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    Ao parar na soleira do terraço, por um segundo acreditei ter subido ao andar errado. O espaço monótono e funcional da U.E.C. estava diferente graças às luzes de Natal vermelhas e douradas que iluminavam a penumbra dos arredores, amarradas aos corrimãos de aço em padrões soltos. 

    Uma árvore de quase dois metros se erguia perto da borda; suas esferas refletiam as luzes da cidade ao fundo. O cheiro dominante não era de concreto e vento, mas de canela, peru assado e algo doce, que lembrava torta de maçã. 

    — Excelentíssima plateia! — Ele ergueu sua taça de vinho como um ator saudando seu público. — Eis a verdadeira essência natalina. Comida farta, bebida à vontade e, claro, companhia agradável. Ou, para certos presentes, colegas que conseguimos suportar.

    Do meu lado, Darcy revirou os olhos enquanto ajustava uma guirlanda de plástico dourado no próprio cabelo. A vice-líder raramente baixava a guarda, mas naquela noite a encontrava mais flexível. Sua postura, no entanto, mantinha uma rigidez que traía o esforço de apenas “suportar” as festividades, em vez de verdadeiramente participar.

    — Se você alongar esse discurso, Mikael, a próxima ceia será no Natal que vem. — Raven respondeu sem levantar os olhos da pilha de presentes que organizava sob a árvore. 

    Ela trocara sua habitual seriedade por uma energia mais suave, provavelmente contra a própria vontade. O suéter vermelho com um elfo bordado claramente a incomodava, mas o conjunto era perfeito para a ocasião. Raven usava a peça como uma armadura ridícula; sua expressão era um misto de resignação e desconforto aparente.

    Movi-me em direção à mesa, onde a maioria das pessoas se aglomeravam. O cheiro doce da torta de maçã inundava o ambiente, sobrepondo-se à fragrância do vento noturno no terraço.

    Encontrei Lewis próximo à extremidade da mesa, distante da aglomeração principal. Ele segurava um prato de papel com uma generosa fatia de torta, da qual já haviam sido tiradas várias garfadas.

    — Roubando a sobremesa antes do jantar?

    Lewis engoliu rápido, e no canto da boca ficou uma mancha de recheio amarelo. 

    — Roubar é uma palavra forte, tava só testando a qualidade. — Ele cortou outra fatia pequena com o garfo e ofereceu-me no ar. — Quer um pedaço?

    Antes que eu respondesse, ouvi Mikael dizer ao fundo:

    — … mas alguém avise ao Lewis que ele não pode pegar três pedaços de torta antes de terminar o prato principal.

    O garoto congelou com o garfo a meio caminho da minha boca.

    — Epa…

    A fatia, suspensa no ar, pareceu de repente muito exposta, então a comeu para esconder.

    Foi então que Mandy se aproximou ao nosso lado, de braços cruzados. Olhou de Lewis para o prato vazio, de lá para a migalha no chão e, por fim, voltou a olhar seu rosto ainda inchado de torta.

    — O que é isso, hein? 

    O ruivo engoliu com esforço.

    — Hã… Carboidratos pra energia.

    Mandy pegou um guardanapo da mesa e o estendeu para ele. 

    — Se você passar mal, eu me recuso a te cobrir. Vou só apontar e rir.

    Lewis o pegou e limpou a boca, envergonhado.

    E foi impossível não reparar.

    Mandy estava com um vestido vermelho vivo, na altura dos joelhos, levemente rodado, com uma barra de pelúcia branca balançando a cada mudança de peso de uma perna para a outra. Um cinto preto marcava sua cintura, que estava bem definida. Por cima, ela usava uma capa curta, igualmente vermelha, presa no peito. E, coroando tudo, uma tiara com chifres de rena estava na sua cabeça.

    Fiquei alguns segundos a mais do que devia olhando.

    — O que foi? — perguntou, já mais sorridente, embora constrangida.

    Pisquei para reorganizar o cérebro.

    — Eu só… hã… Você parece ter fugido de um comercial de Natal.

    Os olhos dela brilharam na hora.

    — Sério?

    — É, seríssimo. — Apontei de leve com o queixo. — Isso aí é nível promoção de fim de ano com orçamento alto.

    A garota deu uma rodadinha no lugar, com as pontas dos dedos segurando a saia.

    — Eu amei quando chegou. Fiquei com medo de ser golpe, a internet nunca é confiável.

    — Comprou online? 

    — Uhum. Chegou ontem. Passei a noite provando no espelho. — Riu, um pouco contida. — Valeu cada centavo.

    Lewis pigarreou.

    — Eu posso confirmar que ela desfilou pelos corredores.

    Ao ouvir isso, Mandy virou o rosto indignado a seu encontro.

    — Cala a boca.

    — Só tô dizendo.

    — Pelo menos você testou antes. — falei. — Pior é comprar e descobrir que parece fantasia de festa infantil.

    Ela assentiu rápido.

    — Exato. Já pensou? Eu ia fingir que era irônico, mas no fundo ia doer.

    Lewis inclinou a cabeça.

    — Não, ia doer pra gente ter que mentir dizendo que ficou bom.

    — Credo, você é horrível.

    Mandy entrelaçou os braços, ainda jovialmente risonha, porém com um semblante de falsa reprovação, como se usasse-o para dissimular a diversão que sentia. 

    Lewis encolheu os ombros, muito calmo para alguém que tinha acabado de se entregar.

    — Eu sou sincero.

    — Você devia aprender com o Krynt. Ele pelo menos tenta ser educado.

    O peso do olhar dos dois em mim precisava de um segundo a menos. Levantei as mãos de maneira defensiva.

    — Calma aí… Tentar é a palavra-chave.

    — Viu? — Olhou de volta para o ruivo. — Até admite.

    Lewis deu uma breve risada.

    — Educado ele é quando não tá julgando em silêncio.

    Não respondi, porque, no fundo, não estava errado.

    “Se ela soubesse…”

    — Vocês dois são impossíveis. — Mandy disse, suspirando.

    — Complementares. — Lewis corrigiu.

    — Tóxicos. — rebateu.

    Um som metálico veio da porta corta-fogo, imediatamente seguido por passos apressados.

    Poucos segundos depois, Arthur Hall finalmente apareceu.

    O uniforme padrão da agência estava amarrotado como podia estar, e em seu rosto trazia sinais de cansaço. Embora não estivesse exausto, parecia estar sob pressão.

    Na mão direita, carregava um pacote simples, embrulhado sem muito capricho.

    — Não comecem sem mim… — disse, respirando fundo. — O dia resolveu não acabar.

    — Olha só — Mikael falou antes de qualquer outro som se impor —, agora sim, o momento mais importante pode começar!

    — Espero que sim. — Levantou levemente o pacote. — Cheguei no limite do aceitável.

    — Bem na hora certa, chefe.

    Arthur sorriu, mas de um jeito sutil. O seus olhos percorreram o terraço, captou as luzes, pessoas, até que pararam em nós. 

    Aproximou-se em passos tranquilos. Quando chegou perto o suficiente, não olhou para mim ou para Lewis de imediato. O foco foi direto em Mandy.

    No mesmo instante, ela percebeu. Endireitou a postura sem nem perceber.

    Arthur inclinou levemente a cabeça e analisou o vestido com atenção sincera.

    — Ora… — disse, cuja voz se ouvia mais leve do que antes. — Então era você quem estava roubando a atenção de todo mundo.

    Mandy piscou, tomada de súbito por um espanto. 

    — É exagerado demais…? 

    — Pelo contrário, ficou bonito. Combina contigo.

    A garota abrira um grande sorriso de um jeito espontâneo.

    — Obrigada!

    Arthur acenou, um pouco embaraçado com o próprio elogio. Ele estendeu a mão esquerda e ajustou um detalhe mínimo no ombro dela.

    — Peguem seus presentes e venham.

    Andei até a mesa próxima à porta, onde os presentes estavam empilhados desordenadamente. 

    Lewis me seguiu.

    — Se alguém pegou o meu, eu juro que..

    — Tá ali. — respondi, apontando. 

    Ele proferiu um resmungo inaudível, mas, instigado pela curiosidade, tomou o pacote e o sacudiu levemente.

    Eu peguei o meu por último. A simplicidade era sua característica principal. Com um peso suficiente para não ser simbólico, ele também era leve o bastante para não levantar perguntas. 

    Seguimos até o outro lado do terraço.

    As cadeiras estavam dispostas em semicírculo próximo à mureta, de frente para a parte mais iluminada do ambiente. Nada sofisticado. Eram cadeiras de plástico, algumas diferentes das outras, alinhadas da melhor forma possível. 

    Mandy sentou-se em uma cadeira próxima à de Raven. O tecido vermelho acomodou-se cuidadosamente. Colocou o pacote sobre o colo, com as mãos pousadas em cima.

    Eu me sentei ao lado de Lewis. Logo senti o arrepio provocado pelo encosto frio da cadeira, que subiu pela minha coluna, reforçando a sensação incômoda que antecede um acontecimento importante, quando todos esperam que alguém tome a iniciativa.

    Arthur continuou de pé um pouco mais, para observar o pessoal se acomodar. Contou até três e, só então, pareceu se permitir respirar. Seguiu até uma das cadeiras livres e se sentou ao lado de Darcy.

    O ato foi simples, mas não passou despercebido. Ele fez uma inclinação sutil em sua direção, e relaxou como se aquele lugar específico tornasse tudo menos pesado. 

    Darcy lançou um olhar breve e cúmplice. Arthur respondeu com um sorriso tímido.

    Mikael pigarreou para atrair nossa atenção sem precisar levantar a voz. 

    — Certo… — Começou, olhando em volta para garantir que ninguém estivesse distraído demais. — Antes que alguém resolva abrir o presente fora de hora, vamos fazer isso direito. Como todo mundo já sabe, a gente não faz amigo secreto.

    Mandy se endireitou na cadeira, abraçando o pacote.

    — Graças a Deus.

    — Aqui é inimigo secreto.

    Isso nos arrancou risadas altas. Até Darcy soltou um ar pelo nariz.

    — A regra é simples — continuou, caminhando um passo à frente —, você sorteia alguém e dá exatamente o tipo de presente que essa pessoa odiaria receber.

    — Eu me sinto pessoalmente atacada. — comentou Raven.

    — Pode ser inútil, brega, estranho, completamente…

    — Horrível. — completei.

    — Principalmente horrível. — confirmou.

    Mikael abriu um sorriso mais largo.

    — A única regra de verdade é se comprometer. 

    — E ninguém pode trocar depois. —  Darcy acrescentou.

    Apertei o papel do presente entre os dedos.

    Seja lá o que houvesse dentro do outros pacotes, alguém havia pensado bastante para me irritar.

    E, de algum modo, isso tornava tudo ainda melhor.

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