Capítulo 92 - Fracasso humano
As chamas transformaram o céu em um vermelho opaco em meio à fumaça e ao cheiro doce de madeira queimada. O estúdio estava desmoronando, como se todo aquele universo de promessas enganosas e monstros fabricados estivesse agora se desintegrando na lama que o havia criado. Nicholas e Emilly observavam à distância, sem trocar palavras ou qualquer gesto que pudesse dar a entender que o que desabara ali era apenas um prédio.
Nicholas mantinha sua atenção no fogo, com a mandíbula apertada e o peito apertado em um nó que não se desfazia. O calor que se espalhava em ondas era apenas mais um ataque, tão indiferente quanto o vento frio do início da manhã. Nada, nem as chamas, nem o cheiro de decomposição queimada, nem a devastação que se desenrolava diante deles, poderia esconder o verdadeiro sentimento que ressoava em seu interior: fracasso. Não era um fracasso tático, nem um fracasso operacional. Era ainda pior. Era humano.
Ele estava ciente do que a tarefa exigia. Sabia que nem todos podem ser salvos. Estava ciente de que perdas são números e que operações reais não terminam com um saldo positivo. No entanto, isso não era relevante quando a imagem de Sam deitado no chão, com os olhos estraçalhados e o sangue manchando o piso esfarelado, persistia, esperando que o menor descuido surgisse novamente.
O estúdio fora condenado desde o momento em que permitiu que sua podridão saísse do papel para o mundo físico. Nicholas sabia disso. Ainda assim, fora ele quem escolhera o método. Sabotou a sala de administração ao sobrecarregar a fiação, arrastando os rolos de filmes ressecados, empilhando papéis velhos contra os disjuntores abertos. Bastou um curto-circuito para que tudo virasse armadilha. Bastou uma faísca para que o estúdio se tornasse o próprio crematório. Uma solução limpa, estratégica, necessária.
Mas não para Sam.
Quando Emilly se aproximou, o peso do momento ainda cravado nos ombros, tentou dizer algo. Não foi um pedido de desculpas, não foi consolo. Nem mesmo foi uma justificativa. Apenas palavras que, naquele instante, soaram vazias, oco de propósito.
— Nicholas…
Ele não respondeu. Sequer a olhou. Apenas virou o rosto devagar, sem raiva explícita, mas com um desprezo frio que dizia tudo o que precisava ser dito. Não havia mais espaço para palavras. Não havia mais nada que pudesse limpar o que fora perdido.
Emilly recuou meio passo, sentindo no corpo a rejeição como uma bofetada. Ficou ali, parada, olhando para as costas dele, sentindo crescer dentro do peito a certeza amarga de que carregaria aquela culpa sozinha. Porque no fundo, ela sabia. Fora ela quem pedira para ganhar tempo. Fora ela quem dera a ordem para que Nicholas segurasse Ruth enquanto o ritual não terminava. E fora sob essa ordem que Sam morrera.
O estúdio queimava, o fogo lambia as paredes caídas, engolindo tudo que um dia pretendera ser grandioso, e ali, sob o céu sujo de fumaça, Nicholas e Emilly se tornavam também ruínas separadas.
Cada um carregando para dentro de si aquilo que não se apaga.
O céu estava começando a clarear, ainda que sem intensidade, de modo que o próprio dia estava com receio de surgir. Nicholas e Emilly subiram os três degraus da modesta varanda de madeira, com passos pesados demais para o ambiente doméstico, e pararam em frente à porta.
A casa era simples, as portas estavam fechadas, o jardim da frente tinha sido deixado de lado pela pressa e pelo medo. Nenhum som, nenhum movimento, exceto a respiração deles e o farfalhar suave das árvores se chocando umas com as outras.
Nicholas levantou a mão para bater, mas parou no meio do gesto. Emilly passou à frente, sem dizer nada, e bateu duas vezes. O som oco reverberou por dentro da casa. Era cedo demais para alguém estar acordado, mas eles sabiam que ali dentro ninguém dormira naquela noite.
Poucos segundos depois, a maçaneta girou e a porta se abriu. A mulher diante deles envelheceu vinte anos naquela madrugada. Seu cabelo estava despenteado, preso às pressas; seu rosto, pálido, não exibia maquiagem; seus olhos, fundos, estavam roxos de cansaço, mas ainda transbordavam aquela expectativa desesperada que se recusa a morrer até o último segundo. Ela segurava a borda da porta como se estivesse se equilibrando na beira de um abismo.
O olhar dela passou rapidamente entre ambos e parou.
— É sobre o Sam? — perguntou, a voz arranhada de tantas horas esperando respostas que não vieram.
Emilly firmou os pés no chão e inclinou a cabeça, um gesto mínimo, mas que carregava o peso inteiro da confirmação.
— Podemos entrar? — perguntou, a voz baixa, modulada até o limite entre a autoridade e o respeito.
A mulher hesitou. Seus dedos cravaram-se na madeira da porta para resistir à ideia de ceder, mas acabaram cedendo. Nicholas passou por ela sem dizer uma palavra, a sentir o ar frio e tranquilo da casa, o cheiro de café queimado esquecido na bancada da cozinha, as fotos espalhadas pelas paredes – Sam em cada uma delas, sorrindo sem saber que sua história terminaria tão cedo.
Sentaram-se na sala pequena, desajeitados, deslocados naquele espaço que não deveria ser palco de comunicações oficiais. Nicholas se manteve de pé, as mãos fechadas atrás do corpo, o olhar perdido em algum ponto da parede onde a tinta descascava discretamente.
Emilly apoiou os cotovelos nos joelhos e se inclinou para a frente, optando por palavras não suaves, mas que tentassem dar à tragédia a dignidade que ela ainda merece.
— O Sam… — Sua voz falhou no começo, mas retomou sem rodeios, sem espaço para adornos. — Ele não resistiu.
A mulher fechou os olhos e seus ombros se curvaram gradualmente. Ela não gritou. Não entrou em colapso. Apenas pareceu se encolher um pouco mais, do jeito que seu corpo precisava de menos espaço para suportar o peso do que acabara de ouvir. Sua respiração escapou pelos lábios entreabertos, falhando, de modo que a tarefa de permanecer viva também precisasse ser renegociada.
O relógio na parede avançava tique por tique, ruidoso demais na sala estagnada. Nicholas sentia cada intervalo como uma martelada seca na cabeça, cada segundo se alongando, torturante.
— Ele sofreu? — perguntou, pastosa.
Emilly olhou de lado para Nicholas. Ele virou o rosto, focando a janela como se houvesse algo lá fora que precisasse da atenção dele. Nada que dissesse mudaria o que aquela a mãe precisava ouvir.
— Não. — respondeu, a voz embargando por um momento antes de se firmar. — Ele lutou. Até o último momento. Foi rápido. Ele não ficou sozinho.
A mesma mordeu o lábio inferior com tanta força que a pele rasgou num fio fino de sangue. Baixou a cabeça, os cabelos desgrenhados caindo à frente do rosto, escondendo a expressão, mas era impossível não sentir o impacto. O tipo de dor que não fazia barulho, mas preenchia tudo.
— Eu sabia que ele ia tentar. Sempre achou que dava pra vencer qualquer coisa, que só precisava aguentar um pouco mais que os outros.
Ao erguer o rosto, os olhos vermelhos e secos, como quem já chorara o suficiente sem derramar lágrima alguma. Olhou para Nicholas, encarando-o com uma intensidade cansada, sem raiva, sem exigência. Apenas uma pergunta muda: valeu a pena?
Ele sustentou o olhar por um instante, mas não havia resposta honesta que pudesse dar. Virou o rosto de volta para a janela, para o céu sem cor.
A mulher assentiu, mais para si do que para eles.
— Vocês fizeram o que podiam, né?
Nicholas sentiu um aperto no peito, algo que não era culpa ou tristeza – era a aceitação de que, na maioria das vezes, fazer tudo o que se pode simplesmente não basta.
— Se precisar de alguma coisa…
— Cuidem de vocês. É só o que dá pra fazer, no fim das contas.
A resposta dela, embora educada, deixava uma margem. Talvez por dever, talvez por resquício de humanidade, ela sentiu que precisava insistir, nem que fosse para cumprir com o protocolo que eles haviam aprendido a seguir nesses casos.
— Sra. Summer… Existem canais. Formas de reconhecimento.
Levantou os olhos para a agente, exausta demais para se surpreender ou se indignar. Emilly continuou, com o tipo de discurso que sabia soar frio, mas que, na prática, era a única ferramenta que tinham para tentar remediar algo que não tinha reparação.
— Podemos iniciar um processo de reparação federal. Existem fundos especiais para famílias afetadas por operações de risco. Assistência financeira direta. Anistia de dívidas. Benefícios vitalícios pelo Departamento de Proteção Nacional. Reconhecimento formal pelo Serviço Civil. Podemos garantir que seu nome e o de Sam sejam reconhecidos oficialmente.
Por um instante, o tique-taque do relógio pareceu acelerar, preenchendo o espaço sufocante entre as frases. Summer não respondia. Deixou o silêncio se estender até o constrangimento quase pesar sobre eles.
— A U.E.C também pode contribuir. Há fundos de apoio internos para vítimas afetadas em zonas de contenção. Podemos acelerar o processo, garantir que receba tudo que lhe é devido. Não precisa passar por advogados ou perícia estadual. É uma linha direta. Discreta. Sem perguntas que a senhora não queira responder.
Esta não mudou a expressão.
— Não é só compensação. — continuou. — É reconhecimento oficial. Ele será registrado como perda em ação especial, sob categoria de mérito civil. O nome dele estará seguro. Preservado.
Summer inclinou a cabeça levemente, como quem ouve com atenção, mas não porque espera algo bom — apenas porque quer garantir que nada passe despercebido.
Então sorriu. Um sorriso seco, magro, feito de cansaço e amargura.
— Vocês acham que o nome dele numa parede em Washington vai mudar o que eu vou encontrar todo dia quando abrir essa porta? Acham que uma placa dourada vai fazer esse lugar parar de feder a vazio?
Emilly abriu a boca para insistir, mas Summer ergueu a mão num gesto simples.
— Levem seu dinheiro, seus formulários, seus fundos discretos. Vocês enterraram meu filho com todo o profissionalismo do mundo. Agora vão enterrar essa conversa também.
Nicholas fechou os olhos por um breve segundo. Não precisava de mais. Não precisava de nada além daquilo.
— Vão embora. — concluiu, sem elevar a voz, sem alterar o tom. Apenas decretando o fim daquela conversa.
Ambos se viraram e se dirigiram à porta com uma resignação que não era nem raiva nem tristeza pura, mas algo mais profundo, mais sujo: a aceitação de que certas promessas não são quebradas, mas corroídas, dia após dia, até que restem apenas lembranças inúteis. Emilly o seguiu, com o corpo tenso e os olhos baixos, uma vez que qualquer palavra era apenas mais uma pedra lançada em uma ruína já consolidada.
Ao fechar a porta atrás deles, sob um som seco que crepitava no frio da manhã, eles ouviram. Do outro lado da madeira, o som de Summer desmoronando. Um grito rasgado e desesperado. Gritos curtos e sufocados, do tipo em que cada respiração custava um pedaço de sua alma. Um som que ninguém deveria ouvir e seguir em frente como se nada tivesse acontecido.
Nicholas ficou na varanda, olhando para o asfalto. Ele não se mexeu. Não falou. Todas as fibras de seu corpo estavam lhe dizendo que ele deveria ao menos fingir uma palavra de consolo, uma última tentativa de dignidade para si mesmo. Só que sabia que não era digno, que sua mera presença ali, naquele momento, já era uma afronta.
Emilly esfregou a mão na testa, o gesto rápido e irritado. Tinha tentado seguir o protocolo, respeitar as diretrizes da U.E.C., recitar cada passo do manual que fora criado para lidar com baixas civis. Auxílio emergencial, indenizações de Estado, proteção à dignidade da vítima. Termos vazios para enfeitar o que no fundo era apenas isso: mais uma família despedaçada por operações que nunca deveriam ter acontecido.
Por que ainda tentavam? Por que insistiam em vestir a tragédia com a máscara da justiça, como se houvesse um verniz capaz de tornar aceitável a morte de alguém que não tinha culpa de nada?
A mesma sabia a resposta, mas odiava ter que dizê-la para si mesma: insistiam porque era mais fácil do que encarar o fato de que toda a estrutura, toda a máquina, toda a política que sustentavam era construída em cima dos escombros de pessoas como Sam. Era assim que a Unidade operava. Era assim que o mundo girava.
Nicholas desceu os degraus da varanda. Não olhou para Emilly. Havia uma distância irremediável entre eles, não feita de palavras, mas daquilo que não foi dito.
O choro de Summer ainda atravessava a porta, como agulhas finas espetando a carne exposta. Nicholas apertou os punhos até sentir as unhas rasgarem a pele da palma. Não pela dor. Pela necessidade desesperada de se manter em pé, de não permitir que a vergonha, a raiva, a impotência o dobrassem ali, na frente de todo o fracasso que ajudara a construir.
Caminharam pela rua deserta até o carro. O sol filtrava-se entre as nuvens pesadas, inútil, sem calor. Um dia novo, vazio, desprovido de qualquer promessa. Ao entrarem no veículo, o silêncio entre eles não era um acordo — era uma sentença. Um entendimento tácito de que certas feridas não se dividem. Se carregam sozinhas, como cicatrizes que doem mais à medida que o tempo tenta apagá-las.
O som frio do motor ao ligar soava absurdo diante do rastro que deixavam para trás. Nicholas olhava para o próprio reflexo no vidro da janela, vendo não um rosto, mas uma máscara carregada de expressão vazia, de quem já entendeu a inexistência de vitórias em certos trabalhos. Apenas o adiamento da próxima derrota.
O choro na casa recuava, abafado pela distância crescente, mas deixava rastros no peito, como cheiro de fumaça grudado na roupa, como lembrança ruim que se infiltra nos ossos.
Emilly compreendeu, sem a necessidade de palavras, que naquela ocasião não seria possível elaborar um relatório ou concluir uma missão capaz de consertar o que havia sido danificado.
Nem dele.
Nem dela.
Nem de ninguém.
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