Capítulo 85 - Começo do fim
O assoalho de madeira rangia sob as botas, mostrando que o lugar memorizava cada passo que alguém ousasse repetir ali dentro. A luz da lanterna desenhava contornos ocres sobre os móveis cobertos por poeira, e no centro do cômodo repousava a mesma boneca que dera início a tudo.
Emilly respirou fundo. O cheiro de tinta velha, mofo e verniz adormecido estava suspenso no ar, como um hálito que se recusava a desaparecer. Não havia barulho, apenas o silêncio bruto, do tipo que faz os pulmões parecerem estar sendo pressionados à força.
Ela se aproximou devagar e ajoelhou-se diante do brinquedo. Retirou devagar uma das luvas pretas que cobriam suas mãos e, em seguida, fez o mesmo com a outra. O gesto tinha um quê de cerimonial. Expor a pele sempre colocava em risco a observação.
Ergueu os dedos desprotegidos à altura dos olhos. As linhas da palma começaram a brilhar com um tom âmbar suave, como veias plenas de luz líquida. Era uma energia pulsante, viva, mas contida. Um dom cultivado com disciplina e sofrimento. A respiração desacelerou. O tempo ali dentro desacelerava também.
Não precisava tocá-la. Sua mão ficou a alguns centímetros de distância da boneca. Um campo invisível respondeu imediatamente. Uma resistência tênue, tal qual o calor que sobe de uma estrada no verão. Começou a se formar um fluxo de dados sutis – impulsos elétricos, vestígios térmicos, memória vibracional. A energia da boneca era incoerente, dividida entre presença e ausência.
— Você é pequena demais pra conter tanto.
Fechou os olhos. A percepção tática invadia como ondas de sons abafados, sensações táteis embaralhadas e emoções condensadas em fragmentos que não lhe pertenciam. Sua mente deslizou pela superfície emocional da boneca como dedos sondando rachaduras em uma parede antiga. Havia um caos quieto ali dentro. Seu eu interior pressentia os limites da matéria. Além da raiva controlada, existia também tristeza e uma confusão que soava como infantil. Era como se uma mente estivesse presa em um ciclo, sem saber o motivo.
— Se o Protocolo de Transposição foi realmente aplicado aqui… então o Joseph não queria só imitar a vida. Ele tentou recriá-la. Não bastava um autômato com lembranças. Ele quis a consciência. E uma consciência não cabe inteira num objeto sem consequência.
Abriu os olhos devagar. As faíscas em sua mão se dissipavam, um calor residual ainda vibrando sob a pele.
— E foi isso que ele ofereceu. Uma vida plena. Mas ninguém pergunta se a alma quer ser transplantada. Ninguém pensa se ela vai caber no espaço que sobrou.
Afastou-se lentamente.
— Esse tipo de transposição… é rudimentar, ainda que engenhoso. Você pode prender uma alma, mas não pode domá-la. Pode selar uma consciência, mas ela ainda vai gritar, mesmo que ninguém escute.
Olhou mais uma vez para a boneca. Não com medo. Mas com uma culpa involuntária, como quem vê uma criança forçada a carregar a dor dos adultos.
— E alguém… alguém realmente achou que dar um corpo de porcelana pra uma criança morta ia curar o luto?
Respirou fundo.
— Jake não sabia o que estava fazendo quando chutou você. Mas o ritual sabia. Sabia que tinha sido violado. E respondeu à altura.
O chão estalou ao fundo, mas continuou de pé, como uma sentinela em um campo que ainda queimava por dentro.
— Se tem mesmo uma alma aí dentro… ela não tá dormindo. Ela tá esperando. E se esse ciclo for reativado, se alguém mexer de novo, vai ser muito pior.
Deu dois passos para trás. A boneca estava mais distante, embora também parecesse mais… acordada. Talvez algo tivesse entendido que fora visto naquele diálogo silencioso. Sentido.
— Eu vou tentar fazer isso direito. Não porque tenho certeza que consigo… mas porque não consigo mais ignorar.
Falava com um tom baixo, mais como se pedisse permissão à boneca, à Lilian. As palavras saíam com ternura, feito se ela estivesse falando com alguém que ainda respirasse. E talvez, em certo sentido, assim fosse.
— Eu sei que o que fizeram com você… não foi por mal. Mas também não foi por amor. Foi por ego. E isso contamina tudo.
Estendeu os dedos em direção ao chão. Uma leve tremulação percorreu o ambiente – indetectável aos olhos comuns, mas visível para ela, que sentia o mundo não por cima, mas por dentro. Pequenas ondulações surgiram ao redor da boneca, por um breve segundo fazendo com que o chão se tornasse líquido. Era a energia negativa sendo convocada.
O poder de Emilly nunca fora ornamental. Ele era visceral, profundamente entranhado nos fragmentos sombrios das coisas. E não tirava força da luz, mas daquilo que as pessoas escondiam, rejeitavam ou deixavam apodrecer. Tinha aprendido, por isso mesmo, a ser cuidadosa. A maturidade de quem conhecia os riscos. Também os limites.
Os olhos dela suavizaram, mas o rosto permaneceu tenso. Sentia a energia densa começar a responder — não com violência, mas com uma presença que se manifestava devagar, como uma sombra tentando lembrar como era a luz.
— Sabe… às vezes, eu penso que meu dom não foi feito pra curar. Ele só existe pra me lembrar de tudo que não cicatriza.
A mudança em sua pele não foi brusca, e sim orgânica, à maneira de um tecido reagindo à umidade. O dorso da mão nua escureceu gradualmente, adquirindo uma coloração híbrida entre o vinho profundo e o azul encharcado que só a pele marcada conhece. Os vasos próximos à superfície se dilataram como se algo ali respirasse por dentro, e por entre os poros começaram a despontar linhas sutis, filamentos escuros que se arrastavam qual raízes à procura de substância. Era assim que seu poder despertava em sintonia com o que o ambiente escondia.
Ela não tocava o círculo, sabia que não podia. Porém, bastava a proximidade para que o campo energético em torno da boneca se revelasse a seus sentidos. O ar se tornava mais denso e saturado por resíduos espirituais que ondulavam em frequência irregular. Ondas frias ressoavam sob o chão, como pulsos subterrâneos — vestígios do que foi sacrificado.
Emilly esticou os dedos no limite da linha de contato, com atenção no que via. Sensitiva, via pequenas partículas negativas se elevando, invisíveis para qualquer outra pessoa, mas que, para ela, formavam padrões flutuantes – fractais de sofrimento coagulado. Com a respiração cadenciada, permitia que essas correntes fossem absorvidas pela pele viva, em uma transmutação que não curava, mas decodificava. Essa era sua capacidade de ler a dor, entender suas camadas e, com sorte, redesenhá-las.
— Seu pai tentou te trazer de volta… — murmurou, com a voz rouca, baixa, como se falasse com alguém adormecido. — Mas ele usou só o que sobrou dele. E, às vezes, o que sobra da gente não é amor. É desespero. É culpa que fermentou demais.
Fechou os olhos por um instante. A energia negativa atravessava suas terminações nervosas lentamente, testando sua resistência. Aos poucos, a história por trás da criança se desenrolava – imagens partidas, sensações incompletas. Um perfume infantil misturado ao odor de óleo e ferrugem. Gritos abafados, que não eram de sofrimento, mas de insistência. Era uma presença querendo permanecer, mas sem saber mais como.
Uma lágrima escorreu espontaneamente. Não foi fruto da pena, mas da empatia involuntária que surgiu junto com a leitura. Tocar com a alma fazia com que Emilly se sentisse como se partes dela fossem trocadas por fragmentos do outro. Mas, naquele momento, ela queria sentir tudo. Porque sentia que aquilo pedia atenção.
— Será que alguém te perguntou se você queria voltar? — falou, como se estivesse em uma conversa íntima e antiga. — Ou só acharam que sabiam o que era melhor pra você?
A boneca permaneceu inerte. Mas a energia em volta reagiu. O laço azul em sua cabeça repuxou-sel. Um chiado fino se espalhou pela sala, reverberando pelas paredes. Era um som descompassado, como a respiração de alguém que há muito deixou de ter pulmões.
Emilly manteve a calma. Já sentira coisas piores.
— Você ainda tá presa. — sussurrou, agora mais para si do que para a boneca. — Presa na tentativa de alguém que não soube deixar você partir.
O calor envolveu o braço, subindo em espirais lentas até tocar a base do pescoço, esmagando-a como dedos mornos tentando arrastá-la junto. Mas ela conhecia seus próprios contornos. Sabia até onde ir antes de se perder. Sua consciência se ancorava no presente, na escolha. E a escolha dela era libertar, não carregar.
De repente, como um fio que se rompe no meio da tensão, o fluxo cessou.
Não houve alarde. Nem explosão. Apenas o silêncio. Um silêncio repentino, como o de um cômodo onde alguém acabou de desligar um aparelho que nunca fora percebido ligado. A pulsação escura que corria por seu braço se dissipou. O frio desapareceu, e a energia que antes fluía por sua pele em forma de onda mineral dispersou como se nunca tivesse existido.
A mente de Emilly vacilou. Ela se endireitou de repente. Por um segundo, sentiu-se só, não fisicamente, mas em uma dimensão distinta. Isso a fez se sentir como se algo dentro dela houvesse sido desconectado à força, quebrando uma ponte em pleno uso. Suas mãos tremiam levemente.
— Mas que merda…?
Não era raro que energias negativas resistissem ao contato, mas aquilo não era resistência. Foi uma negação. Um corte limpo.
Então, a voz veio.
— Você sabe o que acontece quando se puxa um fio que sustenta uma casa inteira?
Emilly girou o rosto devagar.
Algo estava sentado no encosto de uma cadeira tombada, uma perna cruzada sobre a outra. O seu rosto tinha algo de estranho, indefinido — não pela ausência de traços, mas pela combinação desarmônica de uma beleza antiga com algo que não era bem humano. Um sorriso esparso cortava o rosto como um rasgo em tecido muito justo. Os olhos estavam abertos demais, não por surpresa, mas por hábito.
— Se puxa, tudo desaba.
Esta manteve a postura, mesmo que por dentro o corpo protestasse. O tipo de presença que aquilo exalava não era só energética. Era uma distorção. Um deslocamento. Como se a realidade tivesse de se curvar um pouco para acomodá-la.
— Você finalmente apareceu, Ruth.
A presença de Ruth não era apenas uma perturbação energética comum. Era uma anomalia estrutural, não no sentido físico, mas no campo de densidade psicoafetiva que sustenta os fluxos energéticos de um ambiente. Sua existência distorcia as regras locais, transformando o espaço e forçando-o a se reorganizar para acomodá-lo. A sala reagia, imperceptivelmente à primeira vista, mas de forma clara para quem sabia sentir diferenças mais agudas nos ângulos, atraso no som e oscilação da luz em pequenas frequências incompatíveis com a realidade objetiva.
— Eu preferia quando esse nome ainda pertencia ao personagem. Na época, eu só morria de vez em quando. — O sorriso se ampliou, torto. — Mas você sabe como é. Aqui, as ideias pegam mais forte que as pessoas.
A agente sentia a resistência do próprio corpo tentando recuar, quase como se seus músculos soubessem que era preciso manter distância, que ali não se aplicavam as regras humanas. Mesmo quando os ares circundantes eram grossos demais para se respirar com naturalidade, ela permaneceu firme.
Ajustou a luva da mão esquerda de maneira instintiva. Foi pela contenção, não pelo toque. Era preciso manter o controle. Ruth absorvia o que estava aos seus arredores vorazmente, tal qual uma mancha de óleo se espalhando por água parada.
A energia dele abafava tudo, desde o lamento da boneca até o chamado do ritual, englobando igualmente os vestígios de Lilian, os quais, antes pulsantes sob a superfície, ora se faziam perceber por uma densidade sem frestas.
— Você drenou o campo todo. Não pra impedir. Só… porque não sabe existir sem ocupar tudo.
Ruth deu uma risadinha nasal.
— Acha que isso aqui é sobre escolha? — Ele ergueu o queixo, encostando o queixo na mão apoiada no joelho. — Eu virei o que sobrou depois que as escolhas acabaram.
Sem dizer nada, ela o estudou por alguns segundos. Seu modo de se expressar tinha algo performático – um jeito de quem já se acostumou a ser olhado temerariamente e aprendeu a se divertir com isso.
— Ryan. — mencionou o nome, como quem testa a temperatura de uma água turva com a ponta dos dedos. — Quando você era só Ryan, o que te fez escrever Ruth?
Ele não respondeu. Fez um gesto com a mão, vagamente circular, como se procurasse palavras dentro de uma sopa espessa demais.
— Acho que queria um personagem que dissesse tudo o que ninguém deixava eu dizer. Que fosse feio, incômodo, mas que ainda assim tivesse espaço. — Virou os olhos em direção à boneca. — Engraçado… no fim, foi isso que me deram. Só tiraram o roteiro.
Emilly abaixou um pouco a cabeça, pensando, os olhos fixos no chão antes de voltar a encará-lo.
— E agora você se vê nos esquecidos, né?
— Eu sou eles. — Ele inclinou o corpo para frente, com um brilho infantil nos olhos arregalados demais. — Me tornei o acúmulo. A coisa que sobra quando você despeja todas as memórias e culpa no mesmo buraco e ninguém volta pra limpar.
O calor subia devagar pelo braço exposto de Emilly, tentando reencontrar o fluxo perdido. Mas era como tentar reacender um fósforo num ambiente saturado de gás: nada queimava.
— Você cortou meu acesso, e isso não foi só uma reação à minha energia. Você sabe como ela funciona.
Ruth sorriu de novo. Dessa vez, mais vazio.
— Eu te vi chegar. Senti a vibração. Uma energia baseada em dor… Vocês adoram esse conceito de dor como ponte, né? Mas quando ela é velha demais, vira alicerce. Não se move mais. Você bate e ela devolve seco.
Ao se aproximar um passo, Emilly a mediu. Os limites da interferência dele já começavam a ficar nítidos, mas a sala continuava distorcida. Não era total. Não era onipotente. Era apenas antigo e entranhado.
— Mesmo assim, você ainda fala comigo. Podia ter me arrancado. Podia ter me engolido junto com o campo, mas não fez. Por quê?
— Porque eu não quero que a alma dela desapareça. — Ele respondeu, direto, o tom agora mais grave. — Eu não sou o vilão dessa história. Nem o herói. Eu só fiquei. Quando todo mundo correu, morreu ou esqueceu, eu fiquei. E alguém tem que guardar o que sobrou da Lilian.
Os olhos dela agora continham algo entre compaixão e lógica pura. Como uma cientista que começa a entender o comportamento de uma criatura em cativeiro. Só que esse cativeiro era emocional. Existencial.
— Então é isso? Você protege a alma dela sufocando tudo ao redor?
— Não é sufocar, é conservar. Ninguém nunca quis realmente libertá-la. Todo mundo quer é usá-la, provar algo, corrigir culpa. Mas ela só queria existir. E comigo… ela ainda existe.
A energia ao redor se estabilizou por um segundo. Emilly respirou fundo.
— Talvez… então seja isso que eu preciso entender antes de seguir. O que significa existir sem ter que pagar com a própria ausência.
Ela sabia que ele a estava ouvindo. Sabia que ainda não tinha terminado. E mais importante: sabia que Ruth, mesmo naquilo que se tornou, ainda era, de algum modo, capaz de escutar.
E, se escutava… podia aprender a deixar ir.
Emilly não se aproximou mais. Nem recuou. Ficou ali, entre o passo possível e o passo perigoso, sustentando a postura de quem observa uma linha de falha ativa prestes a rachar o chão.
“Reage como um campo gravitacional invertido.”, pensou. “Não atrai. Deforma.”
Sacou o caderninho dobrado no bolso interno da jaqueta e rabiscou uma linha curta – apenas para manter a mente ancorada. O gesto de escrever lhe devolvia a lógica. Às vezes, diante de um Mephisto, era a única coisa que impedia o delírio.
Ruth inclinou a cabeça.
— Você vai mesmo tomar nota de mim? — zombou. — Isso é novo. A maioria dos seus colegas saca a arma logo de cara.
— Eu sacaria — respondeu, sem levantar os olhos —, se achasse que você não pudesse me ensinar alguma coisa antes disso.
— Que bonito. — O sorriso surgiu de novo, tão desalinhado quanto o espaço ao redor. — Quer me estudar antes de me matar.
Ela não corrigiu.
Mephisto. O termo era forte, mas necessário. Não se tratava de um nome, mas de uma classificação. Uma categoria. Seres formados a partir da solidificação de energias negativas extremas, a exemplo de dor, culpa, ressentimento e perda. Eles não eram fantasmas nem demônios. Eram os próprios resíduos emocionais elevados ao nível de consciência. A agência os rastreava, isolava e, sempre que possível, eliminava. Mas Ruth… era um caso peculiar.
A agente andou lentamente da parede oposta e se encostou, não por fraqueza, mas por estratégia: precisava sentir a vibração da sala fora do epicentro dele. Avaliar o raio de distorção. Testar as fronteiras.
— Então… você foi criado. Não por acidente, mas por construção. Um personagem. Alguém que não nasceu, mas foi projetado pra suportar tudo o que Ryan não conseguia sustentar em si.
— Engraçado você dizer isso. — Ruth respondeu, agora mais baixo, como se confessasse a própria estrutura. — Porque foi exatamente isso que aconteceu. Ele me fez pra segurar a parte que ninguém mais queria ouvir. A raiva. O tédio. A vontade de rasgar a própria pele quando todo mundo aplaudia e ele só queria sumir.
— E então ele sumiu mesmo. — Emilly concluiu. — Mas você ficou.
— Eu sempre fico.
Silêncio.
Ela rabiscou mais uma nota. O padrão estava se formando.
“Criatura não agressiva por impulso. Assume postura receptiva quando confrontada com atenção racional. Capaz de elaborar memória e discurso. Fortemente ligada ao conceito de ‘ser deixado para trás’ e preservação do passado. Distorção psicoespacial estabilizada.”
Ruth deslizou o dedo por uma fenda no braço da cadeira, com a concentração distraída de quem encontra conforto em ruídos pequenos.
— Vocês costumam encontrar coisas que falam desse jeito? — disse, quase num tom casual, sem tirar os olhos da madeira. — Que pensam, que se organizam por dentro?
Emilly fechou o caderno com calma, o olhar ainda firme nele.
— A maioria só fala da dor. Do que faltou, do que doeu. Você… fala de permanecer.
O Mephisto deu um sorriso breve, mas não havia vaidade ali. Era mais amargo que orgulhoso.
— É que eu sei como é virar parte da estrutura. Deixar de ser alguém pra virar o fundo do cenário. — Levantou os olhos. Havia algo pesado ali, mas também sólido. — Os outros gritam porque querem sair. Eu fiquei porque ninguém mais quis segurar isso. Então eu segurei.
— Mas você sabe que isso tem prazo, né? — perguntou, encostando o caderno na lateral da perna.
Ruth inclinou a cabeça, o olhar voltando para a boneca.
— Eu não tô atrás de pra sempre. Nunca estive. Eu só quero o tempo que ninguém mais deu pra ela.
Fez um gesto leve com o queixo, apontando.
— Enquanto eu estiver aqui, ela não vai ser só mais um número nos arquivos de vocês. Não vai virar rodapé de autópsia.
Aquilo não era mentira. E isso, de certo modo, era o mais perigoso.
Mephistos geralmente não mentem. Não precisam. São feitos de verdades que não foram digeridas a tempo. E Ruth, naquele ponto, parecia menos uma criatura e mais um acúmulo de tudo o que foi varrido para debaixo do tapete do estúdio.
Com os olhos na boneca, Ruth relaxou os ombros, mas o resto do corpo ainda carregava uma rigidez, mais por obrigação do que por escolha.
— Você sabe que isso aqui… não é tudo, né? Esse lugar. Esse estúdio podre. Essa realidade toda remendada.
Ao ouvir isso, Emilly permaneceu quieta. Com sua experiência, ela sabia reconhecer quando alguém estava prestes a compartilhar algo valioso.
— Tem mais coisa debaixo da tinta. O que você vê aqui é só a superfície. Um verniz mal aplicado por cima de algo muito mais antigo.
Ela franziu os olhos.
— Tá falando do quê, exatamente?
— Do Mundo Carmesim.
A menção soou pesada, como uma porta sendo aberta onde não devia haver nenhuma.
— É pra lá que tudo escorre, no fim. As histórias não contadas, as dores que não tiveram nome, os personagens que foram criados e largados no meio do caminho. Tudo vai pra lá. Tudo se junta. — Finalmente a olhou, e naquele momento, seus olhos pareciam mais fundos, mais vermelhos por dentro. — Lá, a gente não se apaga. A gente acumula. E o Rei… se alimenta disso.
A sensação de frio voltou a Emilly, mas desta vez era diferente. Não se tratava do campo negativo de Ruth. Aquilo era mais distante, mas infinitamente mais denso.
— Esse Rei é o quê? Um comando? Um arquétipo?
— Ele é a fome. Mas com forma. A soma de tudo que foi deixado pra trás. Não é só um monstro. É um propósito.
Ruth se inclinou para frente, com os cotovelos nos joelhos.
— Eu coleto o que invade. O que pisa aqui sem entender onde está. Gente que vem com a arrogância de quem acha que pode catalogar tudo. Vocês acham que vieram estudar, exterminar, limpar os corredores. Mas cada vez que entram, deixam um pedaço de vocês.
Ele abriu as mãos, como se mostrasse algo que ela não podia ver.
— Eu recolho esses pedaços. Não porque quero, mas porque agora essa é a função. Eles alimentam o Rei. Fortalecem o ciclo. E eu…
A pausa veio, longa, densa.
— … eu sou o filtro.
A fala de Ruth continuava clara e articulada, sem tropeços. Porém, algo havia mudado. A cadência, que antes carregava o tom da lembrança, dava lugar a uma certeza mais sólida e deixava de ser um relato para se tornar doutrina. E não se limitava a contar o que sabia. Estava pregando o que acreditava. Tudo se tornava mais perigoso por causa disso.
A virada foi entendida por Emilly. Ao longo da carreira, escutara o suficiente para reconhecer o momento em que um Mephisto deixava de ser um resíduo errante e passava a ser um vértice do sistema. A posição de Ruth agora não era mais consequente, mas engrenagem.
Com calma, abriu o caderno e começou a escrever, mesmo que o estômago estivesse começando a protestar contra o ar denso da sala.
“Ruth aderiu à lógica do Mundo Carmesim. Abandona o papel de sobrevivente emocional e assume função sistêmica. Atua na manutenção e fortalecimento do arquétipo-regente. Substituiu trauma por propósito. A criatura agora tem estrutura, linguagem, fé.”
Fechou o caderno, mantendo a capa pressionada por tempo demais. Toda anotação era uma etapa. Uma frase, uma preparação. Isso não era vaidade analítica, na verdade, era construção de alvo. Mapeava para ganhar tempo, não movida por obsessão.
“Nicholas já deveria estar perto.”
Ruth percebeu. O brilho nos seus olhos se apagou por um instante, substituído por algo mais cru.
— Vai continuar escrevendo até me desmontar?
— Vou continuar até entender qual fio cortar primeiro.
A resposta veio seca, sem o menor traço de provocação.
— E se não tiver fio nenhum?
— Sempre tem. Até o caos tem costura. A questão é só onde puxar.
O olhar de Ruth estreitou, afiado e profundo, como uma lâmina cravada na pele. Algo dentro dela mudava de forma — diferente dos traços, mas na vibração que emanava. Começou a pressão no entorno de Emilly, uma sensação de que cada partícula carregava o peso de uma decisão prestes a desabar.
Ela sentiu a mandíbula travar, o calor subindo pelo pescoço, o suor acumulando na base da nuca. O campo negativo se adensava. As paredes pareciam perder ângulo. Ruth estava escavando nela, cavando pelas rachaduras que talvez nem ela soubesse que existiam.
Mas ela não se moveu. Seu corpo era tensão comprimida em carne, os músculos alinhados como fios de aço. Cada segundo arrastado era uma lâmina encostada no pescoço. O objetivo não era dialogar, nem derrubar. Era resistir.
Manter Ruth no centro. Mantê-lo inteiro, funcional, amarrado à própria lógica. Porque o tempo, por ora, era a única arma que ainda estava nas mãos dela.
E então, algo cedeu.
Um som seco, limpo – metal raspando contra metal. Ruth virou na diração do barulho.
A porta escancarou-se com o impacto de quem não estava ali para conversar.
— Te achei, caralho!
A voz de Nicholas cortou o ar, seguida por seis estampidos curtos, cada um como um ponto final em um parágrafo que Ruth jamais escreveria.
O controle que ele exercia sobre o espaço – a atmosfera dobrada ao redor da dor, da memória, da fé – se quebrou num instante. O ar perdeu densidade. A sala realinhou-se com a violência de um elástico solto.
Com o caderno ainda fechado entre os dedos, Emilly por fim puxou o ar que vinha guardando havia tempo demais, com a certeza de que segurou o mundo tempo suficiente para alguém chegar e puxar o gatilho.
Sem esperar o som dos cartuchos tocarem o chão, se moveu até a boneca encostada e a pegou.
Ruth cambaleava no centro da sala. Emilly deu dois passos à frente, ainda com o caderno na cintura e a boneca firme na mão, e parou nas suas costas. Nicholas via o rosto do Mephisto vacilar entre formas – traços de Ryan, fragmentos de outras figuras, expressões mal costuradas, como um amálgama de memórias sem um modelo original para se recompor.
Ela estendeu a mão e tocou o seu pescoço. Onde os dedos se apoiaram, a superfície se retesou, e uma marca se formou: escura, em espiral, afundada como um carimbo queimado contra o que restava de sua essência.
Seu instinto o fez arquejar. A marca não era um ferimento. Era o registro de que, dali em diante, Emilly saberia exatamente onde cortar.
Sam sequer percebeu quando esta se moveu. O som seco dos disparos ainda ecoava pelas paredes quando ela simplesmente desapareceu da linha de visão, transformando-se em um borrão. Um rastro difuso de sombra e luz cortou o espaço até sumir. Ele piscou. No instante seguinte, estava atrás deles, ereta, calma, com a boneca agora aninhada sob o braço.
O choque lhe cortou o ar por um segundo, período no qual Nicholas nem pareceu surpreso. Quando Emilly parou, ele já a observava de canto de olho, como se cada passo dela tivesse sido previsto. Ao contrário de Sam, que ainda piscava tentando entender o que acontecera, a situação estava clara para o homem. Rápido demais para ser apenas reflexo, atento demais para ser acaso.
— Preciso que segure ele. Só um pouco. — falou sem rodeios.
— Explique.
— Não precisa matar. Na verdade, nem tenta. Assim que eu conseguir tirar a alma da menina, ele vai apagar. Eles só ficam de pé enquanto o ritual ainda tem o que oferecer.
— Tipo um castiçal sem vela?
— Tipo um parasita sem hospedeiro. — corrigiu, com um meio sorriso cansado. — O vínculo que sustenta ele tá ancorado na alma dela. Liberto ela, ele desmonta. Mas até lá, ele vai sentir. Vai resistir. Então preciso que mantenha ele distraído, mesmo que seja só na base do instinto.
— Tá. E se essa coisa resolver partir meu crânio no meio?
— Você não vai deixar, eu sei muito bem. Você é bom nisso. — Piscou. — Agora vai, antes que ele perceba que isso aqui é o começo do fim.
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