Capítulo 1 - O Incidente
A luz do sol atravessou as finas cortinas do meu quarto sem pedir permissão, pousando diretamente sobre minhas pálpebras. A claridade era incômoda, insistente como um despertador sem botão de soneca. Pisquei algumas vezes antes de ceder, abrindo os olhos para o ambiente que me cercava. O quarto estava mergulhado em uma luz dourada suave, mas havia algo de irônico nessa beleza passageira, um contraste gritante com o peso dos dias que estavam por vir.
As férias tinham se esvaído sem cerimônia, como um copo d’água derramado em cima do chão quente. Sem viagens inesquecíveis, sem aventuras cinematográficas. Restava apenas a monotonia dos dias iguais, dissolvendo qualquer ilusão de liberdade. Agora, o ano letivo surgia no horizonte como um trem descendo ladeira abaixo, sem possibilidade de parada. Eu sabia bem o que isso significava: um ciclo repetitivo de provas, deveres e expectativas, tudo girando em um sistema que esmagava qualquer vontade legítima de aprender.
Desvencilhei-me dos lençóis com um gesto simples, afastando-os como se fossem mais um leve estorvo na acumulação de cargas. O quarto ao meu redor era um reflexo de quem eu era e do mundo em que me inseria – um espaço reduzido e confinado que tentei personalizar, mesmo com as pressões incessantes do exterior.
As paredes eram decoradas com pôsteres de meus personagens favoritos. Destacava-se Denji com suas serras, cortando a imagem dos Piratas do Chapéu de Palha, que exibia um rasgo bem onde ficavam suas cabeças. Abaixo dos pôsteres, uma estante continha inúmeros volumes de mangás, cujas lombadas mostravam sinais de desgaste devido às várias leituras.
Caminhei até a janela e descorri as cortinas. O bairro estava calmo e silencioso. A vista era comum – uma fileira de casas padronizadas com jardins pequenos e bem cuidados, intercalados ocasionalmente por uma árvore que proporcionava pouca sombra. Além disso, o zumbido distante do tráfego na estrada principal servia como um ruído constante de fundo.
O céu apresentava um azul tão puro e intenso que instigava sonhos de um dia na praia. No entanto, nos subúrbios, onde o calor era opressivo, essa visão parecia zombar de tudo. O sol castigava os telhados e o asfalto cintilava ao longe, deixando claro que qualquer tentativa de fuga seria como mergulhar em um forno.
— Logo cedo… e já esse calor infernal.
O murmúrio saiu em tom de reclamação resignada. Segundas-feiras sempre pesavam em meus ombros, como se fosse uma lei da natureza. Hoje não era diferente. O pior era saber que a sensação de arrasto não vinha apenas do dia da semana, mas do que ele simbolizava: a rotina se reinstalando, a obrigação de seguir horários, de fingir interesse por matérias que entediavam.
Soltei um suspiro longo e passei a mão pelos cabelos desgrenhados. O dia mal tinha começado, e já sentia que seria uma batalha. Uma luta contra o calor sufocante, contra a ansiedade que se acumulava no fundo do peito, contra a sensação de que eu caminhava para um destino pré-determinado, do qual eu não tinha controle.
Seria preguiça? Talvez. Mas também havia algo além disso. Três meses sem compromissos bagunçaram minha percepção do tempo. Não era fácil simplesmente aceitar que o mundo voltava a girar num ritmo que eu não escolhi.
Fui até o banheiro, escovei os dentes, lavei o rosto. Movimentos automáticos, repetidos tantas vezes que pareciam uma programação gravada no corpo.
— Hm…
Antes de sair, parei diante do espelho, os olhos ainda pesados pelo sono. Inclinei a cabeça de leve, analisando meu próprio reflexo.
— Ahaha! Nada mal.
Não fazia mal algum apreciar o que se via ali de vez em quando. Meu cabelo escuro estava um pouco bagunçado, mas nada que comprometesse completamente. Minha pele pálida denunciava o tempo excessivo dentro de casa, mas eu não me importava muito com isso. Meus olhos, da mesma cor das raízes do cabelo, carregavam um brilho indecifrável, um marrom profundo que, dependendo da luz, poderia ser até atraente.
Não se tratava de narcisismo. Era autoestima.
Passei os dedos pelo rosto, tentando afastar os últimos resquícios de sonolência. Ainda não estava totalmente desperto quando um grito rompeu o silêncio da casa:
— Acorda, moleque!
O susto foi como um choque elétrico na espinha. Meu coração deu um pulo, e antes mesmo de pensar, já estava descendo as escadas com pressa, pulando degraus.
— Que foi, caramba?! Tô aqui!
Na cozinha, ela me esperava, escorada no balcão com aquele sorriso torto e irritante.
— Sua namoradinha virtual te deu um pé na bunda, foi? Cê desceu tão cedo.
A frase acertou como um soco no estômago. O sangue subiu para o rosto antes mesmo que eu pudesse controlar. Respirei fundo, tentando não cair na provocação, mas o jeito debochado dela já começava a corroer minha paciência.
— Vai à merda, Kate. Tu gritou do nada, por isso vim aqui.
— Hahaha! Eu só tô brincando, seu mal-humorado. Relaxa, não morre por isso.
Fiz uma careta, desviando o olhar. As palavras dela ainda pesavam no ar, deixando um incômodo que não ia embora tão fácil. Kate sabia exatamente onde cutucar, como jogar uma provocação certeira e me fazer perder o equilíbrio.
— Você não precisa ficar jogando isso na minha cara o tempo todo.
— Ah, entendi. Vergonha da sua namorada?
— Quê?! Não! Não é isso, é só que…
Tentei articular uma resposta decente, mas tudo o que saiu foi um amontoado de palavras desconexas. Suspirei, derrotado.
— Esquece.
Larguei o corpo na cadeira, cruzando os braços. Não valia a pena discutir. Meu olhar caiu sobre a mesa, e foi aí que todo o embaraço deu lugar a algo mais importante.
Diante de mim, um misto quente perfeitamente dourado reluzia como uma oferenda divina. Ao lado, um copo de suco de laranja brilhava sob a luz da cozinha.
— Uau…
Kate se inclinou um pouco, apoiando o cotovelo na mesa, o sorriso de quem já sabia que tinha vencido estampado no rosto.
— Tá vendo? Eu que fiz.
Ergui uma sobrancelha, desconfiado.
— Fez mesmo? — Peguei o sanduíche, analisando com olhos críticos. — Não colocou nada estranho aqui, né?
— Idiota. — Revirou os olhos, mas um sorriso meio contido escapou. — Come logo antes que eu jogue fora.
Peguei o misto quente e dei uma mordida, sentindo o queijo derreter na boca enquanto o pão crocante cedia sob os dentes. Não era nenhuma obra-prima da culinária, mas tinha aquele gosto caseiro reconfortante, o tipo de comida que traz uma sensação de pertencimento, mesmo quando você não quer admitir.
— Tá bom. Ficou… aceitável.
Kate arqueou a sobrancelha e cruzou os braços, o queixo levemente erguido como se estivesse considerando uma sentença.
— Aceitável? — Seu tom de voz oscilou entre ultraje e diversão. — Eu devia começar a cobrar.
— Cobra nada. — Mastiguei mais um pedaço e a encarei, fingindo seriedade. — Você me deve isso depois de gritar igual uma lunática.
Ela suspirou exageradamente, mas o brilho nos olhos revelava que não se arrependia nem um pouco.
— Tá, mas pelo menos me agradece. Não é todo dia que você vai comer algo tão bom.
— Vou pensar no caso.
Kate sempre teve esse talento irritante para fazer as coisas funcionarem. Não importava se era algo tão banal quanto um misto quente ou algo mais complicado, como sair ilesa de situações em que qualquer outra pessoa se daria mal.
Enquanto mastigava, um som involuntário de satisfação escapou. Baixo, mas não o suficiente para passar despercebido.
— Que bonitinho. Parece uma criança comendo.
Revirei os olhos, mas ignorei. Ela adorava jogar verde e colher reações. E eu já tinha caído nessa armadilha vezes demais para morder a isca agora.
Kate Hughes era cinco anos mais velha e 1,75 de altura. Mas não era só a presença física que chamava atenção. Havia algo nela — uma energia pulsante, aquela confiança inabalável que fazia as pessoas gravitar ao redor, como se ela sempre soubesse exatamente o que estava fazendo, mesmo quando claramente não sabia.
Ela gostava de multidões, festas, movimento. Eu, por outro lado, preferia o silêncio do meu quarto, a companhia de uma tela piscando, um filme aleatório rodando enquanto eu me perdia em pensamentos.
Nos traços, tínhamos algo em comum: olhos da mesma cor, um tom quente de marrom, e o cabelo igualmente escuro. Mas enquanto o dela estava preso num rabo de cavalo meio displicente, o meu parecia sempre bagunçado demais para se importar.
Hoje, no entanto, ela estava diferente. Não o tipo de diferente que passa despercebido. Seu usual jeans e camiseta deram lugar a leggings, um top e uma camiseta jogada por cima.
Observei o conjunto e soltei, quase sem pensar:
— Achei que demoraria mais pra você entrar numa academia.
Ela desviou o olhar, alisando a barra da camiseta como se estivesse repassando algo na cabeça.
— Tava na hora. Me dá uma tristeza quando olho no espelho e vejo meu corpo. É tão… sei lá…
Franzi o cenho, esperando que ela continuasse.
Kate puxou a camiseta, levantando-a um pouco, e beliscou a pele na lateral da barriga com um olhar severo.
— Isso aqui me irrita. Essa pochete me dá nojo.
A forma como falou fez com que algo se agitasse dentro de mim. Não se tratava de um comentário casual, não era só sobre estética. Era algo mais profundo, mais corrosivo.
Ela continuou, com a voz levemente hesitante:
— Pode parecer idiota, mas tem dias em que evito espelhos. — Passou os dedos na borda da mesa, como se não quisesse me encarar diretamente. — Parece que meu reflexo me julga, entende? Como se estivesse apontando tudo o que tá errado. Como se estivesse rindo.
Silêncio.
Ela suspirou, os ombros relaxando um pouco, mas os dedos ainda inquietos contra a superfície da madeira.
— O que você acha?
Era raro Kate perguntar o que eu achava de algo. Normalmente, ela decidia, agia, seguia em frente. Isso não combinava com ela.
Engoli em seco, pensando no que responder.
— Você é bonita pra caramba. Não entendo por que se importa tanto com isso. Tá tentando agradar alguém? Se for homem, já perdeu tempo. A maioria saiu direto do cu.
Kate soltou um riso abrupto, uma gargalhada sincera que iluminou seu rosto.
— Pfft, hahaha! Meu Deus, você fala cada coisa… — Balançou a cabeça, divertida, mas logo o sorriso se suavizou. — E obrigada. Mas não é isso. Tô cansada de me sabotar. Talvez seja hora de me tornar uma versão melhor de mim mesma.
O jeito como disse aquilo me fez pensar. Melhor pra quem? Se fosse pra ela mesma, ótimo. Mas, se fosse pra caber em algum padrão ridículo, já estava fadada à frustração.
Kate puxou a cadeira ao meu lado, sentando-se com o corpo relaxado, os cotovelos apoiados na mesa. Entrelaçou os dedos sob o queixo e me encarou com aquela expressão de quem já tinha algo na cabeça.
— Vai, Krynt. Confessa. Vocês dois andam brigando, né? Aposto.
Meu estômago contorceu levemente, mas fingi desinteresse, mordendo outro pedaço do misto quente feito se ele fosse a coisa mais interessante do mundo.
— Tá tudo bem entre a gente. Ou… acho que tá.
Ela arqueou uma sobrancelha, claramente não convencida.
— Tá tudo bem, ele diz. — Repetiu, imitando minha voz com um tom forçado. — Esse é sempre o código pra as coisas tão uma merda, mas eu não quero admitir.
Desviei o olhar, focando no prato. Mastiguei devagar, dando tempo para minha mente encontrar uma resposta que soasse convincente. Não achei nenhuma.
— Só não quero falar disso agora, tá? Não é o momento.
Kate soltou um riso baixo, bebendo um gole de água antes de responder:
— Beleza, garoto teimoso. Mas você sabe que pode falar comigo, né? Mesmo eu não sendo a melhor conselheira do mundo.
Ela girou o copo entre os dedos, como se pesasse as palavras antes de continuar.
— Só um conselho: não crie grandes expectativas.
Ergui os olhos para ela.
— Como assim?
— Simples. Se você já espera que algo vá dar merda, não dói tanto quando acontece.
Ela disse isso de modo despretensioso, mas havia algo em seus olhos que denotava um brilho distante, trazendo à tona lembranças que preferia manter enterradas.
— Isso é meio… sombrio.
— E prático.
Com um gesto de leveza, Kate deu de ombros, aceitando uma verdade feia e aprendendo a conviver com ela.
— Eu sei que não é a coisa mais otimista do mundo, mas é a realidade, Krynt. Aprenda com isso.
Ela sorriu, mas o sorriso não alcançou os olhos.
— Mas, falando sério, se precisar de alguma coisa, só falar.
Respirei fundo, digerindo aquilo.
— Valeu, Kate. Vou tentar lembrar disso.
Esta estalou a língua, inclinando-se na cadeira com um ar provocador.
— De nada, garotinho. Mas ainda quero saber. Me conta logo.
Levantei uma sobrancelha, encarando-a diretamente.
— Já disse que não. Fofoqueira.
Ela revirou os olhos em resposta, claramente enojada.
A televisão de tela plana, instalada na parede no canto da cozinha, próxima à mesa de jantar de madeira maciça, estava no programa de notícias que acabara de iniciar.
— Isso de novo… — disse, aborrecido.
— É o que mais está sendo comentado. Você deveria ouvir, pode ser interessante.
— Duvido. Isso só me deprime.
A maioria destas notícias eu considerava sem importância, mas pareciam fascinar particularmente Kate.
O estúdio de onde estava os jornalistas iluminou. Papéis e anotações estavam espalhados em uma mesa elegante. Sophia Vargas, uma repórter latina de olhos e cabelos castanhos, ajustava seu microfone. John Davies, um âncora experiente com cabelos grisalhos e olhos azuis, recostava-se na sua cadeira.
— Boa tarde, estimados espectadores. — saudou o homem. — Hoje, mergulhamos num ponto de viragem histórico que continua a lançar uma longa sombra – o 76º aniversário da improvável vitória da Alemanha nazi na Segunda Guerra Mundial. Foi um acontecimento inédito que abalou os alicerces da geopolítica mundial.
Os eventos catastróficos da Segunda Guerra Mundial foram destacados por fotografias históricas que estavam sendo exibidas na tela atrás dele enquanto falava.
— Paralisadas por erros estratégicos e divisões internas, as Forças Aliadas foram sobrepujadas pela máquina de guerra alemã. Esse desfecho inesperado mudou de forma significativa o curso da história.
A câmera girou para Sophia, que se inclinava para frente.
— O efeito dominó ocorreu instantaneamente. Após a vitória da Alemanha, seus aliados, o Japão Imperial, intensificaram sua campanha brutal na China. Essa intensificação acendeu um barril de pólvora de tensões regionais, alterando profundamente o cenário geopolítico para as décadas seguintes.
John virou-se em sua cadeira na direção dela.
— Sophia, você gostaria de explicar as estratégias específicas empregadas pelo Japão?
— Claro que sim. — Com seu olhar nele, logo voltou à câmera. — Liberado das limitações de uma guerra em duas frentes, o Japão assumiu uma abordagem militar significativamente mais agressiva. Essa abordagem envolveu o emprego de armas químicas e a implementação de uma política de terra queimada, resultando em uma crise humanitária de dimensões inimagináveis.
Foi exibida uma imagem em tela dividida. À esquerda, estava um mapa da Ásia. Setas vermelhas serpenteavam pela China, representando a intensificação da ofensiva japonesa. Sobre uma cidade pendia uma camada escura de nuvens. À direita se encontrava a imagem de uma criança magra e faminta, com olhos fundos, ocupando o espaço.
— O custo humano deste conflito deve ter sido impressionante.
— Realmente. — respondeu, confirmando com a cabeça. — Estimativas indicam que o total de mortes na Ásia superou amplamente o da Europa. Mesmo dividida por conflitos internos, ela permanece uma potência dominante. Os Estados Unidos, que nunca capitularam oficialmente, são um bastião remanescente, um lembrete constante do mundo que poderia ter sido.
A evidência visual da influência crescente dessas nações no cenário mundial estava em toda a tela.
— Sophia, obrigado por essa análise perspicaz de um momento histórico crucial. — Virou-se para o público. — Ao lidarmos com o passado, é fundamental permanecermos vigilantes no presente. O foco de hoje é uma agência governamental.
A próxima matéria foi destacada por uma força-tarefa.
A tela exibia o logo oficial da agência e imagens de seus funcionários em ação.
— Nos últimos cinco anos, os Estados Unidos vivenciaram uma escalada notável de eventos anômalos. Esses fenômenos inexplicáveis causaram uma inquietação pública generalizada. Em resposta, nosso governo alocou recursos estrategicamente e montou uma equipe de especialistas para lidar com essa ameaça sem precedentes.
Um gráfico detalhado foi exibido na tela, revelando o aumento contínuo no número de casos sobrenaturais nos últimos cinco anos, com um aumento anual de 23% em média.
Isso representava um aumento de mais de 115% no número de casos durante esse período.
— O compromisso do governo em abordar essa questão de frente traz uma estratégia política mais ampla que visa garantir a segurança nacional e a confiança do público. A Unidade Expedicionária de Caça personifica esse compromisso, combinando tecnologia de ponta com técnicas jamais vistas para manter nossas comunidades seguras.
A tela mostrava um mapa dos Estados Unidos, indicando áreas de atividade sobrenatural mais intensa, onde foram registrados mais de 3.000 incidentes em todo o país no último ano.
Sophia tomava a fala:
— A Unidade Expedicionária de Caça atua como uma linha de defesa contra as ameaças que não podem ser compreendidas pelos métodos convencionais. Suas operações envolvem investigação, contenção e, quando necessário, neutralização de ameaças sobrenaturais.
Uma operação de contenção estava em andamento na tela, exibindo agentes da Unidade lidando com uma forma desconhecida. Foram apresentadas informações pormenorizadas, demonstrando uma taxa de sucesso de 86% na solução de suas missões, resultando na segurança pública em mais de 7.000 eventos durante os três anos anteriores.
— No cumprimento de sua missão, a Unidade estabeleceu parcerias com especialistas e pesquisadores renomados para entender melhor essas manifestações. Trabalhando em sigilo, eles garantem que a segurança seja mantida a todo custo
A imagem mudou para apresentar profissionais atuando em um centro de pesquisa e analisando evidências de casos sobrenaturais, a partir de gráficos precisos que apontavam um aumento de 25% nas descobertas científicas.
— A agência certamente incorpora um componente essencial para a defesa civil. Mas surgiram preocupações com relação à transparência e ao potencial de abuso do governo. Abordaremos essas preocupações no próximo bloco.
O informe foi encerrado para os comerciais.
— Que tédio. — disse, descontente.
— Sinceramente, quero que esse mundo vá pelos ares. — Kate comentou de forma insultante.
— Caramba, cê não precisa ser tão negativa assim.
Ela revirou os olhos, como se minha reação fosse completamente despropositada.
— Oh, pare de ser tão dramático. É apenas a verdade nua e crua. Esse mundo tá indo de mal a pior, e ninguém parece se importar.
Kate balançou a cabeça, ainda parecendo cética.
— Sei que você pensa assim também, te conheço. A gente não vale merda nenhuma, criança miúda.
— Criança miúda é meu ovo, cacete!
Ela exibiu um sorriso sarcástico.
— Tá, tá, anda logo, você não pode faltar hoje. Não vamos criar um vagabundo aqui em casa.
— Foi só uma semana. Ainda tô longe de reprovar. Além do mais, são os primeiros dias. Quem é que vai à escola nos primeiros dias? Só tem apresentação. Eu dispenso tudo isso.
Embora eu não tenha comparecido à escola durante esse período, o mundo continuou a girar, e os dias continuaram a passar.
— Sabe… — Aproximou-se lentamente. — Já são onze e meia, peste!
Com um tapa na nuca, engoli os últimos pedaços de pão de uma só vez.
— Por que não me disse antes!?
Kate estreitou os olhos com aversão.
Minha rotina matinal era uma corrida contra o tempo, priorizando o essencial. Deixei o banho para depois, exceto pela escovação de dentes.
A minha mente estava turva, e a falta de memória continuava a me atormentar.
Devorei rapidamente um prato que era reconfortante, apesar de não ser a opção mais saudável.
Apressei-me a ir para o meu quarto, subindo as escadas a correr, dada a urgência.
Notei, porém, algo de estranho: um gato de pelo escuro posicionado com gosto à janela. Estava lambendo metodicamente cada pêlo conforme procedia com sua limpeza habitual.
— Você parece se sentir bem à vontade aí.
O felino não se incomodou com minha presença e continuou seu ritual de limpeza.
Decidi acariciá-lo, então me aproximei. Antes que minha mão pudesse tocá-lo, o gato reagiu de forma abrupta. Seus pêlos eriçaram, e ele assumiu uma postura defensiva, prontamente interpretando meu gesto como uma ameaça em potencial.
— Epa! — Rapidamente recuei. — Nem queria mesmo.
Relaxou gradualmente, mas mantinha um olhar vigilante, como se não estivesse completamente convencido de que eu não representava perigo.
Considerei não forçar a situação e virei as costas, murmurando:
“Por isso que prefiro cachorros…”
Logo ele se tornará um querido afilhado exclusivo da família, basta Kate ou minha própria mãe encontrá-lo.
— Calma aí…
Olhando para trás, todavia, notei que o animal havia desaparecido assustadoramente da janela. Minha surpresa foi ainda maior pelo fato de que não havia nenhuma maneira evidente de ele descer.
“Como foi que esse bicho subiu até aqui?”
Pus essa dúvida instigante de lado a fim de pegar meu celular na cama para verificar as horas.
[11h34]
— Bem que ela disse.
Não havia tempo a perder porque o horário se esgotava. A situação era urgente, e ainda assim não consegui resistir à necessidade de checar as mensagens, concentrando-me em uma pessoa em particular.
— E-eita… Deu ruim.
A preocupação aumentou imediatamente quando vi suas mensagens, enviadas há duas horas.
“Ooi, bom dia, dorminhoco! ♡”, enviado às 9h12.
“E aí, ainda tá na soneca?”, enviado às 9h22.
“Ah, tá bom, me avisa quando decidir levantar da cama”, enviado às 9h30.
Meu coração estava batendo forte. Por um momento, senti-me culpado por ter demorado tanto para responder.
“E aí, desculpa, acabei dormindo demais (ꏿ﹏ꏿ;)”
“Espero que não esteja bolada com isso”
“Uhm… Tô indo pra escola, aula hoje, tô sem muito tempo. Deixa alguma mensagem depois, tá?”
Embora eu estivesse feliz por ter respondido a tempo, eu tinha apenas 15 minutos até o fechamento dos portões da escola, e o fator rapidez era essencial.
Abri às pressas as gavetas do guarda-roupa e selecionei uma camiseta escura, folgada e com capuz, uma calça jeans no mesmo tom a um par de tênis branco.
A vaidade era um dos meus pontos fracos, por isso, não tive vontade de pentear o cabelo nem decidir o meu estilo.
Descendo as escadas, no entanto, observei que havia deixado minha mochila no quarto.
Cerrando os dentes de frustração, voltei rapidamente para pegá-la.
Talvez meu cérebro estivesse me sabotando ao fazer uma faxina rápida e, acidentalmente, excluindo minhas necessidades básicas. Se essa não fosse a explicação, eu não sabia como lidar com a situação.
— É sério isso? Outra coisa que gostaria de esquecer ou fazer, cérebro?
— Me divertir.
A voz, arrepiante como um presságio sombrio, soou em meus ouvidos, envolvendo minha mente em um calafrio terrível.
O susto, tão inesperado, quase me fez perder o equilíbrio enquanto descia as escadas precipitadamente.
Por pouco evitei uma queda, que poderia ter resultado em um acidente grave, agarrando-me desesperadamente ao corrimão.
— Tá…? Isso não foi legal.
Examinei cautelosamente meus arredores, mais perceptivo do que um predador em perigo, sem conseguir identificar o que explicava a voz aterrorizante que ecoava em minha cabeça.
Com passos hesitantes, continuei seguindo em frente, repleto de perguntas sem resposta.
Em direção à sala, Kate estava sentada no sofá, os olhos fixos na tela da televisão
— Isso não tem graça, viu? — disse, enfurecido.
Ela praticava um afundo com elevação de joelho enquanto assistia um vídeo no Youtube de exercícios físicos. Parou quando me ouviu falar.
— Como assim? — perguntou, a testa franzida.
Desviei o olhar. Eu sabia que era só paranoia.
— Esquece. — murmurei e fui em direção à porta. — Tô saindo.
Esta me observou por um instante, antes de ceder num suspiro.
— Então tá. Só… toma cuidado na rua, ok? Dizem que tem uns caras estranhos rondando por aí.
— Sem problemas. — respondi, sem olhar pra trás. — Eu sei me virar.
Falei isso no automático. Era o que todo mundo dizia antes de dar errado, não era?
Com um clique seco, fechei a porta atrás de mim. Um momento de quietude. Em seguida, o mundo.
O ar fresco da manhã tocou meu rosto, como um impacto frio e sujo, um sinal de que o dia havia acordado de mau humor. O vento tinha uma força incomum, um zumbido quase inaudível que deixava a pele em estado de alerta. No entanto, eu ignorei e comecei a caminhar.
As ruas estavam quase vazias naquele horário. O sol filtrava-se por entre os prédios, derramando uma luz pálida no asfalto rachado. O cheiro de café recém-passado e fumaça de escapamento competiam no ar.
Passei pelo açougue ao lado, onde o proprietário já havia disposto os cortes de carne na vitrine. O odor era intenso demais para aquele momento do dia. Em frente à banca de jornais, os papéis balançavam como bandeiras, prenunciando o caos habitual. “Os delitos crescem no centro.” “Mais um indivíduo desapareceu.” “O governo se compromete a intensificar a segurança.” Promessas sem conteúdo. Palavras que ninguém mais tinha fé.
Quando cheguei na esquina da Tremont Street, procurei o celular no bolso da calça. Não estava ali. Nem no outro bolso. Virei a mochila para frente e revirei as coisas, o livro de física quase despencando.
— Não acredito.
Procurei de novo. Nada. Revirei o outro bolso da mochila. Também nada.
— Ah, merda. — resmunguei, sentindo a frustração subir como febre. — Eu juro que coloquei ele aqui…
Suspirei, na tentativa de digerir a irritação, mas ela ficou presa no peito. Avancei, distraído.
Foi então que ouvi.
O rugido de um motor.
Levantei a cabeça e, por um segundo que pareceu se alongar como uma fita esticada até arrebentar, vi o carro.
Ele vinha rápido. Muito rápido.
O brilho do capô refletiu o sol diretamente nos meus olhos. O carro devia estar a uns oitenta quilômetros por hora. O motorista não teve tempo para frear. Não sobrou tempo para absolutamente nada. Apenas o momento — límpido, cristalino, congelado.
O meu corpo respondeu antes que a minha mente pudesse compreender. O braço se elevou, com a palma aberta, como se isso pudesse deter algo.
E deteve.
Minha mão tocou o capô, e o som que veio depois foi um estrondo surdo, como um trovão abafado debaixo d’água. O carro girou, rodopiou no ar feito um brinquedo de plástico, antes de cair com um impacto seco a alguns metros de distância.
Ficou ali, tombado na pista. O motor roncou uma última vez antes de cuspir uma nuvem espessa de fumaça cinzenta, subindo pesada até se perder no azul claro do céu.
Eu não me mexi.
“Mas o que…?”
Meu coração ainda batia na garganta. Fiquei ali, a mão ainda suspensa, como se segurasse o fantasma de alguma coisa que não conseguia entender.
Com sirenes que cortavam o ar aceleradamente, a polícia chegara em seguida.
Eu, ainda assim, estava atônito e incapaz de entender o que havia acontecido, especialmente à luz da energia enigmática que interveio por meu intermédio.
As portas dos carros da polícia se abriram em sequência Três, quatro, cinco oficiais surgiram de trás das viaturas com armas em punho.
— Mãos à vista! Agora! — bradou um dos policiais, a voz ampliada por um megafone.
Outros se posicionaram em formação, joelhos semi-flexionados, os dedos firmes no gatilho. Um segundo policial, com o rosto molhado de suor, aproximou-se até que a linha de fogo estivesse fechada.
— Desçam do carro! Devagar! Sem truques! — ordenou, a arma alinhada com o que restava da janela lateral.
Por um instante, achei que ninguém sairia dali. De repente, porém, a primeira figura rastejou para fora pela janela quebrada do banco traseiro. A máscara preta que cobria seu rosto respirava junto com ele, e seus olhos, atrás da fenda, brilhavam sob uma estranha lucidez.
Logo depois, outros três surgiram, arrastando-se pelo metal deformado, indiferentes ao capotamento violento. Suas roupas escuras estavam rasgadas em alguns pontos, mas não havia sangue. Nem um gemido de dor se ouvia. Era… antinatural.
— No chão! Agora! — gritou outro oficial.
Os quatro mascarados ergueram lentamente as mãos, abrindo os dedos em sinal de rendição. Um deles, mais alto que os outros, ainda demonstrava relutância, avaliando as possibilidades.
— Último aviso!
O homem robusto se curvou. Todos se prostraram no pavimento e, no mesmo momento, dois policiais os cercaram pelas costas, algemando-os.
— Estão limpos. — disse um dos agentes, depois de revistá-los. — Sem armas visíveis. Máscaras de combate… nada de documentos.
— Esses caras são do tipo profissional. — disse o sargento. — Quero identificação completa. E alguém liga para a central. Diga que pegamos os quatro.
Enquanto isso, verifiquei meu braço, procurando sinais de danos causados pelo impacto. Entretanto, tudo o que descobri foi uma mancha negra que se desenvolveu na pele, o que só serviu para obscurecer ainda mais uma ocorrência já bizarra.
Um dos policiais me lançou um olhar rápido, o cenho franzido.
— Agora pronto… — murmurei, incrédulo.
— Ei, garoto.
Senti um arrepio percorrer minha espinha, e instintivamente escondi meu braço atrás.
— Foi mal, senhor! Tô bem atrasado! — respondia enquanto caminhava em direção oposta. — Vamos falar sobre isso mais tarde!
— Hã? Ei, espere!
Não tinha ideia do que ele queria, mas estava claro que ele esperava respostas sobre o estranho acontecimento que acabara de testemunhar.
Não havia tempo para uma conversa longa, precisava agir rapidamente.
Já estava longe o bastante, então o homem somente desistiu.
“O que diabos foi isso? Eu acabei de me tornar um herói por acaso?”, perguntei a mim mesmo.
Detive os ladrões no seu caminho e deparei-me com um efeito de força anormal suscetível à paragem de um automóvel.
Isso era, sem dúvida, um péssimo sinal.
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.