Capítulo 9 - Sob o calor do momento
Era uma escolha que poderia alterar irrevogavelmente nossos destinos e a direção ade nossas próprias responsabilidades.
Mikael, porém, ficou parado, absorvendo a enormidade do que acabara de acontecer.
Seu rosto tenso se transformou em um leve sorriso de relaxamento e alívio, cumprimentando-a com um aceno de cabeça.
A mulher, no entanto, demonstrava outra reação. Seu olhar pousou sobre mim como um bisturi prestes a cortar pelo espaço de um instante, mas foi o suficiente para me despir de qualquer ilusão de alívio. Não havia empatia em sua decisão. Eu não tinha sido poupado, apenas postergado.
— Já podem soltá-lo. — ordenou.
Dois guardas se aproximaram. Um deles parou diante de mim de maneira hesitante. A princípio, achei que ele fosse recusar. Sua mão pairando sobre o bracelete de contenção não se moveu. Era como se tocá-lo fosse o mesmo que tocar uma fera enjaulada, a ponto de arrancar a carne de seus ossos.
Ele me encarou. Nem como se eu fosse um prisioneiro. Nem como um inimigo. Ele me encarou como se eu fosse algo que não deveria existir. A expressão dele era uma mistura de nojo, medo e desprezo, e aquilo me atingiu com mais força do que qualquer choque que a coleira pudesse me causar.
— Não vai me morder, vai? — murmurou, com um tom cínico disfarçado de piada. Mas seus olhos não estavam brincando.
Apertou o mecanismo que destravou os anéis metálicos em meus pulsos. Eles se abriram com um estalo, e o peso se foi, mas a sensação de sufoco permaneceu. A coleira ao redor do meu pescoço era uma lembrança do que eu era para eles e continuava firme.
Friccionei os pulsos, que ardiam com marcas vermelhas profundas, e tentei aliviar a dormência nos dedos. Estava livre. Pelo menos era o que diziam. Ao me colocarem de pé e me empurrarem levemente em direção ao corredor, no entanto, percebi que a liberdade era apenas uma confortável ilusão para os outros.
A prisão, por ora, era invisível. Eu ainda a sentia comigo.
Por baixo do peso da coleira, a verdade era insuportável sob qualquer ponto de vista: a eles, eu não era um soldado, nem um jovem em recuperação. Eu era uma aberração tolerada por necessidade. Um experimento ambulante.
Um monstro em liberdade condicional.
— Finalmente… — murmurei.
Em seguida, dois guardas me encaminharam para perto de Mikael.
— Sério, valeu. Quase me caguei.
— De nada. Agora me acompanhe.
A vice-líder me deu um olhar horrível mesmo antes de irmos, então tive que desviar para o outro lado.
— Por um momento, achei que vocês fossem me deixar apodrecer naquela sala.
— A gente só abandona o que não serve mais. E você ainda tem algum uso.
O comentário me atingiu com uma frieza que veio sem drama, sem rodeios, apenas factual. Apertei os punhos, mesmo com os curativos ainda ardendo.
— Então é isso? Um uso? Nem pessoa eu sou mais?
— Você é funcional. Isso já te coloca acima de muitos aqui dentro. — Ele me olhou por cima do ombro. — E, diferente do que parece, eu não tenho o hábito de desperdiçar peças úteis.
— Que alívio. — murmurei.
Passamos por uma interseção de onde partiam duas portas de vidro grosso para salas aparentemente ligadas a laboratórios. Dentro, vi homens e mulheres de jalecos escuros e luvas pretas. Anotavam algo em pranchetas eletrônicas e observavam telas divididas em várias imagens de criaturas. Alguns dos rostos ali me pareceram jovens demais considerando o que estavam lidando. O olhar de um deles se deteve em nós por um segundo, e tive a impressão de que poderia me reconhecer.
— Aquele é o setor de contenção passiva. — disse Mikael, notando meu olhar. — É onde armazenamos dados de comportamento, padrão de manifestação e estrutura de ruptura. Todos os Mephistos analisados passam primeiro por ali.
Continuei andando ao seu lado, mais devagar do que gostaria. Os passos ecoavam por todo o lugar e, embora o ar estivesse filtrado, tinha cheiro de fio queimado e ferro limpo. Mesmo sendo um lugar feito para conter o caos, nunca deixava a sensação de controle. A temperatura era baixa. Isso não se devia apenas ao termostato.
— E as pessoas que trabalham aqui?
— Treinadas para suportar o que os outros não podem, ou pra ignorar quando não suportam.
— Tem muita diferença?
— Uma linha tênue como quase tudo aqui.
O corredor estreitava um pouco depois da curva, e dois agentes parados ao lado de uma das colunas murmuravam algo entre si. Os dois vestiam o mesmo uniforme funcional, com o emblema da UEC estampado no ombro, mas a forma como um deles se apoiava contra a parede, braços cruzados e um cigarro eletrônico escondido entre os dedos, deixava claro que aquela conversa não tinha nada de oficial.
— Eu tô falando, cara, ela pediu com aquelas palavras mesmo. Só gozo se tu falar comigo em francês no meio da transa. Eu tive que falar bonjour, croissant, Eiffel Tower com um gemido mais feio que eu já ouvi.
O outro soltou uma risada curta e deu uma tragada rápida no cigarro.
— Porra, croissant?
— É, e ela gozou mesmo assim, o que me deixou com mais perguntas do que resposta. Tô com as marcas até agora. — Puxou a gola da camisa para mostrar uma linha vermelha na clavícula. — A mulher é do jurídico, pode acabar com minha vida profissional só com um carimbo. Mas, pra falar a verdade, valeu cada risco de demissão.
Mikael não parou, nem mudou o ritmo do passo. Apenas lançou um olhar seco na direção deles, que foi o suficiente. O da gola ajeitou a postura, soltou o cigarro com certa culpa e os dois se calaram.
Eu só segui ao lado, fingindo que não tinha ouvido nada. Mas era impossível não ouvir. A forma como falavam dela com aquele meio-tom de deboche e admiração doentia me deu vontade de perguntar se aquele tipo de abuso de poder era moeda corrente ali dentro.
— Muito profissional o clima por aqui. — murmurei.
Talvez naquela estrutura, tudo tivesse um custo. Até indignar-se.
— Você já tinha ouvido falar da gente antes de tudo isso? — perguntou de repente.
— Já ouvi falar num jornal que passava meio-dia.
— Espero que não tenha ouvido o mesmo de sempre. Estamos sem tempo pra convencê-los de que a gente não é o vilão da semana.
Subimos uma pequena escada lateral, passamos por um corredor com janelas largas — do outro lado, um pátio interno, vazio, com bancos de concreto e um jardim malcuidado. Do lado de cá, mais uma fileira de portas fechadas, cada uma com um visor digital exibindo nomes de setores: Contenção, Registros Intermediários, Estabilização Térmica.
— Vocês sempre foram assim… discretos? — perguntei.
— Discretos é uma forma gentil de dizer que ninguém quer saber que a gente existe. A U.E.C. nunca vai ser manchete. Somos úteis o suficiente pra não serem capazes de nos extinguir, mas desconfortáveis demais pra defender em voz alta. Não é bom pro governo admitir que metade das operações de contenção acontecem dentro das próprias fronteiras.
— E as outras agências?
— Fingem que não conhecem a gente. Às vezes, até acreditam nisso. Outras vezes, nos chamam quando a sujeira sobe demais pela janela.
Descemos uma rampa estreita logo depois do corredor e dobramos à direita, para onde apontava um letreiro na parede com a inscrição “ENFERMAGEM TÉCNICA 3-A”. O painel ao lado exibia parâmetros em tempo real, como pressão atmosférica da sala, temperatura controlada e status dos sensores Mephisto.
Mikael passou o crachá pelo leitor e a porta se abriu com um leve deslocamento de ar, mais silencioso do que se esperaria de um espaço onde supostamente tratavam de corpos danificados.
Em seu interior, tudo era excessivamente limpo, claro e esterilizado até no cheiro. A iluminação era constante, branca e intensa, mais importante para enxergar os defeitos do que para encontrar conforto. Ao fundo, uma mulher, sentada atrás de uma escrivaninha de metal opaco, mexia em um tablet com os óculos caídos no nariz. Seu cabelo era preto e preso em um rabo de cavalo apertado. Usava o uniforme da enfermaria: calça preta, camisa de mangas justas e um colete branco.
— Olha só. — disse ela sem tirar os olhos da tela — O menino milagre chegou inteiro.
Mikael deu um passo à frente e indicou com a cabeça que eu entrasse. Fui até o centro da sala, onde uma plataforma metálica me esperava. Atrás de mim, ouvi o clique da prancheta sendo deixada sobre a mesa.
— Krynt, né? — perguntou, levantando os olhos
Assenti.
— Trouxe seu bicho de estimação pra eu dar banho ou é só exame de rotina?
Mikael soltou um suspiro quase imperceptível.
— Segurança, Nancy. Primeira leitura desde que ele acordou. Não sabemos o que ficou depois da possessão. Quero parâmetros antes de tomar qualquer decisão.
— E você achou que seria legal me avisar antes? Ou preferiu deixar como surpresa no fim do plantão?
— Queria dados limpos pra vê o que tá rodando nele em repouso.
Ela largou o tablet de lado e se levantou da cadeira. Era mais baixa do que eu imaginava. Vinha com um sorrisinho leve nos lábios e um olhar que avaliava tudo ao mesmo tempo.
— Você já tá famoso nos corredores.
— Dizem muita coisa sobre mim.
— Isso é verdade.
Ela parou em frente à plataforma e tocou a lateral da estrutura. A base estalou leve, e braços mecânicos se posicionaram. Sensores desceram do teto como ferrões polidos. Ela apontou com o queixo.
— Sobe aí. Fica em pé, não treme. Essa máquina escaneia padrão energético, frequência neural, temperatura corporal e coisa que nem sei nomear. Vai dizer se você é um risco ambulante ou só mais um trauma de laboratório.
— Como vou confiar nisso?
— Apenas confia. Sou uma Médica de Campo, sei o que tô fazendo. A gente faz o que sempre faz. — Deu um meio sorriso, enquanto ativava o painel. — Eu amo o que faço, mas odeio quando me dão trabalho.
Aproximei-me da plataforma sem apressar os passos. A luz dos sensores acompanhava cada movimento meu, como se já estivesse me registrando.
Toquei a borda da plataforma com os dedos, respirei fundo e subi. A máquina fez um som baixo, ajustando-se ao meu peso. Nancy recuou, ativou a primeira sequência e os braços ao redor começaram a girar devagar.
Mikael cruzou os braços e fixou o olhar no visor.
O escaneamento havia começado. O que realmente interessava, porém, não era o que a máquina mostraria. Eles estavam esperando ver aquilo.
Ao meu redor, braços mecânicos se ativaram, com sensores diferentes em cada um. Um deles projetava um feixe laser que escaneava variações de calor e movimento ao passar lentamente pelo meu corpo; outro exibia uma luz pulsante. Pequenos braços com microagulhas começaram a girar, ainda que não se aproximassem.
Nancy, sentada em uma cadeira, programava tudo pelo painel lateral, com os olhos em um monitor tridimensional do meu corpo em tempo real.
— Frequência beta-alfa está elevada. Padrão atípico para estado consciente, mas dentro dos limites.
Senti uma vibração sob minha pele. A leitura de impulsos elétricos foi ativada por um dos sensores, e o sinal atravessava meu sistema nervoso à medida que mapeava cada extremidade. Um leve zunido se espalhou pelos meus ouvidos. Um segundo depois, o sensor craniano disparou.
— Pico de atividade nas camadas profundas do tálamo. — Nancy continuava, os dedos passando de forma acelerada pelo painel. — Região limbica em estado semi-agitado. Ou ele ainda está em estresse residual… ou tem alguma coisa conversando com ele.
— Alguma coisa? — Mikael perguntou.
Um dos braços mecânicos se retraiu, e outro se estendeu com um disco prateado. Comecei a sentir minha pele sendo puxada, com a sensação de que algo estava tentando sair de dentro de mim. Um contorno ao redor, sutil e irregular, feito de energia negativa, flutuou brevemente na tela, não apenas no meu corpo.
Nancy afastou o rosto do visor, os lábios franzidos.
— Ele não tá possuído agora, mas o resquício não saiu. Não é um hospedeiro comum.
— Explica isso.
— Ainda tem traços que permanecem ativos. É como se ele tivesse absorvido parte do padrão do Mephisto.
— Um tipo de hibridização? — Mikael perguntou, e Nancy assentiu.
— Ele não precisa estar possuído pra ser uma arma. A mera existência dele já interfere no espaço.
A plataforma começou a desacelerar. Os sensores recolheram os braços e as luzes piscaram uma vez antes de se apagarem. O zunido sumiu. Mas dentro de mim, algo ainda vibrava.
Nancy voltou para o terminal, puxou os dados em uma tela auxiliar e disse:
— Se você tiver surtos de memória cruzada ou visões que não são suas, me avisa. Isso pode indicar uma sobreposição identitária.
— Isso é exatamente o quê?
— Significa que talvez você e o que te possuiu estejam começando a virar uma coisa só. Aí fica difícil saber quem sonhou o quê, quem odiou quem… ou quem puxou o gatilho.
— Parece ótimo.
— É uma merda, mas pelo menos você tá funcional. Por aqui, isso já conta como saúde estável. — Piscou, tirando os dados da tela e salvando num arquivo codificado. — Vai viver. Mas se começar a ouvir vozes mandando esfolar o Mikael, me dá um toque antes. Pode ser que ainda dê tempo de separar vocês dois sem bisturi.
Nancy descruzou as pernas e empurrou a cadeira para trás com os calcanhares, os olhos fixos na tela como se, enfim, alguma peça tivesse se encaixado. O cenho suavizou por um instante, e os ombros relaxaram de leve, mas não durou. Ela se levantou, devagar, com as mãos apoiadas nos quadris, o corpo inclinado para frente enquanto ainda acompanhava os números piscando no monitor.
— Ele vai trabalhar com a gente. — disse Mikael.
A mulher ergueu o olhar e virou o rosto com um giro lento de pescoço.
— Trabalhar? — repetiu, arrastando a palavra, com uma leve inclinação da cabeça que fazia parecer sarcasmo, embora o sorriso que nasceu nos lábios fosse mais cínico que divertido. — Então é por isso que me trouxe ele aqui antes de explicar a parte difícil.
Ele respondeu só com um aceno curto, os braços cruzados, o corpo firme contra a parede, sem sombra de arrependimento no rosto.
Nancy soltou um sopro entre os dentes, ajeitando a faixa do relógio no pulso com um dedo impaciente.
— Nesse caso… ou a gente arruma reforço, ou aprende a rezar em outro idioma.
— Vamos improvisar.
Ela voltou o olhar pra mim. Nenhuma mudança brusca no rosto, mas o jeito como apertou os lábios antes de sorrir denunciava que ela já pensava em possibilidades demais.
— Bem-vindo à equipe, garoto. Só tenta não morrer na primeira semana. Dá trabalho demais preencher papelada de cadáver novo.
Mikael descruzou os braços e balançou levemente a cabeça, fazendo sinal de saída. Nancy já voltava à cadeira, onde recolocou os óculos e retomou o uso do tablet feito como se nada de estranho tivesse acontecido ali.
Seguimos para fora e a porta se fechou.
O gosto amargo em minha boca me dizia exatamente o que estava acontecendo. Não havia compaixão para me salvar. Eu era apenas um instrumento, uma arma para ser usada como eles quisessem.
Senti uma forte mistura de traição e repulsa que me deixou furioso. Isso não era liberdade. Era uma prisão definitiva, e eu não conseguia decidir o que era pior: ser um peão no jogo depravado de outra pessoa ou morrer em meus próprios termos.
— Isso… é sério?
— O quê? Mas é claro! — Riu-se, esfregando sua mão sobre meus cabelos.. — Essas criaturas… Elas operam fora das regras. São uma carta fora do baralho que atrapalha nossos planos cuidadosamente elaborados.
Ele ergueu o dedo indicador, dando continuidade à explicação.
— Eles são os predadores do ápice, você vê. Os que estão no topo da cadeia alimentar, ditando o fluxo da vida e da morte com um simples golpe de uma garra ou um relance de uma presa. E quando eles se voltam para a humanidade… — Deixou a frase inacabada, a ameaça não dita pesando no ar. — Prefiro nem imaginar.
— Ainda é muito estranho…
— Basta saber que você, trabalhando com a gente a partir de agora, vai nos ajudar muito.
— Tá… espere um minuto. — disse, surpreso com a repentina oferta de emprego. — Acabei de chegar aqui, ainda nem desempacotei meu kit de caça a monstros.
— Parece que você não precisa desfazer muito as malas, então. Temos uma situação, e seu… conjunto de habilidades único o posiciona perfeitamente para isso.
— Com você? — perguntei, com as sobrancelhas levantadas. — Quer dizer… Com vocês?
A maneira como Mikael expressou isso, tão indiferente, me fez pensar se ele entendia a gravidade da situação.
O sorriso dele se alargou.
— Digamos apenas que com alguém como você a bordo, as chances de sucesso aumentam drasticamente. Além disso, preciso convencer os superiores, especialmente o líder. Sua presença falará por você.
Uma inquietação nervosa borbulhou em meu peito.
— Tá, tá, entendi. Tô dentro. Mas antes de partirmos para atacar monstros, posso pelo menos ter uma ideia do que estamos lidando? Como é que são esses… Mephistos, né?
Mikael encolheu os ombros, um movimento casual que parecia deslocado considerando o peso de suas palavras.
— Pense neles como primos distantes. Forma semelhante, poder semelhante, capacidade semelhante de ser um verdadeiro pé no saco.
— Primos distantes, hm… — Ponderei, com os dedos segurando o queixo. — E eles são… como eu? Possuídos?
— Mais ou menos. A maioria são apenas fantoches de algo. Você… Bem, parece ser uma raça totalmente diferente. O primeiro de sua espécie, até onde sabemos. É exatamente por isso que precisamos de você.
— Nem parece que você é um sociopata.
Uma bufada de surpresa escapou de meus lábios, transformando-se em uma risada.
— Hahaha! Que tipo de elogio é esse?
— E não é um? Vindo de você, isso soa quase como um elogio, considerando a companhia que tenho agora.
Mikael levantou uma sobrancelha, com um lampejo de diversão dançando em seus olhos.
— Não dá pra negar, mas há uma certa… humanidade em seu tipo de crueldade. Você pode ser um Mephisto, mas não é desprovido de consciência.
Uma rajada de ar da fornalha me deu as boas-vindas quando saí dos limites abafados do edifício. Em uma única respiração, o enorme vazio do ar ressecou minha garganta, mesmo que teoricamente fosse fresco. Até onde a vista alcançava, acima de mim, não havia nada além de um azul que se estendia em todas as direções, ocasionalmente quebrado pelo movimento de abutres em térmicas invisíveis.
Os raios de sol faziam a terra fraturada brilhar como uma onda de calor. Os arbustos esqueléticos eram a única flora que ousava sobreviver; eles estavam contorcidos como se estivessem em agonia perpétua, suas folhas reduzidas a cascas frágeis que farfalhavam com o murmúrio constante do vento.
— Cacete, como as pessoas vivem aqui?
— Relaxe. Esse calor faz parte da vida aqui.
Mas relaxar era a coisa mais distante da minha mente. Minha testa estava suando, e cada respiração trazia uma onda abrasadora de ar quente para meus pulmões.
— Mas nem ferrando que vou passar horas aqui.
A diversão de Mikael desapareceu, substituída por uma centelha de aborrecimento. Ele me deu um forte cascudo na cabeça.
— Merda! — gritei, segurando minha cabeça latejante. — Pra que isso?!
— Você ainda tem muito que aprender, garotinho da cidade. Esse calor não é seu inimigo. É algo que você tem que respeitar, aprender a conviver.
Eu o encarei, com a visão um pouco embaçada pela dor na cabeça.
— Entendi… — murmurei, enxugando uma gota de suor que picava meu olho. — O que vai ser agora?
Mikael olhou para a paisagem ao seu redor. O sol incidia incansavelmente, transformando a paisagem já estéril em uma miragem cintilante. Os galhos esqueléticos das acácias não proporcionavam muito alívio do calor, oferecendo apenas uma sombra falsa.
— Considerando que esse local é mais espaçoso, ele é ideal para avaliar suas habilidades físicas.
— Um treinamento, então?
— Sim. Leve isso como sua primeira lição. Respeite o calor, ou ele o derreterá mais rápido do que manteiga em uma frigideira.
Mikael bateu as palmas. Isso me tirou da névoa de minhas próprias ansiedades.
— Hm?
Então, de repente, houve um clarão de chamas saindo da porta. Uma impressionante exibição de fogo direcionado, concentrado sob os pés do recém-chegado, lançou-o sobre nós.
Com facilidade, ele aterrissou, e as chamas se apagaram tão logo chegaram.
De pele bronzeada, alto e esguio, com um físico bem treinado, seus olhos eram de um vermelho-alaranjado que tinham a mesma tonalidade ardente de seus cabelos curtos e lisos, refletindo as brasas que haviam dançado ao seu redor recentemente. Estava vestido com o uniforme oficial da agência, com um sobretudo preso na cintura.
— E aí, pessoal! — disse, saudando-nos com um largo sorriso.
Lá no fundo eu senti uma imensa impressão.
— Tá livre, Lewis?
— Livre e solto! Por quê? E, a propósito… quem é você?
Verificando tudo o que pôde pensar, Lewis aproximou-se mais de mim, segurando a ponta do queixo e estreitando os olhos.
O tempo que passou, três segundos, já havia trazido desconforto.
— Ahh! — Sua surpresa foi como um choque de realidade. — Caramba, verdade! O Kael me contou sobre você.
Lews foi afastado quando Mikael o puxou para longe, segurando-o pela testa.
— Eu queria que você avaliasse esse garoto, pelo menos no teste de combate físico. Mas se for possível, o corpo também.
Andou para trás de mim, segurou meu braço e ergueu.
— Olha só, um franguinho desse não vai sobreviver por muito tempo.
Mikael estava apenas de zombaria, mas meu peito se preenchia de ódio.
— Eu só sei usar os pés, os meus punhos nem tanto.
— Não tem problema, só faz o meu trabalho. Eu preciso me resolver com a vice e o líder ainda.
Com um sorriso cínico, virou-se para partir, esquecendo-me ali simplesmente.
— Espera aí! Eu pensei que esse seria o nosso treino!
— Isso aí, você apenas pensou. Vai ficar pra próxima. O Lewis cuida disso.
— Desgraçado!
O garoto gargalhava bastante.
— Hahaha! Bem — ele puxou um suspiro. —, vamos começar.
Puxou sua camisa para cima, fazendo-a voar e cair em uma pilha amassada no chão empoeirado. A exposição repentina da parte superior de seu corpo me assustou. Músculos magros ondulavam sob a pele beijada pelo sol, evidência de incontáveis horas levando seu corpo ao limite.
Uma pontada de inveja, aguda e indesejável, arrepiou meu peito.
— Cara… Isso é necessário?
— Calma, calma. Ainda não começamos. Aquecimento, só isso. Só relaxa um pouco as coisas.
Lewis se abaixou, seus movimentos se tornando lentos e deliberados enquanto esticava as pernas, depois girou os ombros, os músculos contraindo e relaxando como uma máquina bem lubrificada.
— Nunca vi nada assim, aliás. Você é humano e Mephisto, que doideira.
Se endireitou, com um brilho malicioso nos olhos.
— E aí? Pronto? Tô pegando fogo!
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