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    Ruth manteve o olhar imóvel por um instante, preso à parede como um inseto em formol, mas a imobilidade durou pouco. Deu um único passo adiante. O pedaço de ferro, que atravessava seu peito e se enterrava fundo na estrutura de concreto, rangeu, mas nada disso pareceu afetá-lo. Era feito de outra matéria, de outra lógica. 

    O ferro, que deveria contê-lo, foi arrancado da parede como um graveto encharcado, arrastado pelo movimento simples de seu corpo. Não houve esforço aparente; não houve dor. A perfuração não sangrava, nem deixava marca verdadeira – o que existia sob a superfície daquela coisa não era carne nem osso, mas uma tinta escura e densa, que escorria em ondas lentas.

    Nicholas tentou forçar as pernas a se moverem, mas a ilusão que Ruth havia implantado ainda prensava sua consciência como uma prensa hidráulica, esmagando qualquer tentativa de reação.

    Sam, meio escondido atrás da mesa, somente ouviu o pedaço de ferro ser arrancado e, por um segundo, achou que Ruth apenas o largaria no chão. Mas a criatura girou o ferro na mão, e então, arremessou-o.

    O ferro atravessou o tampo, como se a madeira velha fosse apenas papel molhado, e o encontrou. Sam deu um meio passo para trás, mas era tarde. O impacto empurrou seu corpo contra a parede atrás dele com força suficiente para arrancar um gemido baixo. Um filete de sangue desceu do canto da sua boca, misturando-se com a poeira que já cobria seus lábios rachados.

    — Sam!

    Cambaleou até colocar uma das mãos no chão, na tentativa de se levantar. Tudo nele pesava, desde as pernas até a cabeça. 

    Ruth prosseguia. A luz intermitente da sala, incapaz de escolher entre clarear ou obscurecer, projetava sua sombra contra as paredes descascadas. Quando isso acontecia, a sombra podia ser vista se movendo de maneira distinta do corpo, de modo que o Mephisto era como a superfície de um iceberg muito maior, oculto em outro plano.

    — A-ah…

    Por um momento, Nicholas fechou os olhos. Tudo ao seu redor desapareceu por um momento – os ruídos, a luz instável e até mesmo a presença monstruosa de Ruth estavam escondidos em um canto de sua consciência. Tudo o que restou foi aquela sensação avassaladora de impotência, profundamente enraizada em seu peito. Seu estômago se remexeu com uma náusea pungente – não só devido à sua fraqueza física, mas também por causa da vergonha que o invadiu como uma corrente inescapável.

    Que tipo de agente da U.E.C. ele era?

    Isso nada mais era do que uma representação burocrática de heroísmo, escondida sob camadas de patriotismo reciclado. A agência o preparou para combater aberrações, reprimir manifestações e proteger o que restava da ordem pública nesse país devastado pela ocupação estrangeira. No entanto, o treinamento, os protocolos, as instruções repetidas até a exaustão… tudo parecia sem propósito.

    Nicholas não tinha poderes. Não como os outros.

    Não controlava o fogo, não manipulava sombras, não destruía estruturas com seus pensamentos, não escalava paredes e nem mesmo dominava a energia negativa. Ele possuía apenas seu corpo – músculos afiados, resistência construída por meio de exercícios intensos e uma vontade inabalável que, segundo se dizia, valia mais do que qualquer habilidade além da humana.  

    E lá estava ele de pernas fracas, sem conseguir respirar direito, sem forças nas mãos, enquanto um garoto sangrava a alguns metros de distância, indefeso, esperando por algo que Nicholas sabia que talvez não fosse mais capaz de realizar.

    A vergonha crescia, emaranhada com a raiva e a tristeza. Ser um agente significava aceitar o risco de fracasso. Isso ele sabia. Mas aceitar que fracassaria ali, diante de um inimigo daquele, era como assinar uma sentença de irrelevância.

    A U.E.C. costumava mencionar “glória”, “sacrifícios” e “honra”.  De qualquer forma, Nicholas estava ciente de que, no fundo, o sistema precisava deles como símbolos.  Eles não se consideravam heróis. Eram elementos de um teatro de fachada, financiado para criar uma falsa sensação de segurança em uma população anestesiada pela publicidade.

    E que grande ilusão ele era agora.

    “Eu não sou suficiente.” pensou. 

    A frase não vinha como uma lamentação melodramática. Era um fato. Frio. Lúcido. Inevitável.

    Nicholas não tinha poderes. Só o que tinha era a decisão de ficar de pé — mesmo que isso custasse tudo. Seu olhar se desviou brevemente para Sam. O garoto respirava com dificuldade, a boca manchada de sangue, mas seus olhos continuavam ali, fixos nele, esperando. A súplica não era por vitória. Era por presença. Por alguém que não fugisse.

    — Lembro de você. Trouxeram o caos para o meu lar. Correram por essas paredes… rasgaram, quebraram…

    Um pequeno sorriso deformado se formou no rosto de Ruth.

    — Procurando o que, garoto? — ele perguntou, curvando-se até que seu rosto estivesse a poucos centímetros do de Sam. — Algum amigo? Alguma esperança?

    O menino fechou os olhos. 

    — Não sobrou nada. Eles viraram alimento. Alimento para o Mundo Carmesim.

    As palavras atingiram Sam como se fossem uma sentença já cumprida.  Sua cabeça se inclinou para frente, na tentativa de desviar o olhar do monstro à sua frente, ciente de que um segundo de olhar nos olhos dele seria suficiente para aniquilar o que lhe restava.

    Ruth deslizou os dedos pela bochecha de Sam até chegar às pálpebras.  Houve uma breve pausa para o gesto abrupto e impiedoso de levantá-las e rasgá-las como papel molhado.

    Sam gritou. Um estrépito alto e dilacerante que ressoou nas paredes e fez com que atravessasse Nicholas como uma faca.

    Forçado a encará-lo, este foi tragado imediatamente.

    O mundo dissolveu-se. A podridão da sala desapareceu, substituída por uma sequência infernal de imagens – tão reais que doíam mais do que qualquer ferida física.

    Ele viu Noah. Viu o momento exato em que o garoto foi despedaçado por aquelas garras, o sangue quente pintando as paredes, o olhar de terror congelado no rosto antes que fosse tragado para o nada.

    Viu Ellie, com a garganta cortada, tentando ainda, pateticamente, chamar por ajuda que nunca viria. Viu seus olhos vidrados se fixando no vazio, enquanto ela jazia sozinha, o corpo tremendo até parar de lutar.

    Foi quando viu Jake caído na escuridão, estendendo uma mão fraca em sua direção. Com o rosto ensanguentado e olhos cheios de uma fúria silenciosa que queimava como ácido.

    — Você virou as costas pra mim como se eu fosse nada. Deixou meu corpo apodrecer enquanto salvava sua própria pele.

    Sam tentou negar, balançar a cabeça, gritar que não era verdade, que ele queria voltar, que ele tentou. Mas as palavras não saíam.

    — Eu gritei por você. — disse, com os olhos escorrendo um líquido negro. — Você ouviu. Você ouviu e escolheu fugir. Por isso acabei morrendo sozinho, sabendo que você era um covarde miserável demais pra voltar.

    Se ajoelhou – na ilusão ou na realidade, já não tinha certeza – sentindo-se submerso em um mar de culpa que o empurrava para baixo sem piedade.

    Do lado de fora daquelas visões, Nicholas o viu apenas congelar, os olhos arregalados, sem brilho, a boca aberta, até que o corpo começasse a tremer em espasmos descontrolados.

    Ruth, ainda segurando a cabeça do garoto como se fosse um troféu quebrado, inclinou-se mais uma vez, seu rosto grotesco se aproximando.

    — Não é sua culpa… mas você vai acompanhá-los mesmo assim.

    E então, perfurou pelo peito com a mão em forma de lâmina.

    O estalo dos ossos rachando ecoou na sala.

    Sam estremeceu violentamente uma última vez, antes de se entregar ao silêncio absoluto.

    Ruth soltou o corpo, deixando-o cair pesadamente no chão. O som do impacto — carne e osso contra madeira podre — foi quase um alívio. Pelo menos, naquele segundo brutal e definitivo, o sofrimento havia cessado.

    Nicholas apertou os olhos com força, lutando para manter o pouco de sanidade que lhe restava.

    “Acaba com isso logo, Emilly, porra.”

    Dentro dele, no mais íntimo de sua alma despedaçada, a raiva começava a borbulhar sob a superfície da impotência. Silenciosa, densa, inevitável.

    Algo precisaria pagar por aquilo.

    Tudo precisaria pagar.

    — Agora vam…

    A voz do Mephisto morreu no ar.

    Por um momento, ouviu-se apenas um sutil ruído, como o estalar de um fósforo prestes a se apagar. A espiral gravada em sua pele começou a brilhar, uma ferida que estava reabrindo. Uma tonalidade roxa se espalhou pela pele sintética de Ruth, destruindo a tinta preta que moldava seu corpo.

    O local, uma vez preenchido por um miasma sufocante de medo e decadência, por um momento respirou.  O estúdio inteiro, com suas paredes cheias de tragédias, também percebeu que algo estava mudando.

    Ruth se enrijeceu. Pela primeira vez, o olhar dele, presunçoso e dominador, vacilou. 

    O brilho roxo percorreu suas veias como fogo líquido, desmanchando a ilusão de invencibilidade que carregava. Cada fio de tinta que sustentava sua forma lutava contra a dissolução. A marca espiralada, impregnada daquilo que restava de Lilian, não era apenas um símbolo: era uma marca de libertação. Um fim programado.

    A ligação com o Mundo Carmesim estava sendo cortada. Um a um, os elos estalavam, vibrando no ar como cordas de piano rebentadas.

    Ruth cambaleou dois passos para trás, o rosto se contorcendo em espasmos de raiva e desespero. Seus dedos arranharam o próprio pescoço, tentando arrancar a espiral em vão. Mas não havia carne verdadeira para ferir. Não havia sangue para derramar. Ele era um cadáver de tinta e dor. E a morte que o aguardava era tão inevitável quanto a memória que ele carregava.

    — NÃO… — rugiu, a voz saindo em estalos, como se a própria garganta estivesse se despedaçando. — EU FIZ TUDO CERTO!

    Nicholas, trêmulo, forçou o corpo a se endireitar. A adrenalina substituía a fraqueza aos poucos, e o que restava nele agora era uma fúria fria. Não era heroísmo. Não era bravura. Era a necessidade simples e primitiva de ver aquele monstro cair.

    — Meu rei, escuta! Eu fiz tudo o que pediu! Eu rasguei, eu devorei, eu servi! NÃO ME DEIXA AQUI! NÃO ME ESQUECE!

    Ruth gritou novamente, e desta vez, o tom era de puro terror. A realidade circundante titubeou, semelhante a uma pintura de baixo custo exposta ao calor. As imagens deformadas da sala vibraram, expondo rachaduras profundas que revelaram uma névoa vermelha, vibrante e ansiosa, logo abaixo da superfície. Era o Mundo Carmesim buscando a posse do seu emissário em estado terminal.

    — Me dá mais força! — urrou, a voz estourando no próprio peito, reverberando contra as paredes descascadas. — Me deixa voltar! Eu posso refazer! EU POSSO FAZER MELHOR!

    Lilian estava livre agora.

    A alma que havia sido forçada a se prender à boneca, manipulada e usada como isca para alimentar a maldição, tinha sido finalmente liberta da corrente. E sem ela, Ruth não era mais nada além de uma sombra enfraquecida, incapaz de resistir ao chamado do abismo.

    — Eu sou teu! — gritou, cuspindo tinta pela boca. — Sou tua criatura! Teu servo! Me usa! Me molda de novo! Não me apaga, NÃO ME APAGA, POR FAVOR!

    Nicholas viu quando a forma daquela anomalia começou a rachar de dentro para fora. Primeiro, pequenas fissuras corriam sob sua pele negra. Depois, pedaços inteiros se desprendiam como cascas apodrecidas, revelando um vazio tremeluzente sob a superfície. As luzes piscaram freneticamente, como se o universo estivesse assistindo aquele momento.

    Ruth caiu de joelhos. Por um segundo agonizante, seus olhos buscaram algo, alguém, qualquer coisa que lhe oferecesse redenção.

    — Só mais uma chance… — ele murmurava, os lábios rasgando em fendas ao pronunciar as palavras. — Eu faço melhor. Eu mato mais. Eu arranco tudo deles. Só me deixa… só me deixa continuar…

    Não encontrou, portanto, desmoronou. Ruth simplesmente se fragmentou em pó negro, levado pelo primeiro suspiro de vento que atravessou a sala.

    Nicholas permaneceu imóvel por um longo momento. Tudo nele sofria – corpo, mente e alma – mas, no fundo, existia um sentimento de vitória agridoce. Talvez não por causa da conquista, mas porque, mesmo submerso em sua própria inutilidade, Sam não perecera sem propósito.  

    Ele andou dificultosamente até onde o corpo do garoto jazia. Ajoelhou-se com dificuldade. Olhou para o seu rosto, para as pálpebras rasgadas, para a expressão congelada entre dor e alívio e abaixou a cabeça.

    — Você não ficou sozinho. Eu vi você. Até o fim.

    E, pela primeira, as lágrimas vieram.

    Não como um colapso, mas como um pagamento silencioso de uma dívida que nunca poderia ser quitada.

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