Índice de Capítulo

    A sala para onde ela foi levada era pequena, forrada com painéis acústicos opacos. O agente parou ao lado de um terminal. Raven ainda não havia dito nada. Tampouco precisava dizer. Sua atenção vagava, sem se fixar em nada fixo.

    — As câmeras da ala sul foram finalmente descriptografadas. Parte do sinal estava corrompido, mas conseguimos restaurar doze minutos de vídeo, três horas antes do corpo ser descoberto.

    Raven retirou a prancheta do suporte metálico fixado na parede externa. As folhas estavam presas sob o grampo superior, levemente marcadas por vincos de uso, mas legíveis. Ela passou os olhos pelas linhas atenciosamente.

    Data/Hora da Coleta Inicial: 17/08 — 07h42
    Temperatura Ambiental Estável no Registro de Gravação: 19,1 °C
    Status dos Sistemas de Segurança: Nenhum alarme ativado durante o intervalo crítico
    Códigos de Acesso: Sem alterações nos logs dos últimos registros
    Protocolo de Abertura: Concluído pela Equipe Técnica 02, sob solicitação de manutenção elétrica emergencial

    Localização do Corpo: Encostado no painel isolado da parede norte, parcialmente oculto por caixas de material inativo
    Estado do Cadáver: Severamente comprometido. A região facial apresentava colapso estrutural completo — massa óssea fragmentada, perda total de identidade visual, tecidos moles esmagados, tonalidade acinzentada com áreas localizadas de necrose precoce
    Ausência de Lesões Periféricas: Nenhuma marca de arrasto, abrasão ou impacto no entorno imediato do corpo. Nenhum indicativo de luta corporal

    Vestígios Forenses:
    — Impressões digitais: não identificadas
    — Hemoglobina: presente em baixos volumes, dispersa em padrão incompatível com agressão direta
    — Resíduos biológicos sob as unhas: negativos
    — Agente externo detectável: inconclusivo, material coletado em análise na Unidade D

    Registros Sonoros/Audiovisuais:
    — Câmeras internas falharam entre 02h13 e 03h07
    — Sem arquivos recuperáveis no intervalo

    Ela virou a página e olhou por um segundo mais. Não havia nada para contrariar aquele relatório. Nenhuma narrativa acoplada, apenas fatos. 

    — Há três dias e só agora conseguimos imagens?

    O agente assentiu, incômodo evidente nos olhos.

    — Alguém apagou parte do circuito. Não foi um erro de sistema. Foi intervenção manual. E muito cuidadosa.

    Ela continuou a ler. O nome estampado ainda parecia lhe causar estranheza. Laura Rossi. Agente de campo de classe veterano. Trinta e dois anos. Cumpria turnos longos e era bastante notada. No entanto, os registros mais antigos revelavam uma nota muito discreta: após um incidente não detalhado nos arquivos abertos, ela havia sido transferida do Setor de Análise Classificada.

    — O que Laura estava fazendo naquela sala àquela hora? — Raven perguntou, ainda sem levantar os olhos do papel.

    — Não sabemos. Não há justificativa para a presença dela no horário em que apareceu nos registros. Nem autorização de acesso. Tecnicamente, ela não deveria estar lá.

    — E estava sozinha?

    — Até onde as imagens mostram, sim. Mas nos últimos três minutos do vídeo… tem algo estranho.

    Ele se virou para o monitor e ajustou a gravação. A imagem tremia levemente. Laura atravessava o corredor, dando olhares por cima do ombro com frequência. Os passos eram dados com pressa. A porta da sala se abriu e ela entrou. A câmera externa não registrou mais nada. A única coisa que se ouviu foi o som da porta se fechando. Trinta segundos depois, um ruído digital e uma luz piscaram na tela e se apagaram. O vídeo retomou apenas com o técnico de manutenção tendo descoberto o corpo horas depois.

    Raven inclinou-se levemente, visando além da imagem.

    — Ninguém entrou ou saiu nesse intervalo?

    — Nada registrado. Mas os sensores acusam uma descarga eletromagnética exatamente no momento do blecaute do vídeo. — O agente pausou. — Pode ter sido intencional.

    Com o cenho franzido e a expressão contida, ela absorvia os detalhes dos objetos com a acuidade de quem sabia o que procurar. Só não podia demonstrar. Ainda não.

    — Isso vai escalar para o Comitê de Segurança Interna, se continuar nesse ritmo.

    — Já está em análise. O líder quer um nome. E quer rápido.

    Raven cruzou os braços, estudando mais uma vez os dados. O desconforto já não era só físico. Era como se houvesse algo errado na costura das circunstâncias. 

    — Mas o que chamou atenção foi o tecido residual encontrado sob as unhas. Não é pele  e nem sangue. É algo… que os Pesquisadores ainda não conseguiram identificar.

    Raven manteve o rosto imóvel, mas o descompasso breve da respiração denunciou um ponto de impacto interno. O olhar dela baixou lentamente até a prancheta, e ali ficou por mais tempo do que o necessário. Leu de novo o parágrafo grifado, como se a repetição pudesse suavizar a estranheza daquilo. 

    Mas não suavizou.

    Fechou o relatório com mais cuidado do que antes. Colocou-o sobre a mesa, alinhado às bordas.

    — Mantenha isso entre nós por enquanto. Nenhum relatório externo, nenhuma notificação paralela. Quero isso restrito ao núcleo até segunda ordem.

    — Sim, senhora.

    Com os olhos na borda da mesa, Raven permaneceu assim por alguns segundos. Aquele silêncio já não era uma simples pausa, mas o intervalo exato em que sua mente, treinada para filtrar o caos, organizava peças dispersas em busca de um padrão. E, ainda que em meio àquela placidez, uma inquietação a perturbava. Uma inquietação discreta, um fio torto puxando a situação para o lado errado.

    — Alguém próximo a ela? — perguntou, finalmente. — Alguém que pudesse saber o que ela andava acessando, que rotina seguia… Que tipo de erro cometeu.

    O agente passou os dedos pela lateral do tablet antes de responder.

    — Owen Keller. Trabalha na mesma divisão dela. Ele e Laura dividiam turnos em algumas madrugadas. Nada oficial, mas há trocas de mensagens internas, compartilhamento de terminal, requisições assinadas por ambos. Os horários não coincidem com as pautas da divisão. A gente achou estranho.

    — Ele já foi abordado? 

    — Não. Ainda não o colocamos na lista de interrogatórios. Ele parece abalado, tentou acesso aos registros de segurança do setor quando soube da morte. A solicitação foi aceita pela vice-líder. Deve tá por aqui na base, supervisionando restaurações dos arquivos danificados da semana passada. Mas…

    O mas pairou no ar, e Raven virou o rosto devagar, o olhar indo direto ao agente.

    — Mas?

    — Não sei dizer se ele tá tentando ajudar ou só se manter ocupado. Sabe, esconder alguma coisa de si mesmo… ou dos outros.

    Esta assentiu para encerrar a conversa. Em vez de dar ordens, porém, empurrou o relatório para o lado, afastou a cadeira e se levantou.

    — Não preciso que tragam ninguém. — disse, ajustando o sobretudo. — Eu mesma vou até ele.

    O agente arqueou uma sobrancelha, surpreso.

    — Quer ir agora?

    — Agora. Antes que ele crie uma narrativa. Antes que… se convença de que não sabe de nada. 

    Ela cruzou a sala sem se despedir e mais explicações. Ver Owen em seu ambiente, confrontado de forma inesperada, ofereceria mais do que qualquer interrogatório formal poderia extrair. As máscaras escorregam quando ainda não foram vestidas.

    Enquanto caminhava sob a luz fria e constante no corredor, algo no rosto de Raven mudou. Seu maxilar estava mais rígido, seu olhar, menos brando. Laura estava morta. Isso era inegociável. Mesmo tênues, os rastros nunca desapareciam por completo. 

    Sempre restava um vestígio, uma dobra no tecido da ordem. E se Owen Keller estava ali, no meio do caminho entre a vida de Laura e sua morte brutal, era porque ele carregava algo. Informação. Cumplicidade. Medo.

    Ela descobriria qual deles.

    Raven desceu os dois lances de escada sem conversar com ninguém. No segundo subsolo, o ar era mais pesado pela natureza do que ali se fazia: armazenamentos longos, auditorias póstumas, dados rasurados que nem sempre se queria encontrar. Quando a porta metálica deslizou para o lado, o som do mecanismo soou mais alto que o habitual.

    Dois agentes estavam próximos à divisória de vidro fosco que separava a zona de recepção do acesso aos arquivos remotos. Eles tinham a postura típica de quem trabalhou tempo demais sob pressão devido à coluna levemente curvada e aos olhos atentos demais, mais cansados de ver o que veem do que vigilantes. 

    Um deles, um homem de terno cinza-escuro, levantou os olhos ao vê-la.

    — Senhorita Raven, bom dia.

    Olhou para ele e depois para a mesa onde uma tela exibia registros de tráfego interno. A presença dela ali não era habitual, e isso se refletia no breve calar dos dois homens, numa espécie de respeito tácito que beirava o desconforto.

    — Owen Keller. Onde está?

    O agente hesitou por um instante, buscando disfarçar a consulta ao monitor, mas não conseguiu. Já sabia. O nome, o setor, o que ele fazia. Temia uma resposta errada, ou talvez pelo receio de dizer algo inadequado. Ou porque sentia medo de dar uma resposta errada à pessoa errada.

    — Sala de Decodificação Trinta e Quatro. — respondeu, com um leve movimento de cabeça para o fim do corredor. — A sessão especial dos restauradores. Está trabalhando na recuperação de dados de dispositivos danificados da Zona B, as câmeras que falharam na noite da morte de Laura Rossi.

    Raven sustentou o olhar por um segundo mais do que o necessário e seguiu.

    A Sala Trinta e Quatro ficava afastada do núcleo técnico, um pouco esquecida pelas rotas principais da agência, como uma cicatriz coberta por bandagens frias demais para serem acidentais. Era sempre reservada às tarefas que exigiam discrição — não apenas pelo nível de sigilo, e sim pelo tipo de verdade que se deixava entrever ali. 

    Nada era exatamente bruto naquele espaço, tampouco improvisado, tudo carregava uma natureza incômoda de ser anterior à versão final dos fatos. Entrar ali significava cruzar uma linha onde as narrativas ainda não estavam seladas pelo controle institucional. Uma espessa névoa de tempo entre o acontecimento e a justificativa era o bastante para engolir reputações.

    O corredor de acesso era mais estreito do que ela se lembrava. Os cabos que desciam pelas bordas do teto não estavam desorganizados, ela notou, embora houvesse neles um excesso de presença, uma redundância que lhe irritava. 

    A cada passo, o silêncio entre as paredes se adensava com uma espécie de expectativa íntima, ardente e febril. O ar ali dentro tinha uma temperatura diferente, e Raven, mesmo com o casaco fechado, sentia uma espécie de pressão sob a pele, a sensação de que algo nela própria estava sendo vasculhado antes mesmo de alcançar a porta.

    Ela sabia do potencial de Owen com os dados certos. Sabia também que, dependendo do que ele já tivesse recuperado, não haveria volta.

    Parou diante da tela de acesso. Azul. Estava ocupada. O protocolo exigia que se esperasse, que se anunciasse e que se entrasse com autorização. Sem perder tempo, ela digitou o código. Qualquer minuto perdido agora valia mais do que estava disposta a pagar.

    A porta abriu para o lado lentamente.

    Owen não a ouviu entrar. Estava de costas, o corpo ligeiramente inclinado sobre uma mesa estreita, os dedos deslizando por arquivos digitais exibidos em três painéis suspensos. A sala era silenciosa, exceto pelo leve zumbido do projetor holográfico e o toque de seus dedos contra o vidro. À sua esquerda, um copo de café já frio deixava um anel escuro sobre um fichário físico. 

    Algo nele estava fora do lugar, mesmo que de modo discreto.

    Raven parou atrás, a uma curta distância, para observá-lo. Seu cabelo estava mais comprido do que recordava. O corte irregular deixava claro que ele não tivera tempo ou paciência para se preocupar com a aparência nos últimos dias. Ou talvez fossem noites sem dormir. 

    A investigação da morte de Laura consumira o tempo de todos, mas em Owen isso se manifestava de maneira mais evidente. Sua postura dizia mais sobre uma concentração obcecada do que sobre cansaço. Ele estava, nitidamente, tentando fechar um quebra-cabeça, e isso a incomodou.

    — Faz quanto tempo que você está aqui dentro?

    Owen ergueu os ombros devagar, como se voltasse à superfície após um mergulho longo demais. Virou-se sem surpresa. Os olhos, fundos e atentos, demoraram um segundo além do necessário para focar no rosto dela.

    — Algumas horas. — Passou a mão no queixo, tateando uma barba mal feita que o deixava mais velho do que era. — Achei que fosse receber um chamado. Não esperava uma visita.

    — Ache suas expectativas irrelevantes. 

    Owen fechou os painéis e empurrou a cadeira para o lado, afastando qualquer distração entre eles. Só então olhou diretamente para ela, dessa vez com algo mais por trás da neutralidade.

    — Você leu os relatórios? — perguntou.

    — Li tudo que me deram. Quero o que não colocaram neles.

    Um impasse se instalou entre os dois. A hostilidade não era o motivo do desconforto. A pausa era do tipo provocado quando duas pessoas sabem demais umas das outras para que qualquer mentira funcione com leveza.

    Owen coçou o canto do olho, respirou fundo e depois apontou para um dos dispositivos desligados sobre a bancada.

    — Laura acessou servidores restritos trinta e seis horas antes de ser encontrada. Usou uma senha que não era dela. O código tava registrado em nome de alguém que foi aposentado por conduta imprópria. O nome foi apagado no mesmo minuto em que ela entrou. Tudo limpo, sem rastros. Mas eu recuperei os logs. Tô perto de cruzar com as gravações de backup que não deveriam mais existir.

    Raven não demonstrou emoção, embora sua mente começasse a avaliar os riscos com uma inquietante preocupação.

    — Tem os arquivos?

    — Quase todos. — respondeu, cruzando os braços. — Só falta a última camada. E depois… bom, aí vai ser difícil alguém ignorar o que ela descobriu.

    A mesma sentiu a garganta secar, mas sua expressão permaneceu intacta. Ela caminhou até a mesa, recolheu o copo de café esquecido e o levou até o lixo no canto da sala. 

    Precisava de um segundo.

    Respirou devagar, uma vez só. Voltou à mesa e puxou a cadeira ao lado dele e sentou.

    Ela cruzou as pernas devagar, ajeitando a bainha do casaco. Seus olhos fixaram-se em Owen por um instante mais longo, examinando não apenas o rosto cansado, mas o modo como ele evitava encará-la diretamente. Estava alerta. 

    — Sempre tão atento. — disse, com um tom baixo. — Quando todos seguiam ordens sem levantar a cabeça, você era um dos poucos que perguntava por quê.

    O homem moveu os olhos brevemente em direção ao monitor apagado, depois de volta para as próprias mãos, fechadas sobre os joelhos.

    — Isso é raro, Owen. Valioso. Mas também… perigoso.

    Keller esboçou uma expressão de leve desapontamento, não por surpresa, mas porque aquilo confirmava seus piores receios.

    — Perigoso pra quem? 

    Raven soltou um leve suspiro, inclinando-se para frente, os cotovelos apoiados nas coxas, as mãos entrelaçadas. Seus olhos estavam calmos, mas sem doçura.

    — Pra você. Ninguém gosta de alguém que sabe demais. Muito menos quando esse alguém ainda está vivo.

    Owen soltou uma risada breve, sem humor.

    — Isso foi um aviso?

    — Não exatamente. Você está mexendo numa coisa que vai levar pra cima e pra baixo. Nem todo mundo vai cair junto com elegância.

    Finalmente lhe olhou diretamente, e pela primeira vez desde que Raven entrou na sala, seus olhos estavam em igual altura. Tinha algo ali que não era medo. Era compreensão.

    — Você também sempre teve esse talento. A forma como fala, como mede as palavras. Tem gente aqui dentro que treme só de ouvir você caminhar no corredor. Deve saber disso, né?

    — E você treme, Owen?

    Ele encarou o chão por um segundo, depois a olhou de volta.

    — Na verdade, nunca confiei em você desde o primeiro dia em que te vi. Você fala baixo demais. Responde pouco. Nunca parece surpresa com nada.

    Um leve sorriso apareceu nos lábios dela, mas não chegou aos olhos.

    — Mesmo assim está me mostrando tudo.

    Owen balançou a cabeça lentamente.

    — Não. Eu ainda não te mostrei nada.

    Ela se recostou, a mão batendo de leve na borda da mesa.

    — Então vamos parar de dançar, Owen. O que você quer? Um nome? Um aceno de segurança? Um conselho?

    o agente respirou fundo. A tensão no rosto, antes discreta, se agravou.

    — Quero entender o que fizeram com ela. Quero saber por que ela precisou morrer daquele jeito.

    A palavra morrer saiu mais amarga do que ele planejava. Raven percebeu isso.

    Ela se levantou. Andou até a bancada, passou os dedos pelas bordas de um monitor apagado, depois tocou um dos cabos desalinhados, como se estivesse só matando tempo.

    — Talvez eu me preocupe contigo. Eu acho que existem coisas que não deveriam ser tocadas. Não por moral, nem por ética. Mas porque machucam e voltam.

    Suas palavras soavam com a textura e a entonação certas, não lhe escapava nada. Não vinha da fala, viera antes dela e se manifestava em uma hesitação breve, difícil de notar, antecedendo cada frase. Como se ela quisesse esconder algo.

    — Quer que eu pare, é isso?

    Raven virou-se, e naquele instante a tensão flutuou entre os dois. Ela não respondeu. Apenas o encarou por alguns segundos. O suficiente para fazer daquele momento uma escolha.

    — Quero que você pense. Só isso.

    Owen a encarou, mas seus traços já não demonstravam a mesma intensidade do início. A desconfiança ainda existia, sem dúvida, e começava a se dissolver na confusão que crescia ali — uma névoa feita de dúvida e exaustão. A ausência de respostas o oprimia, porém era o peso da solidão em busca de algo que talvez nunca tivesse forma. 

    Raven sabia disso. Conhecia esse tipo de desespero.

    Ela caminhou de volta e se recostou na borda da mesa ao lado dele. Os braços cruzados, a postura tranquila. 

    — Owen, escute. Você quer justiça, entendo isso. Você quer a verdade. Todos nós sempre queremos, até descobrir que a verdade não resolve nada. Às vezes, ela não muda o que aconteceu. Só muda o que resta de você depois.

    Ele virou o rosto para o lado e continuou ouvindo.

    — Laura estava mexendo onde não devia. Sozinha, sem suporte, sem acesso aos bastidores certos. Agora ela está morta. Você está indo pelo mesmo caminho, só que mais lento, com mais obstáculos e vai acabar da mesma forma. Só que sem deixar rastros.

    Owen franziu a testa. Uma linha de resistência ainda não cedera ali. Para vencê-la, era preciso pressionar mais, sem usar força, apenas elegância. Não era um tolo. Era um homem guiado pela ética, mas não cego para as circunstâncias.

    — Muita gente aqui dentro não tem nem metade do que você carrega, mas o talento, quando mal usado, é só mais uma porta aberta pra coisa errada entrar. E ela entra. Sempre entra. Não adianta bancar o herói. 

    Ele olhou para as mãos. As unhas curtas, os dedos marcados pelas longas horas de busca e coleta. As digitais de alguém que realmente acreditava em algo maior que o sistema. 

    Quando finalmente falou, a voz veio rouca:

    — Então quer que eu me afaste, que eu engula tudo que vi, que eu finja que nada aconteceu?

    Raven se inclinou o suficiente para que sua presença o cercasse.

    — Quero que você escolha continuar vivo, lúcido, útil. Não estou te pedindo pra fingir, estou te dizendo que tem mais coisa em jogo do que você vê nas telas. Laura sabia de algo que ultrapassava o que ela podia segurar. Você quer repetir isso?

    Owen a fitou, e por um segundo tudo se imobilizou. O som das ventoinhas no teto. A luz branca sobre os olhos. O calor morno da tensão entre os dois.

    — Se você sabe de algo, devia me contar. — disse ele. 

    Raven sorriu, ainda que com tristeza. Ele não sentia pena, apenas sabia que já o havia vencido.

    — Um dia, quando souber que você está pronto. Agora, se quiser mesmo fazer algo que honre a memória dela, destrave os arquivos que coletou. Entregue pra auditoria interna. Eles vão saber o que fazer.

    — Vão arquivar, como sempre fazem.

    — Talvez. — Deu de ombros. — Mas você vai continuar trabalhando. Ainda é possível mudar as coisas por dentro. Morto, só se tornará mais um dado apagado do sistema.

    Owen baixou o olhar, fixando-o nos próprios joelhos por alguns segundos. A mandíbula tensa denunciava o que ele ainda não admitia em voz alta. 

    Levantou-se e andou até o terminal principal encostado na parede. Passou a identificação biométrica pela interface de acesso e digitou a sequência de autenticação manual.

    O visor se ativou com um leve ruído eletromagnético e um brilho azulado dominou a tela. As janelas de código começaram a abrir em cascata: 

    Criptografia SHA-512, compressão em arquivo único, protocolo de verificação dupla

    Ele não hesitou. 

    A migração para o servidor interno da Divisão de Auditoria foi executada usando o caminho protegido reservado para investigações sensíveis. Em menos de um minuto, os arquivos foram ocultados em um diretório criptografado.

    Ao final do processo, Owen tirou a mão do teclado e olhou para o visor sem dizer nada. Depois, girou lentamente o corpo, encontrando o olhar de Raven por um instante.

    — Pronto. Você venceu. — disse, a voz sem ressentimento, mas sem qualquer entrega de gratidão.

    Não esperou por resposta. Caminhou até a porta, recolheu o crachá esquecido sobre a mesa auxiliar e saiu. Nem sequer fechou a porta atrás de si. O trinco permaneceu entreaberto, de modo que um filete de luz entrou para a sala.

    A ausência de Owen não tornava o ambiente mais ameno, apenas expunha o que antes era abafado por sua presença. O zumbido constante das ventoinhas preenchia a sala, misturado ao calor discreto dos cabos e monitores, à umidade envelhecida do ar e à lembrança esquecida de vozes interrompidas. Olhando para o terminal aceso, ela notou o cursor pulsante na tela, esperando por algo.

    A pasta com o nome de Laura estava entre as últimas acessadas, completamente visível, fazendo um convite. Bastaria um toque para abri-la. Tudo o que era necessário era um gesto simples, rápido, definitivo. Sabia o que estava ali, em cada arquivo, em cada linha. Conhecia também o risco de abrir qualquer uma daquelas janelas, independentemente do que veria, mas pelo que reanimaria.

    Seus dedos suspensos no ar não tocaram o teclado. Sua intenção vacilou, manifestando-se sem fragilidade. Aquilo não era medo, era o cansaço de lidar com o que já fora encarado uma vez. A exaustão de revisitar o mesmo ponto sem saber se voltaria de lá do mesmo modo também a consumia.

    — Lewis…

    Bastou seu nome para puxá-la de volta à tarefa que havia adiado.

    Raven fechou a aba ativa com um único comando, e o monitor principal apagou num instante. A luz azul desapareceu sem cerimônia. O contraste abrupto entre o brilho digital e a penumbra deixou o ambiente mais carregado, preenchido por sombras densas projetadas pelos cabos pendentes, suportes desalinhados e quinas irregulares das mesas laterais.

    A caneta estava esquecida e girada de lado, com a ponta ainda exposta, próxima ao teclado. Raven a recolheu e guardou no bolso interno do casaco. Os três papéis com anotações manuais, os dois relatórios impressos e o esboço de cronograma foram organizados. As bordas estavam levemente tortas, por isso ela as alinhou com o dorso da mão, sem fazer ruído.

    Caminhou em direção à saída.

    Antes de cruzar a porta, lançou um olhar breve ao monitor apagado, depois deixou a sala. 

    A sala ficou para trás — um espaço onde, por enquanto, ela não voltaria.

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