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    Arthur colocou a camisa de volta na sacola e a apoiou no chão, ao lado da cadeira.

    Deixou que o som passasse por ele como um vento e, então, ficou de pé.

    Aos poucos, o terraço foi se aquietando, sem uma ordem específica, mas por atenção.

    — Certo… — Respirou fundo. — A pessoa que eu tirei…

    Com os olhos para baixo, passeou os dedos pela borda do embrulho vagarosamente, organizando algo por dentro, antes de continuar.

    — É alguém que nunca precisou levantar a voz para ser ouvida. Alguém que entra numa sala, muda o clima e tudo fica mais claro quando está.

    Arthur finalmente ergueu o olhar.

    — Ela tem uma beleza inigualável. Mesmo sem exigir atenção, a recebe. E talvez seja justamente isso que mais assusta.

    Minha suspeita já estava pronta, só podia ser uma pessoa.

    — Eu trabalhei a vida inteira acreditando que controle era tudo, que liderança era sobre antecipar cada passo, e então… percebi que existem pessoas que caminham fora disso. Que não precisam se provar.

    Ninguém comentou, até Mikael ficou quieto.

    — Ela é feita de escolhas difíceis e de silêncios que eu nunca soube preencher.

    Percebi Darcy endireitar a postura discretamente.

    — E talvez seja por isso que eu nunca soube estar onde ela estava.

    Arthur deu um passo à frente e estendeu o pacote.

    — Darcy.

    Não havia dúvida alguma.

    — Eu nunca fui muito bom em lidar com isso. Acho que por isso sempre pareceu mais longe do que eu queria.

    A declaração perdurou pelos ares bem mais tardiamente e, não por Arthur ter levantado a voz, mas por ter feito o contrário. 

    De repente, o clima descontraído  ficou de lado em favor de algo mais delicado, e percebemos, ao mesmo tempo, que não se tratava mais de um jogo. 

    Mandy levou a mão à boca, seus olhos brilhavam de um jeito que não tinha nada a ver com piada. Piscou rápido, mas não adiantou, estava visivelmente abalada. 

    Mikael não falou nada, apenas bateu palmas. Lewis acompanhou com um sincero sorriso. 

    Nem mesmo Raven, acostumada a tratar as emoções como território minado, conseguiu conter seu olhar atento e expressivo, marcado por uma sinceridade que não permitia ser ignorada.

    Aquelas poucas palavras de Arthur conseguiram o que discursos inteiros não conseguiam. Elas tiraram o chão da brincadeira sem destruir o momento. A existência de alguém lidando com falhas que nunca soube nomear direito por trás do uniforme, das decisões difíceis em grande distância estava exposta.

    Darcy segurava o presente no colo. 

    — Obrigada.

    Arthur assentiu, depois voltou para seu lugar.

    Soltei o ar devagar, percebendo só então que estava com a respiração presa.

    Não se tratava de um presente qualquer, era um pedido que eu não sabia mais como fazer.

    Darcy ficou com o presente no colo e, com os dedos repousados sobre o papel, demonstrou que precisava de um tempo extra para obedecer. Abriu-o com extremo cuidado, com receio de chamar atenção para o próprio desconforto.

    Dentro, encontrou uma barra de chocolate gourmet. Lindt Excellence Milk, na sua embalagem elegante, que, por si só, já prometia indulgência ainda antes da primeira mordida.

    O silêncio voltou a reinar diferente do anterior.

    O encarar do chocolate levou tempo suficiente por parte de Darcy. O sorriso que tentou surgir ficou pela metade, preso em um lugar estranho do rosto.

    — É… bonito. — disse, depois de um instante.

    O líder estranhou.

    — Algum problema?

    Pude ver quando ela engoliu em seco, bem como o desvio rápido do olhar.

    — Eu… sou intolerante à lactose.

    Ela acomodou o pacote no colo e cruzou os braços por cima para criar uma barreira sutil. Seu corpo dizia o que sua voz não conseguia expressar. Vergonha. Sentia-se vulnerável. O incômodo de ter sido vista demais e compreendida de menos.

    Olhei para Arthur e entendi. O presente não era o chocolate, era o significado por trás do gesto. Um pedido mal traduzido, e um pedido antigo, que tentava se fazer aceito por meio de um objeto errado.

    Naquele pequeno e cruel detalhe, ficou claro como às vezes chegamos a ficar tão próximos, só para errar exatamente onde dói.

    O líder não olhou para ninguém por alguns segundos. Manteve o queixo levemente empinado e os olhos perdidos em algum ponto entre as cadeiras e o chão do terraço. Conhecia esse jeito de ficar.  Quando a mente repensa cada escolha, palavra por palavra, e percebe que já passou do ponto em que era possível corrigir, isso nos faz sentir menores. 

    Seus ombros perderam a firmeza, e a postura com que sempre se apresentava como se fosse uma armadura cedeu um pouco. Um homem acostumado a decidir rápido agora estava preso a uma culpa simples e impossível de resolver.

    Ele devia estar se chamando idiota. Não em voz alta, afinal, nunca que ele faria isso. Mas dava para ver. O jeito como esfregou a mão no joelho, os suspiros contidos e o cuidado ao evitar encarar Darcy deixavam isso evidente.

    Mikael foi o primeiro a tentar puxar o ar de volta para o ambiente. 

    — Hã… — Coçou a nuca, forçando um sorriso. — Quer continuar? Ainda é sua vez, né.

    Darcy levantou o olhar devagar, e nele não havia raiva ou mágoa explícita, senão um cansaço e uma promessa silenciosa a si mesma de não aprofundar aquilo naquele momento.

    — Tá tudo bem. 

    Ela descruzou os braços, pegou o presente e ficou de pé. 

    — O presente é pro Krynt.

    Senti um leve impacto no peito. Não foi grande, mas foi direto.

    Sem suspense e rodeios, era evidente que a vice-líder não estava disposta a se envolver com os sentimentos alheios enquanto ainda estava reorganizando os próprios.

    Peguei o pacote das mãos de Darcy. O embrulho era muito simples para esconder algo elaborado. Encostei o polegar na dobra da fita e puxei devagar, até que o som seco do papel rasgando ocupasse o espaço que ninguém estava disposto a preencher.

    Quando me deparei com a sua capa escura e rígida, enfeitada por letras douradas em relevo, precisei de um segundo a mais para aceitar o óbvio.

    Era uma bíblia.

    — Ah… É claro.

    Algumas risadas se ouviram, sem força suficiente para virar gargalhada. Lewis soltou um som curto pelo nariz, Mandy desviou o olhar, na tentativa de não rir e Raven se permitiu um microsegundo de aprovação tácita.

    — Tá bom, isso foi criativo. Pelo menos não é pesado o suficiente pra machucar alguém.

    Mandy riu de verdade dessa vez.

    — Depende de como você usa.

    Deixei a bíblia ao lado da cadeira e me levantei.

    — Bom, minha vez. A pessoa que eu tirei  sempre em movimento, falando, comendo… Principalmente comendo.

    Lewis levou a mão ao peito em sinal de falsa ofensa.

    — Oh, meu Deus!

    — Um cara caloroso demais pro próprio bem, animado até quando não tem motivo, um poço sem fundo disfarçado de ser humano. Se existe comida no lugar, ele encontra. Se não existe, ele pergunta por que ainda não existe. E se sobra… Na verdade, nunca sobra.

    Mandy segurou o queixo com a ponta dos dedos.

    — Quem será, hein?

    — Também é alguém que leva tudo no peito, como se o mundo fosse grande demais pra caber só nele. Intenso, exagerado, impossível de ignorar. — Ergui o pacote. — Então achei justo dar algo à altura. 

    Ele se levantou rápido demais, chegou a tropeçar na própria cadeira, e pegou o presente das minhas mãos com a mesma empolgação infantil que nunca tentou esconder. Rasgou o papel sem cerimônia, como se o tempo fosse seu inimigo.

    — Não… — disse, com um olhar incrédulo.

    Quando virou a embalagem, o boneco do Charizard era inconfundível.

    — Você não fez isso, haha!

    — Pior que fiz. O Charizard é grande, intenso, consome energia demais e ainda assim todo mundo gosta. Me pareceu adequado.

    — Cara, isso sou eu em forma de dragão.

    Lewis apertou a caixa contra o peito feito um troféu recém-conquistado ou algo que ele precisasse manter por perto para não perder o fôlego emocional. Seus olhos brilhavam excessivamente, como os de uma criança, por ter acabado de ser validado por um universo inteiro.

    Não tive tempo de reagir.

    — Lewis… — tentei dizer, mas saiu como um sopro derrotado.

    Logo em seguida, me puxou para um abraço entusiasmado. O ar foi expelido de meus pulmões em um som lastimável, comprimido entre o tórax seu e o boneco ainda preso na caixa.

    Primeiro, senti as costelas reclamarem; depois, o pescoço, espremido contra o ombro dele, abafando qualquer tentativa de protesto.

    — Obrigado, mano! Sério! — falava alto, apertando ainda mais. — Ninguém nunca me descreveu tão bem assim!

    Minha visão começou a escurecer nas bordas.

    — Lewis…

    Bati fracamente duas vezes nas suas costas.

    — Tá… tá bom… 

    — Esse é o melhor presente que eu já recebi! — continuou, completamente alheio ao fato de que eu estava sendo lentamente esmagado por afeto puro.

    Mikael e Mandy caíram na risada.

    — Você vai matá-lo assim. — alertou Raven.

    Foi quando ele finalmente me soltou, aos risos, totalmente sem culpa. Pus-me a recuar por alguns passos, enchendo os pulmões de ar.

    — Foi mal, Krynt!

    Massageei o lado do peito.

    — Isso define você melhor do que qualquer descrição. 

    Lewis não pareceu nem um pouco ofendido, pelo contrário, inflou o peito e voltou para o centro do círculo com a caixa do Charizard ainda debaixo do braço.

    — Belê, agora é minha vez.

    Uma pausa longa demais foi feita. Ele andou de um lado para o outro, seus olhos foram postos no chão, posteriormente no céu. Por entrementes, seus pensamentos eram arquitetados, e então um sorriso largo, dissimulado, foi exibido.

    — Essa pessoa é incrível, ok, tipo, muito mesmo, inteligente pra caramba, estilosa, manda bem em absolutamente tudo e ainda por cima… Mandy é…

    Congelou no meio da frase, piscou uma vez, depois duas, e seus olhos se arregalaram num atraso hilariante, enquanto tentava rebobinar o cérebro.

    “Que imbecil.”, pensei.

    — Digo… A pessoa, q-que não é a Mandy… — Ele levou a mão ao rosto e começou a rir de si mesmo. — Droga, esquece, já foi.

    — Haha, meu Deus, Lewis!

    O garoto, nervoso, enfiou a mão no bolso da frente da calça e remexeu bastante, mesmo sem haver nada de grande porte para ser puxado dali. 

    Era um pacote de marshmallows branco e esponjoso demais, estampado na frente com letras marrons anunciando, sem qualquer vergonha, “Cocô do Boneco de Neve”.

    Processando aquilo, Mandy ficou mais alguns instantes olhando. 

    — Você… trouxe isso no bolso?

    — Trouxe e ainda mantive aquecido! — Jogou o pacote para que ela agarrasse. — É doce e estranho, igualzinho você!

    — Eu vou te matar qualquer dia desses. — disse, balançando a cabeça em negação.

    — Mas vai ser com carinho. — respondeu, convencido.

    Mandy virou o pacote entre os dedos mais uma vez, absorta no absurdo com uma paciência que só existia porque, no fundo, aceitara que Lewis era um evento natural, não uma escolha consciente. Depois de soltar o ar pelo nariz, guardou o “cocô do boneco de neve” no colo, balançando a cabeça.

    Foi quando Mikael se levantou. Seus olhos percorreram a todos nós, e demoraram um pouco mais em Raven mais do que gostaria. A rigidez no maxilar entregava um resto de incômodo que nem o jogo havia conseguido dissolver por completo. 

    Desviou-se, então, para Arthur e Darcy, onde o ar ainda continuava espesso o bastante para não ser ignorado, e soltou uma risada curta, sem alegria suficiente para enganar alguém.

    — Nesse caso — abriu os braços —, sobrevivemos ao inimigo secreto. Não vou mentir, já recebi tiros menos pessoais.

    Baixou os braços e olhou de canto para Raven novamente, que respondeu com um sorriso cínico.

    — Mas esse era o espírito da coisa. E falando em seguir em frente… — Apontou com o polegar para a mesa ao fundo. — A cozinha não se preparou sozinha, e se a gente ficar aqui mais cinco minutos, o Lewis vai começar a comer os centros de mesa.

    Com a fome que eu estava sentindo, levantei-me junto dos outros a caminho da mesa, no momento em que a porta do terraço se abriu num leve estalo.

    Nicholas surgira primeiro, ofegante. Ao seu lado, Emilly ainda ajeitava o gorro, que teimava em escorregar para o lado.

    Eu os vi parados na entrada. Nicholas vestia um conjunto verde de veludo com uma camisa de mangas longas ajustada nos ombros e calças cuja barra estava cortada em pontas. Suas meias eram listradas em vermelho e branco, e seu gorro, que pendia de lado, tinha uma bolinha branca sobre a qual se podia ver o balanço a cada respiração.

    Emilly vestia um vestido na mesma paleta; o verde profundo era cortado pelo vermelho da saia, que lembrava pétalas sobrepostas. O corpete era justo, adornado com fitas cruzadas na frente, e um cinto fino marcava a cintura.

    — Feliz natal… pessoal. — disse Nicholas.

    — Feliz natal! — falou Emilly animadamente. — Vocês não iam festejar a noite toda sem a gente, né?

    Eles se juntaram ao grupo, e eu senti o espaço se rearranjar ao redor da mesa, com pratos passando de mão em mão, comentários lançados ao acaso, risadas desalinhadas e um barulho confortável de uma noite em que todos haviam decidido ficar. 

    À medida que eles se aproximavam da mesa e o aroma da comida se espalhava, algo estranho se instalou em mim, não grandioso nem épico, mas estável o suficiente para me proporcionar uma sensação de normalidade, e isso é algo raro. 

    O Natal sempre me pareceu um território de expectativas excessivas, especialmente para quem passou muito tempo esperando que algo saísse errado e, por isso, aprendeu a não esperar nada. Ainda assim, ali, cercado por vozes que se sobrepunham, a data deixava de ser símbolo e era transformada em um espaço breve onde se podia respirar sem que o amanhã fosse tão vigiado.

    Foi quando entendi que talvez fosse isso que eu vinha procurando sem saber nomear. O valor não se encontrava no calendário nem no ritual, mas sim na insistência teimosa de congregar pessoas quebradas o bastante para necessitarem umas das outras. 

    As pessoas falhavam, as noites se estendiam além do planejado, os problemas se dividiam em pequenas porções toleráveis e, no meio disso, emergia uma sensação incomum de pertencimento, não imediata ou grandiosa, mas construída gradualmente, até ficar evidente que algumas coisas apenas existem quando encontram um lugar seguro para permanecer.

    Pode ser que o Natal fosse exatamente isso, não um dia especial por natureza, mas um detalhe que aprendi a valorizar, pois finalmente fazia sentido mantê-lo por perto.

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