriso breve e quase insano curvando seus lábios. Ela gostava do som daquilo. Era estúpido. E, no entanto, fazia sentido. — Eu amo isso.
Do outro lado da sala, havia um banco de capacitores antigos embutidos nas carcaças dos projetores. Aquelas máquinas usavam correntes contínuas para alimentar as lâmpadas de arco de carbono. Se restasse carga residual, poderia ser útil.
— Oh… Não tinha visto.
Emilly puxou o painel frontal de uma das unidades, ouvindo o estalo seco da ferrugem cedendo. Com cuidado, desconectou dois capacitores cilíndricos.
— Quanta coisa. — disse enquanto os encaixava no bolso lateral da calça.
Pegou dois extensos pedaços de fita magnética que estava no chão, trançou-os como fios de cobre e os amarrou na ponta de um dos cabos, formando uma alça. Estava construindo uma espécie de catodo móvel, porém o propósito não era transferir energia de um local para outro, mas sim gerar ruído e distorção em qualquer campo simbólico que ele alcançasse.
Por fim, Emilly reuniu tudo nos braços e respirou fundo e estalou os dedos.
— Hora de fazer o monstro perder.
Retornou ao corredor.
4.
“Ainda não acabou?”
Não importava. Ela tinha o tempo de um movimento.
Sob a palma de Emilly, a porta azul-clara rangeu, deixando seus dedos cobertos por um pó fino de ferrugem e tinta descascada. Mesmo no limite extremo da lógica e da sobrevivência, compreendia que a perfeição precede a pressa. Ele olhou uma última vez para o corredor vazio atrás de si. A falta de passos não indicava segurança, apenas sinalizava que o jogo estava se encaminhando para o seu desfecho.
Ela entrou no Arquivo 5C carregando a própria engenhosidade nos braços. O peso dos cabos, bobinas e componentes fazia seus ombros doerem, mas a dor era um lembrete claro de que estava viva. O ar dentro da sala tinha gosto de papel molhado e eletricidade. Prateleiras de metal corroídas formavam corredores estreitos, como colunas de uma catedral esquecida onde histórias morreram sem testemunhas. Nas paredes, monitores CRT quebrados olhavam para o nada, suas telas esmaecidas como olhos cegos.
Emilly não sentia medo. Não mais. O medo era uma função primitiva, uma reação desenhada para manter a integridade do corpo e da mente. Mas quando se habitava um mundo onde as narrativas moldavam a realidade, o medo tornava-se uma variável irrelevante. Ela precisava de algo mais sofisticado. E o que restava era controle. Controle sobre a própria função dentro daquela narrativa distorcida.
Caminhou até a mesa de edição localizada no centro da sala, um monólito analógico com botões desgastados e conectores oxidados. Ele removeu os vestígios de cabos antigos que ainda estavam presos em entradas específicas, como se estivesse desenterrando ossos de uma máquina morta. Realizou uma verificação rápida nos conectores: o pino terra estava desapertado. Isso possibilitaria uma rota de dissipação para a sobrecarga. Ela necessitava do caos. Era necessário causar barulho.
Ajoelhou-se e começou a montar o circuito improvisado. Ligou os capacitores que trouxera dos projetores antigos à entrada de força principal do painel. O circuito estava pronto para armazenar a carga por um curto espaço de tempo antes de liberá-la em forma de pulso irregular. Os capacitores antigos corriam o risco de explodir. Emilly aceitou essa possibilidade. Toda estrutura com propósito narrativo exigia um sacrifício. Se fosse o dela, que fosse útil.
Enquanto conectava os cabos de cobre trançados, fixando-os aos enroladores de fita magnética, ela revisava a lógica uma última vez. Ruth havia construído os Mephistos como criaturas que dependiam da estrutura narrativa para existir. Como predadores simbólicos que necessitavam de um palco coerente para caçar. Mas Emilly sabia algo que os outros ignoravam: toda narrativa é vulnerável à entropia. Ao ruído.
— U.E.C. devia me pagar por hora extra. — murmurou com um sorriso torto, os dentes à mostra.
Como Pesquisadora, U.E.C havia a treinado para estudar a natureza dos Mephistos, suas origens e como combatê-los de maneira eficaz. Não foi instruída para enfrentar monstros de tinta que devoravam os sentidos.
Conectou o último cabo, envolvendo a bobina magnética no eixo principal da mesa de edição. Prendeu com fita isolante onde era possível, e amarrou com as próprias tiras de tecido de sua blusa onde não havia outra opção. Ajustou os botões de frequência, sem a certeza de que funcionariam, mas confiando que a energia correria onde fosse chamada.
Antes de iniciar, respirou fundo. Em seguida, acionou o circuito.
O estalido do toque foi praticamente inaudível, mas ela o captou. A vibração se espalhou pelo chão, reverberando pelo corpo da mesa de mixagem. Após alguns segundos, o espaço foi invadido por uma frequência grave, um zumbido que se elevava em ondas. Um ruído branco de amplo espectro. A sequência formada por graves e agudos, intercalados, negava a própria noção de sequência.
Primeiro, um grave profundo, lento, como o ronco de algo adormecido há muito tempo. Depois, a frequência oscilou. Um zumbido se espalhou, crescendo em ondas que avançavam e recuavam, um ruído branco que preenchia o espaço com sua impossibilidade. As frequências se entrelaçavam, graves e agudos se chocando como marés em conflito, negando a lógica de qualquer sequência. E não era só a sala – aquilo penetrava nos ossos. Vibrava no esterno, batia no crânio por dentro. Tornava-se impossível distinguir o som da própria existência.
Do outro lado da porta, o mundo segurou o fôlego. Um silêncio absoluto caiu, denso, sufocante, como se toda a realidade estivesse esperando pelo próximo movimento.
— Te peguei, não foi?
Algo deslizou pela fresta sob a porta. Líquido, espesso, uma tinta negra derramada de um pincel que alguém esquecera de erguer. A massa gotejou para dentro, desafiando a gravidade, sugada para cima como se o chão a expulsasse. E então começou a tomar forma. Músculos e articulações se trançaram em espirais pretas, e quando o corpo se ergueu por completo, tremia. Como um holograma projetado sobre uma lâmina de vidro rachada.
O Mephisto permaneceu ali, os olhos fechados. Respirava como quem buscava recordar o próprio corpo. Quando os olhos, havia algo dentro delas que não estava antes. Confusão. E medo.
Um sorriso torto se abriu em seus lábios, exibindo dentes de um branco antinatural.
— O que você fez? — Sua voz saiu como se tivesse sido puxada através de um ventilador quebrado, arranhada e irregular.
O corpo dele já mostrava rachaduras. Fissuras finas se multiplicavam na pele irreal, linhas negras que serpenteavam como veias expostas em uma película prestes a queimar no projetor.
— Mudei as regras.
Emilly acionou o interruptor. Um clique seco e o inferno respondeu. O ruído branco escalou em frequência, agudo o suficiente para doer, para retalhar qualquer pensamento que tentasse sobreviver. O próprio ar vacilou. E então, ele começou a se desfazer.
O Mephisto cambaleou um passo à frente. Os olhos se reviraram. As rachaduras se alastraram em seu peito, braços e rosto. Como se o desenho dele estivesse sendo apagado à força.
— Isso não é justo! — A voz dele agora estalava como um disco arranhado. — Não era assim… que acabava…
Mas não era mais a criatura quem falava. Havia algo humano, afogado sob a máscara. Ele ergueu a mão, trêmula, e por um instante os olhos pareceram focar em um ponto além dali.
Os olhos dele vacilaram. E, por um momento, ele não olhou para Emilly. Olhou para si mesmo. Como se tentasse lembrar um nome. Um crachá. Um uniforme desbotado pendurado num armário barato. Uma mesa pequena ao lado de outras mesas pequenas. Cafés frios. Longas noites sob luzes brancas demais. E então, um corte. Um vazio onde nada mais deveria estar. Mas a lembrança ficou.
— … Joseph… — sussurrou, e a palavra saiu como um fio de ar, rouco, sem forma. O nome se perdeu quase imediatamente, como uma fita queimada.
As fissuras tomaram tudo, despedaçando seu rosto até que sobrassem apenas traços fragmentados de quem ele fora. O Mephisto se desfez. Não em sangue. Não em carne. Mas em linhas e manchas que explodiram para dentro, implodindo em um borrão escuro que foi tragado pela bobina magnética ao centro da sala.
Silêncio.
Emilly ficou ali, imóvel, a mão ainda no interruptor, o peito arfando. Sabia o que tinha visto. Sabia o que tinha ouvido. Mas não havia mais nada ali. Nem monstro. Nem homem. Só as vibrações finais de um ruído branco desaparecendo no vazio.
Desligou o circuito, mesmo que a mão tremesse. A corrente cessou. O som morreu. E com ele, o que restava daquele homem.
Ela caiu de joelhos, a respiração rasgando a garganta, o peito pesado como chumbo. O suor misturava-se com lágrimas que ela não tinha se dado conta de que estavam ali. Mas não era medo. Não era dor. Era alívio. E um peso que talvez nunca fosse embora.
No chão, algo chamou sua atenção. Um pedaço rasgado de storyboard, gasto, manchado. O traço de Ruth estava ali. Não como ela conhecia agora, mas como fora desenhado antes de tudo desmoronar. Um homem de olhos calmos e sorriso tranquilo.
A legenda à mão dizia:
A chave deve ser aberta por quem compreende o jogo.
Emilly respirou fundo, um som entre o soluço e a risada.
— Eu compreendo.
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