Capítulo 88 - Ursinho filho da put*
Bear se mexeu. Ou tentou.
O primeiro movimento foi desajeitado, um leve balançar de corpo enquanto tentava sair do armário estreito onde se encolhera por sabe-se lá quanto tempo. O segundo foi uma catástrofe completa. Suas patas escorregaram na pilha de papéis espalhados pelo chão, e num instante, despencou para frente, aterrissando com um baque que fez algumas folhas voarem no ar.
Sam deu um passo para trás.
— Nossa! Você viu isso?
O baque devia ter sido suficiente para deixá-lo imóvel por alguns segundos, mas, em vez disso, Bear começou a mudar. E mudar rápido.
Seus contornos arredondados se expandiram como se alguém tivesse soprado ar em seu interior. As patas grossas se esticaram e seu o tronco se ampliou. Nicholas ergueu a cabeça devagar, acompanhando o crescimento do urso até perceber que agora precisava inclinar o pescoço para olhar diretamente para ele.
— Tá de sacanagem.
Erguendo as patas dianteiras animadamente, Bear disse em um tom absurdamente amigável para alguém do seu tamanho:
— Vocês me encontraram!
Sam piscou.
— Hã?
— Vocês me encontraram! — repetiu, balançando as orelhas.
O urso deu um passo à frente e o chão tremeu ligeiramente sob o seu peso. Por um impulso imediato, Nicholas sentiu o desejo de sacar novamente da arma, ainda que se tenha contido. O urso não dava sinais de representar uma ameaça nem a sua voz, com uma energia infantil inegável, permitia ignorá-lo.
Bear piscou algumas vezes, como se tentasse organizar os próprios pensamentos. As orelhas redondas se mexeram, os olhos brilhando com um misto de confusão e expectativa.
— Espera… vocês me encontraram primeiro? Isso significa que eu ganhei, né?
— Como assim ganhou? — Sam perguntou, arqueando uma sobrancelha.
Bear se animou ainda mais, balançando as patas pesadas.
— Eu tava brincando de esconde-esconde com o Cooly! Ele disse que nunca me encontraria, então escolhi o melhor esconderijo de todos! — Ele estendeu os braços, esperando que todos admirassem a sua genialidade. — Mas aí vocês me acharam primeiro!
A alegria era quase cativante, se não fosse tão… errada.
Nicholas cruzou os braços, franzindo o cenho.
— Certo… e quando exatamente essa brincadeira começou?
Com a cabeça inclinada para o lado, os seus olhos moviam-se em busca de uma resposta em algum canto distante da memória.
— Hmm… faz um tempão. Muito, muito tempo. Mas não sei quanto.
Ofereceu um sorriso tímido, mas a sua voz falhou no final da frase. Apenas naquele momento estava a processar o peso do que tinha acabado de dizer.
— E o Cooly? — Sam apertou os lábios. — Ele nunca voltou pra te procurar?
Seus olhos se moveram rapidamente pelo ambiente, evitando encarar qualquer um deles diretamente. As orelhas, antes empinadas, baixaram um pouco.
— Ele… ele disse que voltaria. Disse que não demoraria. — Mexeu os dedos, nervoso. — Mas acho que… talvez ele tenha demorado um pouquinho mais do que o esperado…
Sam soltou um suspiro longo, levando as mãos à cintura.
— Ah, cara… sinto te dizer, mas acho que ele trapaceou no jogo.
O eco da frase ficou no ar, num tom amargo que nem o próprio Sam esperava ter usado. Bear abriu a boca, quase a protestar, mas não disse nada. A sua expressão oscilou entre a dúvida e a insistência em acreditar no que queria.
— Cooly não faria isso… ele é meu amigo…
No entanto, algo no seu olhar deixava transparecer instabilidade. Uma ligeira tremedeira no canto da boca, uma relutância nas palavras.
Nicholas observou o urso por um longo momento. Aquilo estava profundamente errado, algo que ia para além de uma simples brincadeira esquecida no tempo.
— Se ele nunca voltou, por que você continuou esperando?
Bear arregalou os olhos, surpreso com a pergunta.
— Porque… eu tinha que esperar. — A resposta saiu rápida, automática, como se fosse um fato inquestionável. — Se eu saísse antes de ser encontrado, eu teria perdido…
Nicholas franziu o sobrolho, observando as pilhas de esboços amassados e personagens esquecidos à sua volta.
— Mas, se ninguém nunca te achasse…?
Bear piscou, como se nunca tivesse considerado essa possibilidade. Um silêncio estranho tomou conta da sala.
— Aí… — Ele franziu as sobrancelhas, a voz baixando. — Eu teria sido esquecido?
Por um instante, Nicholas não moveu um músculo. A questão flutuava no ar como um fio solto, prestes a desfazer-se na ausência de um ponto de apoio. Bear fitava-o, ansioso, como se a resposta que procurava fosse maior do que ele próprio poderia compreender. Havia algo de inquietante naquela espera, uma fragilidade implícita no simples fato de ainda estarem ali, de existirem.
O esquecimento era uma força tão absoluta quanto a própria realidade daquele lugar. Nada precisava ser destruído para deixar de existir. Bastava ser ignorado, relegado a um canto qualquer da memória, até se dissipar por completo. Não era um apagamento abrupto, mas um processo gradual, um desgaste que acontecia sem alarde, como uma vela que se consome até sobrar apenas cera fria.
Nicholas abaixou os olhos para os esboços espalhados pelo chão. Traços interrompidos. Formas incompletas. Personagens que nunca superaram uma ideia efémera, aprisionados num espaço onde não estavam presentes nem ausentes. Eles não estavam mortos, mas também nunca realmente viveram. A distinção entre persistir e desvanecer não era determinada pelo tempo, espaço ou substância, mas sim pela recordação. Tudo o que permanecia na memória tinha peso e durabilidade. Tudo o que se dissipava na obscuridade fazia-se sem deixar rasto.
— Isso aqui é o ciclo.
Sam estava certo. Se aquele lugar obedecia a um ciclo, se o estúdio operava sob um princípio maior do que as histórias que produzia, então cada elemento dentro dele estava preso a uma lógica específica. Tudo seguia padrões e regras internas. Tudo possuía um fio narrativo que sustentava sua coerência. O que acontecia com aqueles que não eram mais necessários para o enredo. O que acontecia com aqueles que não tinham função dentro do roteiro.
Bear esperou por Cooly até ao limite do que era possível suportar. Teria acabado por se apagar, como um nome escrito na areia levado pela maré, um livro cuja página nunca mais seria aberta.
Nicholas sentiu o pensamento arrastar-se pela sua mente, denso e corrosivo. A existência dos Mephistos estava sujeita à mesma regra, tornando-a frágil e instável, condicionada a uma força que estava além do próprio desejo de viver.
Não importava o que desejassem, nem o esforço que fizessem para mudar a sua situação. Se ninguém se lembrasse deles ou desejasse a sua presença, seriam apagados. E o mais perverso dessa lógica era que o desejo não precisava de ser necessariamente afetuoso. O medo era um meio de lembrar. O ódio possuía uma ligação tão intensa quanto o amor.
A existência deles era uma negociação constante entre ser lembrado e ser apagado. Bear sobreviveu porque esperou. Porque, de alguma forma, ainda havia alguém para encontrá-lo. Se tivesse esperado tempo demais, talvez nem sua sombra restasse.
Com essa compreensão, Nicholas disse:
— Você não teria se perdido, Bear. Só teria desaparecido.
O sorriso dele, até então sutilmente escondido no canto dos lábios, abrandou, semelhante a uma vela a balouçar ao sopro do vento. Fechou os olhos por um momento, procurou algum indício tangível da sua própria existência. Ao voltar o olhar para Nicholas, notava-se uma insegurança, um desconforto nas palavras.
— Mas eu sou real… Eu sou real, certo?
Com o olhar desviado e os ombros enrijecidos, Sam não parecia querer estar ali. Talvez porque não quisesse estar ali. Aquela conversa fazia-o encarar algo que preferia ignorar.
— Se você tá aqui agora, então sim, você é.
Bear balançou a cabeça devagar, sem saber ao certo se acreditava na resposta, mas tentando absorvê-la. Os seus dedos, grandes demais para o corpo pequeno, apertaram-se à volta da barriga redonda. Olhou para as próprias mãos, virando-as de um lado para o outro, examinando cada detalhe do pelo surrado, em busca de uma confirmação.
— Eu não deveria estar aqui, né? — murmurou.
— Quem decide isso?
Lentamente, um novo brilho acendeu-se em seus olhos.
— Meu mestre, é claro.
A sala, já abafada pela poeira e pelo cheiro velho de papel mofado, pareceu se comprimir um pouco mais ao redor deles.
Nicholas franziu a testa.
— Seu mestre?
— Aquele que nos deu isso. Nosso corpo. Nossos olhos. Nossa voz. Nossa alma.
Sam mexeu nos esboços espalhados pelo chão, tentando parecer distraído, mas seus ombros estavam rígidos.
— Ah, então foi ele que deu tudo isso pra você?
— Sim! — respondeu, entusiasmado. — Foi generoso. Muito generoso.
Ele se afastou dos dois, dando passos largos, meio desajeitados. Suas patas esbarraram em uma pilha de papéis velhos, fazendo com que alguns deles voassem no ar antes de descerem em espiral pelo chão. Nicholas abaixou-se e pegou um deles.
Era um desenho de Bear. Ou melhor, de algo que um dia tentou ser. O esboço mostrava um urso menor, os traços ainda inacabados, o olhar vazio, sem alma. A cabeça era um amontoado de riscos, como se alguém tivesse tentado refazê-la várias vezes, sem nunca chegar a uma versão definitiva.
Nicholas ergueu o papel para Bear ver.
— Isso aqui era você?
O urso inclinou-se para frente, examinando o desenho.
— Eu era só um rascunho, mas meu mestre me viu. Ele me deu algo além do papel. Agora eu existo.
— Isso não me parece generosidade. — disse com uma rápida análise da folha, os traços apressados, o jeito como o personagem fora esboçado e descartado. — Me parece que ele pegou o que já estava jogado fora e resolveu reaproveitar. Como quem encontra um brinquedo quebrado no lixo, remenda do jeito que dá e decide que tem uma nova função para ele.
O sorriso dele tremeu por um instante, mas logo voltou, firme, como se não tivesse ouvido.
— Mas não é isso o que todos querem? Viver?
Nicholas dobrou o desenho e jogou no chão.
— Não quando a vida depende da vontade de outra pessoa.
Os seus pés grandes arrastavam-se pelo chão, fazendo com que folhas soltas e traços esquecidos de personagens que nunca tiveram uma história se deslocassem. A sua expressão, no entanto, permanecia brilhante, iluminada por uma verdade que mais ninguém compreendia.
— Nós fomos salvos. O mestre nos deu vida, mas foi Lilian quem nos permitiu existir.
Nicholas apertou o papel em sua mão. O nome reverberou em sua mente como um eco distante, misturado ao cheiro da tinta ressecada e ao murmúrio silencioso do corredor que haviam deixado para trás.
— Lilian. — O nome escapou, como se precisasse ser dito para fazer sentido.
O urso assentiu, a arrastar-se sobre o chão enquanto recolhia um desenho amarrotado, que tentava alisar com as suas grandes patas.
— Ela acreditou em nós. Nos viu de verdade. — Seus olhos levantaram-se para encará-lo. — Quando ela nos olhou, não fomos apenas rabiscos perdidos ou personagens descartados. Fomos algo mais. Algo real.
Sam soltou um suspiro, os dedos tamborilando impacientes contra a lateral da perna.
— Isso é muito bonitinho e tudo mais, mas você quer dizer o quê, exatamente? Que essa garota fez vocês existirem só porque acreditou forte o suficiente?
— Você nunca sentiu que algo que não existe… existe? — Ele abriu os braços, apontando para tudo ao redor. — Que a memória de algo pode ser mais forte do que a coisa em si?
Nicholas não respondeu. Sabia o que era sentir a presença de alguém que não deveria mais estar ali.
— As histórias precisam de alguém para ouvi-las. Se ninguém se lembra, elas desaparecem. Lilian nos ouviu. Nos viu. Nos deu um lugar onde ainda podíamos ser.
Ele voltou sua atenção para o desenho que segurava, a ponta do papel já começando a desgastar-se entre suas garras.
— Mas ela se foi. E agora… agora é só o mestre que restou.
O entusiasmo na sua voz perdeu-se por um instante, tal como uma linha de tinta interrompida no meio de um traço.
— E o que o seu mestre quer?
O urso apertou o papel com mais força, os dedos grossos marcando vincos profundos no desenho.
— Ele quer que a gente continue existindo.
Mas havia algo mais. Uma coisa que Bear não dizia. Tudo o que ele talvez não soubesse exprimir em palavras.
Nicholas olhou para o conjunto de desenhos espalhados pelo chão, para as figuras inacabadas, deixadas por personagens que nunca chegaram a ser completadas.
Ele inspirou fundo e cruzou os braços.
— Seja lá quem for, esse mestre quer que vocês continuem existindo. — Sua voz saiu carregada de incredulidade. — E desde quando Mephistos têm escolha sobre isso?
Bear piscou, surpreso.
— Mas não é assim para todo mundo? — Inclinou a cabeça. — Você também não precisa fazer o que precisa pra continuar vivo?
— A diferença é que eu não preciso de ninguém pra me manter de pé. Deus ou porra nenhuma.
O urso não disse nada, mas os seus olhos castanhos observavam-no atentamente, com algo a tentar compreender que nunca antes tinha considerado.
— Mephistos não existem porque querem. Eles existem porque alguém os deixou escapar. Porque alguém se esqueceu deles tempo demais ou porque algo pior os puxou pra fora. E, uma vez aqui, eles fazem o que precisam pra continuar existindo.
Ele se abaixou, pegando um desenho amassado daqueles rascunhos inacabados.
— O problema, Bear, é que continuar existindo nem sempre significa continuar sendo quem você era.
— Mas eu sou eu.
— Agora. — Nicholas jogou o papel de volta no chão e pisou em cima. — Mas e amanhã? E daqui a um mês? Seu mestre quer que você continue existindo, mas como? Com que propósito?
— Eu… não sei.
— Claro que não sabe. Porque essa decisão nunca foi sua.
Com o olhar desviado, o urso apertou o desenho nas mãos. A atmosfera entre eles ficou densa e pesada.
Sam suspirou alto, passando a mão pelo rosto.
— Tá. Isso aqui tá ficando filosófico demais. Você quer só ferrar com a cabeça dele ou tem um ponto pra chegar?
Nicholas manteve o olhar sobre Bear por um instante antes de se voltar para Sam.
— Mephistos são restos de algo que já devia ter sumido. E quando você dá poder pra algo que devia ter desaparecido, você nunca sabe no que vai se transformar.
A criatura encolheu-se levemente.
— Mas eu não sou uma coisa ruim.
Ao ver que Sam não dizia nada, Nicholas ergueu as sobrancelhas, à espera que ele interviesse. Tal não sucedeu. Então, ele prosseguiu:
— Não foi um Mephisto como ele que matou eles?
O corpo do garoto Sam enrijeceu. Um músculo em sua mandíbula se contraiu.
— Isso não tem nada a ver com…
— Tem tudo a ver. Você se lembra de como aconteceu? Do que sobrou? De como eles…
Sam cerrou os punhos.
— Para.
Bear olhou de um para o outro, confuso, inquieto.
— Mas eu não sou como eles.
Nicholas não desviou o olhar. O seu rosto conservou-se impassível, apesar da rigidez da sua postura e da acuidade das suas palavras, de modo que era impossível ignorá-las.
— Por enquanto. Você sabe quantas histórias começam assim?
Desnorteado, Bear piscou os olhos. O brilho de ingenuidade no seu olhar ficou ofuscado, por entre uma sombra que se espalhava por trás deles. Deu um olhar a Sam, talvez em busca de alguma reafirmação, algum desvio que o reconduzisse à segurança de uma lógica que fizesse sentido. Não obteve qualquer resposta.
— Você acha que seu mestre mantém vocês por bondade? — continuou. — Por afeto?
O Mephisto abriu a boca. A resposta estava ali, pronta para saltar, mas, por alguma razão, demorou mais do que deveria.
— Ele nos salvou. — murmurou, a voz menos firme do que gostaria.
— Ou talvez só esteja colecionando vocês.
Desta vez, o olhar do urso não falhou. Quebrou.
Era como se as palavras de Nicholas tivessem rachado alguma coisa dentro dele, uma superfície que sempre esteve lá, mas que nunca fora tocada com tanta força. Bear piscou rápido, como se tentasse afastar um pensamento incômodo, mas ele já estava ali, infiltrado, corroendo as certezas que ele nem sabia que tinha.
— Isso não é…
A frase esfarelou-se antes de ganhar forma. Ficou suspensa no ar, vazia, sem força para continuar. Talvez porque ele não soubesse. Talvez porque nunca tivesse ousado perguntar.
Um tremor rastejou pelo corpo massivo da criatura, espalhando-se dos dedos grossos até os ombros largos. Os olhos fundos brilhavam, estranhamente úmidos, carregando algo incômodo, algo que não se acomodava bem ali dentro. Os braços se apertaram contra o próprio tronco, como se tentassem conter uma coisa faminta sob a pele felpuda, mas a luta era em vão.
O ar ao redor se adensou. Um estalo ressoou em seu peito, seco como um galho cedendo sob um peso esmagador. As garras rasparam contra a própria carne de pano, pequenos movimentos espasmódicos, até que a primeira contração fez suas costas se arquearem bruscamente.
— Sam. Atrás de mim. Agora.
Bear caiu de joelhos, ou o que ainda se assemelhava a joelhos. Sua estrutura óssea estava se desfazendo dentro do próprio corpo, rearranjando-se de forma caótica, como uma impressão desalinhada sendo rasgada e remontada em sobreposições grotescas. A coluna expandiu-se em espasmos, alongando-se em ângulos errados, cada vértebra estalando como madeira velha prestes a ceder. A pele peluda inflou e retraiu com contrações violentas, como se algo dentro dele tentasse escapar.
— Eu sou real… eu sou…
A voz veio distorcida. Baixa e grave demais para se encaixar na boca que a pronunciava.
Nicholas já havia visto aquilo antes. Sabia que, em poucos segundos, a consciência original seria irrelevante. Bear não era mais um urso. Não era mais nada que pudesse ser definido dentro de um espectro natural de existência.
A pistola já estava em suas mãos.
— Se mexe, Sam, caralho.
Ele o agarrou pelo braço e o puxou para trás.
— Vou tentar atrasar essa merda.
O estrago tinha de ser limpo. Bastante para obliterar aquela sala e tudo o que nela existia sem pôr em risco a estrutura restante. Não podia simplesmente derrubar tudo; a destruição tinha de ser seletiva.
Nicholas examinou o espaço com atenções aos objetos, à disposição dos mesmos e aos materiais abandonados, tudo o que pudesse ser usado a seu favor.
Os seus olhos encontraram o que precisavam.
No fundo da sala, prateleiras cambaleantes seguravam um estoque descuidado de frascos de tinta a óleo, alguns ainda lacrados, outros escorrendo resíduos coloridos pelos gargalos. O cheiro a solvente espalhava-se no ar, entre o mofo e o pó. Glicerina, terebintina, acetona constituem uma combinação altamente inflamável. Bastava uma ignição e o espaço seria transformado num forno.
Com a pistola direcionada para onde queria, disse:
— Adeus, ursinho filho da puta.
O disparo rompeu o ar com um estrondo seco.
A bala atravessou o espaço e perfurou a prateleira no fundo. O impacto fez com que os frascos tombassem em sequência, espatifando-se contra o chão e despejando um banho de líquidos oleosos e viscosos sobre os papéis. Em segundos, o cheiro forte de solventes saturou o ambiente, que ficou pesado com a volatilidade química.
O segundo disparo aconteceu logo a seguir. Desta vez, Nicholas apontou à luminária antiga que estava presa à parede. O projétil acertou no vidro, que explodiu em cacos, e espalhou fagulhas que caíram numa poça crescente de substâncias inflamáveis.
O efeito foi imediato.
Nicholas não esperou para ver a explosão. Agarrou Sam pelo braço e lançou-se para fora da sala, martelando as botas contra o chão enquanto os vapores incendiários entravam em combustão atrás deles.
Uma fração de segundo depois, todo o ar foi sugado para o epicentro do incêndio. O colapso atmosférico puxou tudo para dentro, criando um vácuo súbito antes da onda de choque se expandir para fora.
A detonação veio como um trovão.
O corredor iluminou-se com o clarão incandescente. O calor atingiu-os em uma parede ardente, lamberam-lhes as costas com um abraço feroz, vaporizando qualquer resquício de ar frio ao redor. As vibrações percorreram o chão, deslocando tábuas soltas, espalhando detritos pelo espaço confinado.
Eles viraram a esquina e ficaram atrás de uma pilha de equipamentos abandonados. Nicholas expirou lentamente, com um ligeiro sabor a fumo a impregnar-lhe a garganta.
— Mephistos nunca mudam.
O fogo estalava além da curva, devorando os restos do que um dia foi.
Sam permaneceu no chão, imóvel, os olhos presos à incandescência do desastre que deixaram para trás.
— Isso foi… maluquice.
O agente lançou-lhe um olhar de soslaio. O rapaz tremia, os seus músculos estavam tensos, a respiração pesada, mas os seus olhos refletiam um brilho que ele reconhecia bem. O tipo de olhar de quem sobreviveu ao impossível e percebeu, talvez pela primeira vez, que não deveria estar vivo.
— Deixa de frescura, você também tá nisso agora. — Ajeitou a postura e verificou o carregador da arma. — Cadê Emilly? Eu quero colocar um fim nisso.
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