Capítulo 16 - Cidade da Colina
— In this world, it’s just us… — Mandy cantarolava, a testa encostada no vidro da janela, os pés apoiados no encosto do banco da frente. — You know it’s not the same as it was…
— Se você cantar isso mais uma vez, juro que vou abrir a porta e me jogar. — Lewis disse, sem tirar a cabeça do apoio.
— Relaxe, drama queen. — respondeu, com um sorriso de canto de boca nitidamente satisfeito. — Só tô tentando manter meu cérebro funcionando.
— Funcionando? Cantar Harry Styles é o plano pra isso? — bufou e cruzou os braços, afundando um pouco mais no banco. — E depois sou eu que tenho problemas.
Eu estava entre os dois no banco de trás, espremido como um prisioneiro entre extremos emocionais. Inclinei a cabeça pro lado, tentando espiar pela janela, mas tudo o que via era estrada, mais estrada e, de vez em quando, um posto velho ou algum bar caindo aos pedaços no acostamento.
— Não que eu esteja me opondo a alguma distração… — falei, puxando a manga da jaqueta — …mas alguém aí sabe por que exatamente estamos indo pra Hill City? Porque até agora, só me jogaram no carro.
Mikael mexia no painel do carro à procura de uma frequência de rádio decente. Ele soltou um tch com a língua, aborrecido com o chiado entre as estações.
— Agentes. Estamos atrás dos que sobreviveram ao ataque do Mephisto. Se é que tem alguém vivo ainda. A missão é resgate. Ou… reconhecimento, se for o pior.
— Então tem chance de ainda ter alguém lá? — Lewis perguntou.
— Pequena, mas tem. Teve um sinal detectado perto da área do incidente, dois dias atrás. Podia ser equipamento dando defeito… mas também podia ser alguém tentando pedir socorro.
Perdemos a fala por uns segundos. Eu diria que era um silêncio pesado, mas não desconfortável.
— Vocês acham mesmo que, depois de tudo aquilo, alguém conseguiu escapar? — perguntei, não esperando muito otimismo.
— Se escapou, não foi por sorte. — Raven disse sem tirar os olhos da estrada. — Quem sobreviveu a um Mephisto sabe se virar. E vai ser um bom reforço se ainda estiver respirando.
Mandy se ajeitou no banco e cruzou os braços, olhando pro teto do carro com um meio sorriso.
— Aposto que, se a gente achar alguém vivo, vão estar sujos, mal-humorados e com fome. Ou seja, vai parecer muito com a gente agora.
Lewis riu pelo nariz, sem disfarçar.
— Isso aí foi mais verdade do que piada.
— Ué, eu sou prática. — Deu de ombros. — Comida, abrigo e gente que não tenta te matar já é luxo hoje em dia. Se eu fosse vocês, não esperava mais que isso.
Dei um leve sorriso. Ela não era exatamente engraçada, mas tinha um jeito de aliviar a tensão que não soava forçado. Fazia o tipo de pessoa que tentava manter o clima leve sem ignorar o peso da situação.
— Então estamos indo buscar fantasmas famintos. Bacana. — falei, encostando a cabeça no encosto do banco. — Mal posso esperar.
O sol da manhã ainda estava baixo, recortando as nuvens esfiapadas do céu com uma luz dourada tímida. As janelas do carro estavam embaçadas por dentro, o que nos obrigava a esfregá-las de vez em quando com a manga da jaqueta para enxergar melhor o caminho.
Na altura de Casper, Wyoming, a luz já estava mais intensa, e o vento carregava poeira e o cheiro seco de estrada longa. Entramos na US-18, que cortava o estado de Dakota do Sul como uma cicatriz, e foi ali, já próximos ao Condado de Pennington, que vimos a placa meio torta à margem da pista: Hill City – 25 milhas. O ferro estava enferrujado, a pintura desbotada pelo tempo, mas ainda era possível ler o nome.
Atrás dela, só havia pasto alto e céu aberto.
Depois de quase nove horas de viagem, o carro finalmente cruzou o limite da cidade. Hill City, pequena e isolada, surgiu entre colinas áridas e árvores esqueléticas. A arquitetura simples, com casas baixas e estruturas antigas de madeira, dava a impressão de que o tempo ali não passava com a mesma rapidez das grandes cidades. Tudo era marcado por um certo abandono, tanto físico quanto emocional.
Nenhuma movimentação. Apenas o ronco do motor do carro ecoando entre os prédios baixos.
Enquanto cruzávamos o centro da cidade, dava pra sentir que alguma coisa tinha acontecido ali. Ou talvez estivesse prestes a acontecer. Um lugar assim não era apenas esquecido. Era evitado.
Hill City estava suspensa entre dois mundos contrastantes: o que existia antes da catástrofe e o que restava agora. Uma cidade paralisada no tempo, à espera de ser lembrada… ou de ser completamente apagada.
Raven estacionou o carro em uma rua estreita próxima ao Hill City Coffee, um estabelecimento, à primeira vista, solitário em meio à tranquilidade da cidade.
— Lembrem-se, evitem problemas e estragos desnecessários. Não quero desperdiçar recursos da organização com reparos nesta cidade.
Mandy lançou um olhar significativo para Lewis, que estava ao seu lado, antes de responder:
— Ouviu isso?
— Fecha essa boca.
A resposta dele era uma mescla esperada de irritação e desdém.
Eu fui o primeiro a sair do carro, seguido pelos dois.
Uma sensação de paz e conforto era o que permeava o ar da cidade. Cidades do interior, como Hill City, geralmente ofereciam essa atmosfera serena, de onde a rotina diária se desenrolava sem grandes transtornos.
Mikael já estava a desafivelar o cinto de segurança. Antes que pudesse sair, Raven estendeu a mão e pegou seu braço.
— Espera. Quero que me responda uma coisa.
— Ah… — Suas sobrancelhas estavam ligeiramente franzidas. — O quê?
— O que você vê de tão especial nele? O Krynt deveria estar morto. Nós dois sabemos disso.
— Os Mephistos reagem à presença dele da mesma forma que um espelho invertido reage à luz. Aquela energia não é exatamente oposta à deles. É como se falassem a mesma língua, mas com outra intenção. Isso é raro e único, na verdade. E se conseguirmos entender isso, pode ser a vantagem que nunca tivemos.
Ela balançou a cabeça, um meio gesto de ceticismo.
— Você tá falando como se ele fosse uma chave. Mas chaves abrem portas. E nem toda porta devia ser aberta, Mikael.
— Eu sei, por isso gostaria de saber a sua sugestão. Vamos continuar lutando no escuro até que não sobre ninguém, perdendo um por um?
Raven desviou o olhar por um instante, os dedos tamborilando no volante.
— Eu sugeriria que não confiássemos num garoto que tem o rastro de um massacre nas costas. Mesmo que ele tenha algo especial.
— Não tô pedindo confiança cega. Eu só… — Mikael passou a mão pelo rosto, cansado. — Eu só sei que, se a gente jogar ele fora agora, vamos estar jogando fora a única chance que temos de virar esse jogo.
Em silêncio, ela ouviu. Os dois sabiam que suas palavras não eram apenas manobras táticas. Isso não era tudo. Raven também sabia que Mikael não estava contando todos os detalhes.
— E se ele perder o controle? — perguntou depois de um tempo, sem encará-lo. — E se essa coisa dentro dele tomar o comando?
— Aí vamos ter um problema maior do que qualquer Mephisto já causou. Talvez ele não precise perder esse controle se estivermos lá e ele for guiado. Podemos fazer diferente dessa vez.
Raven encostou a cabeça no encosto do banco, fechou os olhos por um instante, e então murmurou:
— Você não está bem, Mikael. Tenho visto. Tem ficado sem tempo, com poucas opções. Isso é desespero?
— Não. Isso é a última alternativa.
— A vice-líder não concordaria com você.
— Nem você concorda comigo. — Mikael esboçou um sorriso. — Mas ainda assim, tá aqui. Provavelmente porque você também quer acreditar que ainda existe algo diferente no fim dessa estrada.
Raven desviou o olhar pela janela do carro. As palavras que sempre vinham rápido ficaram presas em algum lugar atrás dos olhos dessa vez. Ao invés de críticas ou advertências, restou um tipo de quietude densa, de modo que ela tentava decifrar algo que nem sequer compreendia totalmente.
Quando finalmente falou, sua voz veio mais baixa:
— Você acha mesmo que existe salvação pra algo… tão distorcido?
A pergunta pairou no ar como fumaça. Não era cínica. Existia uma honestidade crua ali, algo que doía mais do que qualquer acusação.
Mikael inspirou devagar. Por um instante, procurou dentro de si a forma mais sincera de responder, não por ela, mas por ele mesmo.
— Eu acho… — começou, o tom calmo, quase em tom de conversa consigo mesmo — … que até as partes mais escuras de alguém carregam a semente de alguma mudança. Não tô dizendo que é simples. Ou que sempre dá certo. Mas já vi coisas piores encontrarem um jeito de mudar. De resistir.
Virou o rosto, encarando-a.
— E sim, acho que até o Krynt tem esse espaço dentro dele. Mesmo que ele ainda não saiba.
Raven sustentou o olhar por alguns segundos, a expressão endurecida por fora, mas com um brilho difícil de nomear nos olhos. Algo entre dúvida e receio, ou talvez uma esperança que não queria admitir.
— Você fala disso como quem viu de perto.
Mikael assentiu, com um leve movimento de cabeça.
— Porque vi. E porque carrego minhas próprias sombras também.
Ela não disse mais nada. Mas naquela ausência de palavras, havia mais aceitação do que antes.
O sol de verão lançava um brilho dourado sobre a cidade, enquanto o vento carregava consigo a promessa de descobertas e desafios que estavam por vir.
O mesmo sabia que as respostas que buscava eram tão esquivas quanto a brisa que soprava, mas ele estava determinado a desvendar quaisquer mistérios.
Enquanto descia do carro, uma sensação de leveza e liberdade o envolveu. Ele aproveitou um momento para respirar o ar puro e revigorante da cidade. Era uma mudança bem-vinda em relação aos corredores frios e estéreis das instalações da organização.
A atmosfera da cidade era convidativa, deixando para trás as preocupações que o assombravam.
— A partir daqui, as coisas ficam imprevisíveis. — começou Mikael, encarando cada um de nós. — Estamos lidando com um Mephisto mortal. Nosso objetivo primário é localizar qualquer sinal dos agentes que desapareceram durante o último ataque. Se ainda estiverem vivos, eles conhecem a área melhor que nós e serão um reforço valioso.
Cada um de nós respondemos com o mesmo sinal de aprovação: jóia.
— Separem a cidade em quadrantes. Prestem atenção em qualquer anomalia, como campos energéticos instáveis ou zonas com interferência em dispositivos, ou qualquer rastro deixado pelo Mephisto. Mesmo quando tentam se esconder, eles causam perturbações ambientais.
Ele ajustou o comunicador no pulso, mas antes de se afastar, virou o rosto na minha direção, como se tivesse lembrado de algo.
— Ah, Krynt, esteja atento a qualquer sensação estranha. Dor de cabeça, peso no peito, alteração no humor… qualquer coisa sutil pode ser um sinal. Pode ser nada, mas, considerando o que tem dentro de você, essas perturbações podem não passar batido.
— Como assim?
— Digamos que você e o Mephisto não são tão diferentes quanto gostaria. Pode acabar… sentindo ele por perto, antes dos outros perceberem.
Fiquei calado por um instante, processando aquilo.
— Isso é tipo um sexto sentido?
— Algo assim. Só não se engane, se quiser, o que está aí dentro também pode mentir. Aprenda a diferenciar o que é seu do que não é.
Mikael dispensou-se para um local arbitrário com um aceno de cabeça.
— Ouviram? Tomem cuidado, pessoal, sério. — alertou Mandy.
— Quem devia ter cuidado era o Krynt. — disse Lewis, me encarando de lado.
— Só porque sou novato aqui?
— Também, mas não é só por isso. — Apontou o dedo na minha direção. — Essa coisa aí perigosa. Por isso acho melhor você ficar por perto.
— É, Krynt, eu concordo. — Mandy me lançou um olhar significativo. — Vem com a gente, é mais seguro.
— Nah. Sem chance.
Coloquei minhas mãos nos bolsos enquanto seguia em frente, desconsiderando o que acontecia ao meu redor.
— Vou dar uma volta também. Eu posso lidar com qualquer coisa. — Olhei para eles de relance, com um sorriso provocador. — Principalmente com vocês.
Minha despedida tinha um tom desafiador. Em outras palavras, eu estava determinado a ficar sozinho. No entanto, tinha em mente que ninguém me deixaria sair voluntariamente.
Mandy voltou para Raven, que ainda estava no carro com o celular na mão, e perguntou:
— Ei, ei, olha lá, ele tá saindo. O que a gente faz?
Raven, calma e autoritária, respondeu:
— Está tudo bem. Se algo der errado, a culpa é do Mikael.
Ela manteve o celular na mão, mas fez um gesto tranquilizador com a outra, como se estivesse minimizando a situação.
Mandy, por outro lado, ficava inquieta, mexendo nos cabelos e olhando ao redor nervosamente. Apesar disso, assentiu, confiante na resposta dela.
— Ah, quando eu pegar aquele idiota… — Lewis disse, deixando transparecer sua raiva.
— Não sou fã dele também. Mas, enquanto isso, vamos andar pela cidade.
— Você ao menos conhece os lugares daqui?
A verdade era que ambos sabiam muito pouco sobre Hill City.
Mandy parecia perplexa por um momento, mas rapidamente respondeu com otimismo:
— Ouvi dizer que tem um museu, algumas lanchonetes e… Não importa! Só vem comigo, ficar parado aqui é um tédio.
— Não seja tão idiota assim. Estamos em uma missão séria.
— Eu sei, burro. Sei o que tô fazendo.
— Se algo der errado, a culpa será sua, entendeu?
Mandy começou a rir, achando o pessimismo de Lewis um tanto cômico.
— Caramba, você é muito dramático! Anda logo, para de enrolar.
Lewis soltou um suspiro, erguendo as mãos em sinal de rendição.
— Tá bom, eu vou. Só porque é necessário, senão eu ficaria aqui só de guarda.
— Guarda? Pra quê? — Ela lhe olhou com um ar de deboche, balançando a cabeça. — Se é assim, me proteja, então. Pode ser?
Sorriu e piscou para ele, acenando com as mãos para que seguissem.
Assim, os dois embarcaram na excursão que os libertaria do tédio, entrando nas ruas da cidade com uma sensação constante de expectativa.
O acesso à Internet era quase inexistente, deixando apenas Mikael e Raven com seus celulares, à disposição para informar qualquer descoberta pertinente.
** ** **
The City of Eugene, sede da agência, 15h:30.
A vice-líder estava no seu escritório, com o telefone pressionado entre o ombro e a orelha, enquanto as mãos trabalhavam ao abrir e fechar arquivos na mesa abarrotada. Inclinava-se ligeiramente para a frente, sustentando o tampo da mesa com os cotovelos e os dedos que batiam contra a madeira em ritmo que traía a sua aparente calma.
Do outro lado da linha, estava o líder.
— Alguma novidade sobre a análise forense do local? — perguntou, cruzando as pernas.
— Ainda estamos decifrando os dados. Mas a energia residual encontrada no local foge de qualquer padrão. Mesmo para um possesso parcial, é algo fora do comum. As amostras coletadas nas áreas mais destruídas mostram uma interação estranha com os elementos do ar e do solo.
Descruzando as pernas, ela se levantou. Caminhou até a janela, afastando a cortina apenas o suficiente para observar as luzes da cidade, que tremeluziam no horizonte como lembranças teimosas de normalidade.
— E as vítimas? Alguma pista nas autópsias que nos dê alguma vantagem?
— Os Pesquisadores encontraram rupturas celulares aceleradas em várias das vítimas. Aparentemente, os corpos foram expostos a algo semelhante a corrosão energética. O que mais preocupa é que algumas delas apresentavam traços de energia negativa antes do evento.
A vice fechou a cortina de forma brusca, girando sobre os calcanhares e voltando à mesa.
— Isso estava no escopo das previsões?
— Não nesse nível. Subestimamos o acúmulo de energia negativa deixada por ele. O lugar agora está saturado. É quase radioativo. Precisaremos de semanas para limpar, e mesmo assim não há garantias.
Os dedos dela roçaram o canto de um relatório sobre a mesa, mas os olhos estavam fixos no vazio.
— Então é definitivo. Sem chance de mitigação a curto prazo?
— Nenhuma. E temos outro problema. Jornalistas já tentaram invadir o perímetro. Querem imagens. O reforço de segurança foi acionado, mas sabemos como eles são.
Largando o relatório com força, ela apertou o telefone contra a orelha.
— O que me preocupa são as famílias.
— Eles receberam a versão oficial. Acidente trágico durante uma intervenção. Mas elas querem respostas de verdade, não as que entregamos.
A mulher esfregou as têmporas para aliviar a tensão crescente.
— Sempre estamos lidando com verdades pela metade. E sobre ele? Tem certeza de que nada escapará?
— Fizemos o necessário para enterrá-lo em relatórios confidenciais. Para todos os efeitos, ele nunca esteve lá.
Cruzando os braços, esta inclinou-se contra a borda da mesa.
— Sempre tem alguém que desconfia.
— Não há como desconfiarem de algo que não conhecem. E meu foco agora é outro.
— Que foco?
— O impacto político. A diretoria da escola está à beira de processar a agência por negligência. É uma bomba-relógio, Darcy. Precisamos de uma estratégia para desviar a atenção.
— Você já tem um plano? E que funcione de verdade, de preferência.
— Temos algo em andamento. Pagamentos às famílias, nova abordagem na mídia. Vamos redirecionar a atenção para outro escândalo. O que não podemos admitir é que a energia negativa foi consequência direta dele. Ele ainda não está sob controle total, e você sabe disso.
Ela deu alguns passos curtos pelo escritório, os punhos cerrados, como se quisesse dissipar a irritação crescente.
— Estamos apenas adiando o inevitável.
— Não há alternativa. Não neste momento.
Parou diante da mesa, respirando fundo, como se tentasse acalmar a mente em meio ao caos.
— Fechem a escola. Transformem o lugar em um símbolo trágico, algo que ninguém poderia ter evitado.
— Fechar a escola é fácil. — respondeu o outro com uma leve ironia. — Difícil será convencer a imprensa de que nossa intervenção foi impecável. Estamos a um passo de sermos retratados como vilões em algum documentário sensacionalista.
Os dedos dela deslizaram até a testa, onde massageou o início de uma dor persistente.
— Talvez devêssemos escrever o roteiro nós mesmos. Facilitaria muito lidar com os abutres da imprensa.
A resposta foi um riso breve, ácido.
— Você tem razão. Mas, por enquanto, vamos nos ater ao básico. Isso deve segurar as pontas. Não gosto disso mais do que você, mas é o que temos. Concentre-se nele. Não podemos repetir um incidente desse nível.
— Não podemos continuar escondendo tudo. Um dia, não haverá mais lugar para esconder o que fizemos.
— A mídia ainda te assusta? Eles já tentaram mandar drones. Dissemos que era contaminação química. O público adora histórias de desastre ambiental.
— Isso não vai durar.
— Claro que não. Mas você já viu alguém questionar depois de receber um cheque gordo? As famílias vão aceitar, e a mídia encontrará outro escândalo para mastigar.
A vice-líder respirou fundo e disse:
— Me mantenha informada. E, Arthur…
— Sim?
— Da próxima vez, antecipe esses problemas. Não podemos continuar vivendo de remendos.
Ele soltou uma risada curta, quase debochada.
— Trabalhar com você é sempre uma inspiração, Darcy.
— Igualmente.
Desligou o telefone.
Sentou-se e apoiou os cotovelos na mesa, onde entrelaçou os dedos diante do rosto numa tentativa de proteger um pensamento delicado e insistente em ganhar forma.
Com a mão direita, alcançou a prateleira ao lado, onde estava uma caixa de cigarros. Puxou um deles, girando-o entre os dedos antes de levá-lo à boca.
Em seguida, retirou um isqueiro metálico do bolso lateral da calça. O som seco da tampa ao ser aberta quebrou o silêncio, seguido pelo ruído breve e agudo da roda que deu vida à chama. Inclinou-se para acender o cigarro.
A primeira tragada foi pausada, o que trouxe alívio imediato, embora efêmero. A fumaça subiu em espirais tênues e se espalhou pelo escritório, que contrastava com a ordem imaculada do ambiente.
Darcy recostou-se na cadeira, equilibrando o cigarro entre os dedos, enquanto deslizava a outra mão pelo mouse.
— Para entender o que existe dentro dele, talvez reste apenas permitir que viva.
Seu olhar deixou o monitor, pousando nos formulários digitais exibidos.
— Ah… você tem alguma pista sobre isso?
Cada um trazia informações detalhadas sobre os Mephistos capturados: nomes, descrições, registros. Ao lado de muitos perfis, o selo vermelho de “Licença de Morte” era exibido como um veredito irrecorrível, frio e burocrático, mas necessário — ou assim diziam os protocolos.
— Mikael…?
Fixou-se em um formulário específico.
— Ele não sobreviverá por muito tempo… não com aquilo dentro dele. Mas há algo que me incomoda. Maldição…
Ela levantou a mão direita e pressionou a testa com força, mas não conseguiu conter a maré de pensamentos que insistia em escapar de sua mente. A sensação de cansaço era avassaladora, mas não havia tempo para descanso. Não enquanto a verdade permanecesse oculta, enredada em ideias contraditórias, fragmentos de planos e presságios que se desfaziam antes de se consolidarem.
A busca pela verdade raramente seguia um caminho reto; era repleta de contradições, erros e obstáculos imprevisíveis. O ritmo extenuante de seu trabalho revelava as fissuras ocultas sob a máscara de determinação que exibia ao mundo.
— Que isso acabe logo.
Mais uma vez, ela liberou a fumaça pelos lábios. O ar carregava não apenas o resquício do cigarro, mas também uma fração do peso que estava sufocando-a.
Fumar se tornava um instante de trégua, um curto intervalo em meio à tempestade que habitava sua mente.
— E que venha um pouco de paz.
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