Índice de Capítulo

    As chamas transformaram o céu em um vermelho opaco em meio à fumaça e ao cheiro doce de madeira queimada. O estúdio estava desmoronando, como se todo aquele universo de promessas enganosas e monstros fabricados estivesse agora se desintegrando na lama que o havia criado. Nicholas e Emilly observavam à distância, sem trocar palavras ou qualquer gesto que pudesse dar a entender que o que desabara ali era apenas um prédio.

    Nicholas mantinha sua atenção no fogo, com a mandíbula apertada e o peito apertado em um nó que não se desfazia.  O calor que se espalhava em ondas era apenas mais um ataque, tão indiferente quanto o vento frio do início da manhã.  Nada, nem as chamas, nem o cheiro de decomposição queimada, nem a devastação que se desenrolava diante deles, poderia esconder o verdadeiro sentimento que ressoava em seu interior: fracasso. Não era um fracasso tático, nem um fracasso operacional. Era ainda pior. Era humano.

    Ele estava ciente do que a tarefa exigia. Sabia que nem todos podem ser salvos.  Estava ciente de que perdas são números e que operações reais não terminam com um saldo positivo. No entanto, isso não era relevante quando a imagem de Sam deitado no chão, com os olhos estraçalhados e o sangue manchando o piso esfarelado, persistia, esperando que o menor descuido surgisse novamente.

    O estúdio fora condenado desde o momento em que permitiu que sua podridão saísse do papel para o mundo físico. Nicholas sabia disso. Ainda assim, fora ele quem escolhera o método. Sabotou a sala de administração ao sobrecarregar a fiação, arrastando os rolos de filmes ressecados, empilhando papéis velhos contra os disjuntores abertos. Bastou um curto-circuito para que tudo virasse armadilha. Bastou uma faísca para que o estúdio se tornasse o próprio crematório. Uma solução limpa, estratégica, necessária.

    Mas não para Sam.

    Quando Emilly se aproximou, o peso do momento ainda cravado nos ombros, tentou dizer algo:

    — Nicholas…

    Ele não respondeu, nem sequer a olhou. Apenas virou o rosto devagar, sem raiva aparente, mas com um desprezo frio que dizia tudo o que era necessário dizer.

    Não cabiam mais palavras. Não havia nada que pudesse reparar o que se perdera.

    A rejeição fez-se sentir no corpo de Emilly como uma bofetada, fazendo-a recuar meio passo. Ficou ali, parada, com o olhar virado para as costas dele, enquanto a certeza amarga de que aquela culpa seria carregada por ela sozinha crescia dentro do peito.

    Porque, no fundo, era disso que Emilly tinha a certeza.

    Fora esta quem pedira para ganhar tempo. Tivera sido o seu pedido para que Nicholas segurasse Ruth enquanto o ritual não terminava. E foi sob essa ordem que Sam morreu.

    O estúdio queimava, o fogo lambia as paredes caídas, engolindo tudo que um dia pretendera ser grandioso, e ali, sob o céu sujo de fumaça, Nicholas e Emilly se tornavam também ruínas separadas.

    Cada um carregando para dentro de si aquilo que não se apaga.


    O céu estava começando a clarear, ainda que sem intensidade, de modo que o próprio dia estava com receio de surgir. Nicholas e Emilly subiram os três degraus da modesta varanda de madeira, com passos pesados demais para o ambiente doméstico, e pararam em frente à porta.  

    A casa era simples, as portas estavam fechadas, o jardim da frente tinha sido deixado de lado pela pressa e pelo medo. Nenhum som, nenhum movimento, exceto a respiração deles e o farfalhar suave das árvores se chocando umas com as outras.

    Nicholas levantou a mão para bater, mas parou no meio do gesto. Emilly passou à frente, sem dizer nada, e bateu duas vezes. O som oco reverberou por dentro da casa. Era cedo demais para alguém estar acordado, mas eles sabiam que ali dentro ninguém dormira naquela noite.

    Poucos segundos depois, a maçaneta girou e a porta se abriu. A mulher diante deles envelheceu vinte anos naquela madrugada. Seu cabelo estava despenteado, preso às pressas; seu rosto, pálido, não exibia maquiagem; seus olhos, fundos, estavam roxos de cansaço, mas ainda transbordavam aquela expectativa desesperada que se recusa a morrer até o último segundo. Ela segurava a borda da porta como se estivesse se equilibrando na beira de um abismo.

    O olhar dela passou rapidamente entre ambos e parou.

    — É sobre o Sam? — perguntou, a voz arranhada de tantas horas esperando respostas que não vieram.

    Emilly firmou os pés no chão e inclinou a cabeça, um gesto mínimo, mas que carregava o peso inteiro da confirmação.

    — Podemos entrar? — perguntou, a voz baixa, modulada até o limite entre a autoridade e o respeito.

    A mulher hesitou. Seus dedos cravaram-se na madeira da porta para resistir à ideia de ceder, mas acabaram cedendo. Nicholas passou por ela sem dizer uma palavra, a sentir o ar frio e tranquilo da casa, o cheiro de café queimado esquecido na bancada da cozinha, as fotos espalhadas pelas paredes – Sam em cada uma delas, sorrindo sem saber que sua história terminaria tão cedo.

    Sentaram-se na sala pequena, desajeitados, deslocados naquele espaço que não deveria ser palco de comunicações oficiais. Nicholas se manteve de pé, as mãos fechadas atrás do corpo, o olhar perdido em algum ponto da parede onde a tinta descascava discretamente.

    Emilly apoiou os cotovelos nos joelhos e se inclinou para a frente, optando por palavras não suaves, mas que tentassem dar à tragédia a dignidade que ela ainda merece.

    — O Sam… — Sua voz falhou no começo, mas retomou sem rodeios, sem espaço para adornos. — Ele não resistiu.

    A mulher fechou os olhos e seus ombros se curvaram gradualmente. Ela não gritou. Não entrou em colapso. Apenas pareceu se encolher um pouco mais, do jeito que seu corpo precisava de menos espaço para suportar o peso do que acabara de ouvir. Sua respiração escapou pelos lábios entreabertos, falhando, de modo que a tarefa de permanecer viva também precisasse ser renegociada.

    O relógio na parede avançava tique por tique, ruidoso demais na sala estagnada. Nicholas sentia cada intervalo como uma martelada seca na cabeça, cada segundo se alongando, torturante.

    — Ele sofreu? — perguntou, pastosa.

    Emilly olhou de lado para Nicholas. Ele virou o rosto, focando a janela como se houvesse algo lá fora que precisasse da atenção dele. Nada que dissesse mudaria o que aquela a mãe precisava ouvir.

    — Não. — respondeu, a voz embargando por um momento antes de se firmar. — Ele lutou. Até o último momento. Foi rápido. Ele não ficou sozinho.

    A mãe mordeu o lábio inferior com tanta força que a pele rasgou num fio fino de sangue. Baixou a cabeça, os cabelos desgrenhados caindo à frente do rosto, escondendo a expressão, mas era impossível não sentir o impacto. O tipo de dor que não fazia barulho, mas preenchia tudo.

    — Eu sabia que ele ia tentar. Sempre achou que dava pra vencer qualquer coisa, que só precisava aguentar um pouco mais que os outros.

    Ao erguer o rosto, os olhos vermelhos e secos, como quem já chorara o suficiente sem derramar lágrima alguma. Olhou para Nicholas, encarando-o com uma intensidade cansada, sem raiva, sem exigência. Apenas uma pergunta muda: valeu a pena?

    Ele sustentou o olhar por um instante, mas não havia resposta honesta que pudesse dar. Virou o rosto de volta para a janela, para o céu sem cor.

    A mulher assentiu, mais para si do que para eles.

    — Vocês fizeram o que podiam, né? 

    Nicholas sentiu um aperto no peito, algo que não era culpa ou tristeza – era a aceitação de que, na maioria das vezes, fazer tudo o que se pode simplesmente não basta.

    — Se precisar de alguma coisa… 

    — Cuidem de vocês. É só o que dá pra fazer, no fim das contas.

    A resposta dela, embora educada, deixava uma margem. Talvez por dever, talvez por resquício de humanidade, ela sentiu que precisava insistir, nem que fosse para cumprir com o protocolo que eles haviam aprendido a seguir nesses casos.

    — Sra. Summer… Existem canais. Formas de reconhecimento.

    Levantou os olhos para a agente, exausta demais para se surpreender ou se indignar. Emilly continuou, com o tipo de discurso que sabia soar frio, mas que, na prática, era a única ferramenta que tinham para tentar remediar algo que não tinha reparação.

    — Podemos acionar um processo de reparação federal. Existem fundos reservados para famílias afetadas por operações de alto risco. Assistência financeira direta, benefícios vitalícios pelo Departamento de Proteção Nacional e um reconhecimento formal pelo Serviço Civil. Podemos garantir que seu nome e o do Sam sejam registrados oficialmente.

    O tique-taque do relógio na parede ouvia-se mais alto e preenchia o silêncio entre as frases. Summer não dizia nada, e o constrangimento ficava cada vez mais pesado.

    — A U.E.C também tem seus recursos. — Emilly continuou, baixando ligeiramente o tom. — Fundos de apoio para vítimas em zonas de contenção. Podemos agilizar tudo, garantir que receba o que é seu sem passar por burocracia estadual. É um canal direto.

    A mãe não alterou sua expressão.

    — Não se trata apenas de compensação. — insistiu, buscando um fio de conexão. — É sobre reconhecimento. Ele será registrado como baixa em ação especial, com menção de mérito civil. O nome dele estará seguro. Preservado para a história.

    Summer inclinou a cabeça num movimento pouco perceptível, sem esperar nada, mas atenta a tudo o que se passava.

    Então sorriu. Um sorriso estreito e seco, tecido de cansaço e amargura.

    — Vocês realmente acham que o nome dele numa placa em Washington vai mudar o que eu encontro aqui todo dia? Acham que uma medalha dourada vai fazer esse lugar parar de cheirar a ausência?

    Emilly abriu a boca para contra-argumentar, mas Summer ergueu a mão num gesto tranquilo e final.

    — Fiquem com seu dinheiro, seus formulários, seus fundos discretos ou a merda que for. — Ela cravou os olhos nos dois. — Vocês enterraram meu filho com toda a eficiência do mundo. Agora enterrem essa conversa também.

    Nicholas fechou os olhos por um segundo. Não precisava de mais nada, aquilo era tudo o que era necessário.

    — Vão embora. — concluiu, sem elevar a voz.

    Ambos se viraram e dirigiram-se à porta com uma resignação que não era nem raiva nem tristeza pura, nem qualquer outra emoção, simplesmente a aceitação de que certas promessas não são quebradas, mas sim corroídas dia após dia, até restarem apenas lembranças inúteis.

    Emilly seguiu-o, com o corpo tenso e os olhos baixos, pois qualquer palavra seria apenas mais uma pedra lançada numa ruína já consolidada.

    Ao fechar a porta atrás deles, sob um som seco que crepitava no frio da manhã, eles ouviram. Do outro lado da madeira, o som de Summer desmoronando. Um grito rasgado e desesperado. Gritos curtos e sufocados, do tipo em que cada respiração custava um pedaço de sua alma. Um som que ninguém deveria ouvir e seguir em frente como se nada tivesse acontecido.

    Nicholas ficou na varanda, olhando para o asfalto. Ele não se mexeu. Não falou. Todas as fibras de seu corpo estavam lhe dizendo que ele deveria ao menos fingir uma palavra de consolo, uma última tentativa de dignidade para si mesmo. Só que sabia que não era digno, que sua mera presença ali, naquele momento, já era uma afronta.

    Emilly esfregou a mão na testa num gesto rápido e irritado. Tinha tentado seguir o protocolo, respeitar as diretrizes da U.E.C. e recitar cada passo do manual criado para lidar com baixas civis. Auxílio emergencial, indemnizações do Estado, proteção da dignidade da vítima. O que no fundo era apenas mais uma família despedaçada por operações que nunca deveriam ter acontecido, foi enfeitado com termos vazios.

    Por que ainda tentavam? Por que insistiam em vestir a tragédia com a máscara da justiça, como se houvesse um verniz capaz de tornar aceitável a morte de alguém que não tinha culpa de nada?

    Emilly sabia a resposta, mas detestava ser obrigada a dizê-la a si própria: não podiam evitar, era mais fácil do que enfrentarem o fato de que toda a estrutura, máquina e política que mantinham em funcionamento eram construídas sobre os restos de pessoas como Sam.

    Era assim que a Unidade funcionava. Era assim que o mundo girava.

    Nicholas desceu os degraus da varanda. Não olhou para Emilly. Havia uma distância irremediável entre eles, não feita de palavras, mas daquilo que não foi dito.

    O choro de Summer ainda atravessava a porta, como agulhas finas espetando a carne exposta. Nicholas apertou os punhos até sentir as unhas rasgarem a pele da palma. Não pela dor. Pela necessidade desesperada de se manter em pé, de não permitir que a vergonha, a raiva, a impotência o dobrassem ali, na frente de todo o fracasso que ajudara a construir.

    Andaram pela rua vazia até ao veículo. O sol filtrava-se entre as nuvens pesadas que o tornavam inútil e sem calor. Um dia novo, vazio, desprovido de qualquer promessa, em que não se vislumbra nada que se assemelhe a uma meta a atingir. O silêncio entre eles, ao entrarem no carro, não era um acordo, e sim uma sentença. Um entendimento tácito de que certas feridas não se partilham, se transportam sozinhas, como marcas que magoam mais à medida que o tempo tenta apagá-las.

    O som monótono do motor ao arrancar soava disparatado perante a impressão imponente que deixavam para trás. Nicholas olhava para o seu reflexo no vidro da janela e não via um rosto, senão uma máscara carregada de expressão vazia, de alguém que já compreendeu o quão inexistentes eram as vitórias em certos trabalhos.

    — Nicholas…

    — Não. — Sua resposta foi imediata, um corte seco.

    — Precisamos falar sobre o que aconteceu lá atrás.

    — Não precisamos falar sobre nada. Cumpra seu trabalho e eu cumprirei o meu.

    — Você está me culpando pelo garoto, não está?

    — Culpar? — Apertou as mãos no volante até ficarem brancas dos nós dos dedos. — Isso implicaria que alguém ainda se importa o suficiente para distribuir culpas. O garoto está morto. Fim da história.

    — Não é o fim e você sabe disso! Eu pedi para você segurar o Mephisto, não para você…

    — Não para eu o quê, Emilly? Diga. Não para eu deixá-lo escapar? Para eu contê-lo indefinidamente enquanto você… O que exatamente cê tava fazendo? Brincando de casinha com a boneca amaldiçoada?

    — Ela era a fonte, Nicholas! Se eu não a contivesse, todo aquele lugar…

    — Todo aquele lugar o quê? Iria explodir? Desmoronar? Porque adivinhe só, Emilly. Ele desmorou, e o garoto estava lá dentro.

    — Você acha que foi fácil? Você acha que eu queria que ele… — A voz dela fraquejou, mas forçou as palavras para fora. — Eu fiz o que tinha que ser feito com as informações que tínhamos!

    — A informação que eu tinha era clara: segure o Mephisto. Eu segurei. Você demorou. O garoto morreu. Não é complicado. É aritmética básica.

    Os olhos dela brilhavam com lágrimas contidas.

    Ele a encarou com um desdém tanto cortante que parecia cortar o ar entre ambos.

    — Sabe qual é a diferença entre você e eu? Eu pelo menos admito que sou um monstro. Você ainda se veste de heroína.

    — Isso… não é justo.

    — A gente enterrou um garoto. Me fala onde entra justo nessa equação. Sempre achei engraçado como pessoas como você usam essa frase para lavar as mãos. Ah, foi pelo bem maior. Tão conveniente, não é? Não precisa se sentir mal quando alguém morre, porque foi por uma causa nobre.

    — Você está sendo cruel de propósito.

    — Crueldade seria te poupar da verdade. E o pior não foi ver o garoto morrer, foi perceber que você é exatamente como todo mundo daquela agência. Você não é diferente…

    Ouviu-se um estalo dentro do carro que acabou o interrompendo. A cabeça de Nicholas inclinou-se com a força do tapa que Emilly lhe deu na bochecha. 

    — Não. — A voz dela estava trêmula, mas firme, enquanto ela esfregava a mão dormente. — Você não chega a falar essas coisas. Não nesse tom. Você não me conhece direito, Nicholas. Não sabe por que eu faço as escolhas que faço. Não sabe de nada.

    Ela desabrochou o cinto de segurança com um movimento brusco.

    — Eu escolhi salvar as pessoas. Eu escolhi a merda do bem maior, sim! Mas você… — Abriu a porta e o ar frio invadiu o carro. — Você não tem o direito de me tratar como se eu não tivesse um coração.

    Fechou a porta com um baque forte.

    Nicholas esticou o braço para baixar o vidro do outro lado.

    — Sério, Emilly? Vai fazer isso? Sabe que horas são?

    Ela já caminhava pela calçada.

    — Vou procurar um táxi.

    — Táxi? Aqui? Haha! Boa sorte com isso. Vai ser assaltada antes de andar dois quarteirões.

    Parou e virou-se, recebendo a luz de um poste distante no rosto.

    — Prefiro ser assaltada do que ficar mais um minuto ouvindo você. 

    — Você tá sendo infantil, cacete!

    — E você tá sendo um idiota! — gritou de volta. — Um idiota completo! Acha que é o único que sofre? O único que se importa? Acha que carregar esse peso sozinho te faz especial? Leva todo esse sofrimento pra você e enfia na goela abaixo junto com esse seu orgulho. Eu cansei!

    A silhueta de Emilly foi acompanhada pelo olhar dele até desaparecer na curva próxima. 

    Ela tinha razão. Nicholas feriu-a de propósito, com esmero, sabendo exatamente onde tocar para causar a maior dor possível.

    Encostou a testa ao volante frio, de olhos fechados. O silêncio dentro do carro fora opressivo, impregnado do que ele havia destruído. Nicholas não chorou; há muito tempo que tinha esquecido como o fazer. Mas, àquela hora, desejou poder voltar atrás no tempo apenas sessenta segundos e engolir cada palavra venenosa que tinha dito.

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