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    Certa vez, Emma dissera: 

    — Nossos sonhos podem se tornar realidade. O que desejamos pode, sim, acontecer. Sem isso, viver seria como acordar num mundo sem sol, olhar o céu e não ver estrelas, mergulhar no mar e não sentir as ondas. Seria existir sem sentido.

    Naquele tempo, Benjamin não tinha noção do quão pesadas eram aquelas palavras. Agora, porém, elas voltavam como um significado adormecido, reverberando no meio do caos que se formava dentro dele.

    Emma acreditava que o verdadeiro drama da vida não estava na presença dos esquecidos, mas na ausência daqueles que não deixavam vestígios. Era na omissão, no apagamento, no anonimato das almas sem nome que a existência perdia seu valor. Para ela, todos tinham algo a oferecer, mesmo que o mundo se recusasse a enxergar.

    Mas o mundo, cruel em sua forma de separar o certo do errado, traçou linhas rígidas. Surgiram rótulos. Criaram-se heróis munidos de discursos inflamados e vilões cobertos de culpa, enquanto a realidade se contorcia para se encaixar em moldes frágeis. A moral se tornou um campo minado, e a ética, uma corda bamba, demandando coragem e lucidez sobre cada passo.

    Foi nesse espaço estreito entre o que ensinaram e o que sentia que Benjamin se perdeu. Ele sentia que cada escolha era um fardo. Quaisquer ações ameaçavam derrubar tudo que seus pais haviam tentado construir nele com tanto cuidado por meio de valores nobres, respeito e compaixão. Mas seu medo também era grande. Um medo espesso, que se infiltrava nos ossos, dizendo que os sonhos eram frágeis demais para resistir ao mundo real.

    Naquele instante, entre a voz doce de Emma e o sussurro sombrio que morava dentro dele, Benjamin entendeu que algumas decisões não pediam permissão. Elas simplesmente aconteciam. Somente se dá conta do quanto mudaram depois que o chão não treme mais.

    O destino de Emma pendia por um fio, num balanço entre a esperança e o abismo. Sua ternura transparecia nos gestos, como se tentasse, com as próprias mãos, sustentar o mundo que conhecia e que estava prestes a desabar.

    Naquela tarde, preparava um chá, o mesmo de sempre, que costumava aliviar os incômodos do filho. 

    — Fica aí, querido. Já vai ficar pronto. — pediu, enquanto mexia lentamente a colher na xícara.

    Benjamin, sentado à mesa, apenas murmurou um sim bem baixo, olhando para baixo, com as mãos juntas entre os joelhos. A espera se esticava entre os dois como um véu tenso, suportada apenas pelo farfalhar das folhas de chá e pelo assobio abafado da chaleira que se aproximava do ponto de ebulição.

    À sua esquerda, o armário permanecia quieto. Mas então, algo o rompeu. Uma voz, íntima e distante ao mesmo tempo, atravessou o ar e encontrou abrigo em sua mente.

    — Um desejo precisa morrer para se tornar real.

    Benjamin piscou devagar, deixando os olhos fixos nas gavetas de modo que elas se assemelhavam a portais. O que ele ouvia não era um pensamento seu, mas também não soava como um intruso. 

    Era… inevitável.

    — Compaixão é uma virtude que sangra devagar. — continuou a voz. — Ela se arrasta, dói, exige. E se for mais forte que sua vontade… deve ser sacrificada.

    Sem entender se era obediência ou transe, ele se levantou da cadeira. Seus passos em direção ao armário eram silenciosos. Sua mão tocou a madeira do armário. A gaveta rangeu ao se abrir, revelando facas ordenadas como sentinelas frias e reluzentes à espera.

    Uma delas foi escolhida. O metal tocou sua palma de maneira desconcertantemente natural. Emma percebeu. Instintivamente, ela se virou, ainda segurando a colher, com o vapor do chá ondulando sobre seu rosto como um véu trêmulo.

    — Ben? O que você tá fazendo com isso?

    Ele não respondeu. Apenas ficou ali, parado, o olhar fixo, opaco.

    — Me dá essa faca. Agora. — A voz dela tremia.

    A lâmina cintilou sob a luz da cozinha, com um ar de quem estivesse reconhecendo a tragédia que estava por vir. O tempo parou por um instante. A chaleira chiava ao fundo, alheia à cena que se desenrolava.

    Entre os dois, apenas o som das respirações — uma ofegante, outra calma demais — separava o amor de uma desgraça.

    Os segundos esticaram-se como cordas frágeis à beira do estouro. 

    Na cabeça de Benjamin, a voz não cessava.

    — Se um sentimento for como um grão…

    Era um sussurro que não vinha de fora, mas nascia no fundo de si, lá enterrado desde sempre, esperando o momento certo para germinar.

    A partir do solo fértil de sua solidão, ganhava forma uma criança sombria, deformada pela fome de significados distorcidos. Alimentada por ilusões, por um amor confuso, por um vazio que ninguém notou.

    Uma melodia invertida vibrava por suas entranhas, como um balé doentio dançado entre o proibido e o profano. Um ritual sem altar, sem espectadores, onde o sacrifício era ele mesmo.

    As barreiras entre realidade e devaneio ruíram. Tudo que era concreto se dissolveu em névoa. Seus pensamentos já não obedeciam. As paredes do próprio juízo se dobraram em espelhos tortos. A razão escorria como tinta velha, e em seu lugar restava apenas um labirinto onde os desejos se perdiam e os medos ganhavam forma.

    — … viverá…

    Aquilo que o movia sem nome, sem corpo, se alimentava. E o fazia com tranquilidade. Permitira pequenas concessões antes por meio de raiva abafada, mágoas veladas e fantasias secretas. Dessa vez, assumia o leme.

    Benjamin não precisava mais entender. A lógica se tornara cruel. Tudo adquiria a aspereza de um destino premeditado. E daquele deserto interior no qual a esperança outrora caminhou, restavam apenas sombras esticadas e famintas.

    Foi então que a voz se firmou, solene, com o peso de um juízo final:

    — … e morrerá como um grão.

    A consciência de Benjamin estava despida de todas as complexidades e ambiguidades. 

    O que restava era o som da carne sendo rasgada, os respingos de sangue pintando um quadro aterrador de júbilo e pânico genuíno. 

    A dor era contagiante, penetrante, como uma faca trespassando o peito de Emma, espetando suas emoções mais profundas.

    Benjamin exibia um sorriso diabólico, mas, na verdade, desejava chorar. Era uma dor que se tornara desnecessária, uma agonia sem sentido. 

    Com um sorriso esquisito, mais uma contração do rosto do que qualquer expressão de prazer, Benjamin a encarava. Por dentro, estava implodindo. Queria gritar, queria vomitar, queria voltar. Longe demais para tudo isso. Era como se a própria dor tivesse escorrido pela ponta da faca e agora contaminasse tudo, inclusive ele.

    Até que ele se libertasse dessa tortura, não haveria limites para seus atos.

    Ouviu-se, de repente, passos vindos do corredor.

    Benjamin estremeceu. O bater de seu coração foi mais alto que seus próprios passos, avisando-o de que ainda havia tempo de se esconder. Num impulso, virou-se e entrou sob a bancada baixa da cozinha, atrás de uma cortina mal costurada que cobria o armário de vassouras. O espaço era pequeno, apertado e abafado. A madeira fria tocava suas costas, e a ponta dos pés estava próxima demais da poça de sangue que se alastrava, pondo em risco sua discrição.

    Por entre as frestas da cortina, conseguia ver o corredor estreito se abrir na entrada da cozinha. E então ele apareceu.

    Ethan.

    Do esconderijo apertado, Benjamin observava tudo. Ele via Ethan se aproximar do corpo de Emma, com a expressão em ruínas e os olhos procurando desesperadamente um sentido naquilo que estava diante dele. E ali, daquela forma, ele não enxergava apenas o homem que chamava de pai. Enxergava o reflexo do mundo que acabara de quebrar.

    A figura curvada de dor ajoelhada diante do corpo da mãe era a evidência de que tudo não passara de um sonho. O sangue não era sonho. Que a lâmina em sua mão há pouco não fora apenas um símbolo, mas um instrumento final.

    Mas por que doía tanto?

    Ele queria sentir raiva. Queria acreditar que existia justificativa para aquelas palavras sussurradas em sua mente, mesmo que fossem sombrias. Ao ver Ethan cair em prantos silenciosos, com o próprio coração se desfazendo em carne viva, Benjamin sentia outra coisa. Algo muito mais cortante. Algo sem nome.

    Não era culpa. Ela ainda não sabia. Eram dores que transcendiam qualquer conceito de certo ou errado, uma sensação de que uma parte dele tivesse sido arrancada à força e deixada ali no chão, ao lado do corpo da mãe.

    E enquanto Ethan tocava o rosto gelado de Emma com as mãos trêmulas e os olhos alagados de memórias, Benjamin entendeu a terrível verdade de que não havia mais volta. Nenhuma desculpa, nenhum arrependimento tardio poderia remontar os pedaços quebrados daquela história.

    Ele pensava em todas as noites em que sua mãe o ninava, nas palavras doces e nos conselhos ao pé da cama. Lembrou-se do carinho presente, do cuidado paciente e infinito. E agora ela estava ali. Fria. Silenciosa. Eterna.

    “Eu fiz isso.”

    Talvez fosse hora de sair da sombra.

    Talvez fosse hora de enfrentar aquilo que restava dele mesmo.

    — Eu sinto muito, papai. — disse Benjamin, saindo debaixo da mesa.

    Ele segurava uma faca em sua mão, a lâmina manchada de sangue ainda fresco.

    Ethan o encarou, seus olhos, uma mistura de confusão e raiva contida. 

    O pai começava a entender a verdade, uma verdade tão sombria e perversa que quase parecia inacreditável.

    — Mamãe… Ela foi para o céu e nunca mais vai voltar.

    A confissão de Benjamin não tinha sombra de remorso. Era como se ele soubesse que seus atos eram inevitáveis, parte de um destino já traçado.

    E então, as palavras do seu filho ecoaram em sua mente.

    — Que merda você fez?

    — Mas pai, você… Você não está orgulhoso? — Um riso hediondo escapou de seus lábios. — Não é isso que queremos…?

    Era o dever de Benjamin, sua responsabilidade assassina. Uma ordem doentia daquele que o havia aprisionado em suas garras subconscientes. 

    O que mais poderia ter feito? 

    A alma de Benjamin estava manchada de escuridão, um servo obediente das vontades de seu mestre invisível.

    O homem estava à beira do abismo, suas emoções oscilando entre a revolta e o desespero.

    — Maldito seja o dia em que você cruzou nosso caminho. Eu me arrependo tanto de você como filho…

    Proferiu palavras que jamais teriam sido imaginadas vindo dele, especialmente direcionadas ao seu próprio à criança que cuidou. 

    Ele, que era conhecido como um pai afetuoso e presente, alguém que cometia pequenos erros, mas sempre manteve sua postura firme.

    — Pai…

    Seu timbre carregava um tom sinistro e mórbido, e sua mera pronúncia evocava uma sensação de terror inominável.

    Ethan sentiu um arrepio percorrê-lo, um medo paralisante e pungente do filho que estava diante dele. 

    Como uma criança tão jovem poderia abrigar uma atitude tão macabra e perturbadora? 

    A realidade era tão sinistra que Ethan quase não conseguia processá-la. 

    Seu filho, uma vez inofensivo, agora estava tomado por um desejo assassino.

    Um impulso tão doentio nascendo e crescendo dentro dele.

    As ideias preconcebidas de Benjamin sobre relacionamentos seguros e confortáveis foram desmentidas com brutalidade. 

    A história estava longe de acabar; estava apenas começando. 

    Seu enredo era entrelaçado com fracassos e sucessos, teias de decepções e triunfos. 

    Um fracasso isolado poderia levar à desesperança, mas Benjamin estava destinado a mais do que isso.

    Dentro de cada herói habita um monstro, e dentro de cada monstro espreita um herói. 

    A dualidade era uma realidade inescapável. 

    Seu espírito, uma arena onde o bem e o mal travavam uma batalha constante, era o reflexo dessa dualidade.

    Dúvidas corroeram as fundações da confiança, tanto em relação às ações de outras pessoas como em relação às próprias motivações.

    —Sua própria vida é limitada. Não perca tempo se preocupando com a vida de outra pessoa.

    Uma sombra alongou-se sobre Benjamin, assumindo uma forma humanoide, sua voz sussurrando em seu ouvido. 

    Somente Benjamin podia ouvir essa presença oculta. 

    — Eu vou garantir que ela também te encontre no céu.

    A realidade começou a se distorcer na mente do menino, que passou a agir sob a influência sinistra da sombra. Ele era uma criatura cuja identidade permanecia oculta, um manipulador que o conduzia a desejos mórbidos.

    A ordem foi cumprida, o resultado, alcançado.

    Assim como Emma, Ethan foi envolvido por uma corrente de emoções paralisantes.

    A energia negativa se derramou sobre ele como sombras gélidas, bloqueando qualquer vislumbre de clareza em seus pensamentos. A angústia subitamente se tornava um espectro palpável que o envolvia completamente.

    Dessa forma, foi trespassado por lâminas afiadas. 

    O arrependimento não encontrou espaço em seu coração. 

    A tristeza que um dia poderia ter escondido o terror não podia mais fazer isso. A presença de Benjamin estava irrevogavelmente ligada a essa horrível criatura.  

    O elo estava rompido, os sentimentos estilhaçados e as sensações esmagadas. 

    Sua alma choraria tanto quanto seu coração desejasse. Mesmo assim, havia feito a escolha, sem chance de retorno.

    A esperança se esgotou, a vida perdeu o sentido.

    — Você entende agora? — As palavras da sombra ecoaram, penetrando sua mente. — A esperança traz consigo a ilusão…

    Os olhos de Benjamin permaneciam fixos nos dois corpos mutilados diante dele, sua mente dominada por um comportamento doentio.

    —… e a ilusão traz consigo o sonho…

    Era forçado a testemunhar essa cena, uma realidade tortuosa que ele mesmo havia desencadeado.

    —… e o sonho, por fim, traz consigo a decepção.

    Portanto, era uma criança consumida por um vazio que se alastrava dentro de si.

    — Benjamin…

    À luz do cenário sangrento, uma presença surgiu como um imaginário que se escondia atrás da criança. 

    Quando se virou para encará-la, percebeu a aparição que estava se passando por Amy. 

    Seus olhos exibiam uma distorção atroz, com uma aura macabra envolvendo suas feições.

    — Está tudo bem. — Sua voz cortou o ar, doce e infantil, com um tom musical que se misturava com a escuridão do ambiente. — Você tomou a decisão correta. Para conseguir o que queremos, às vezes é preciso fazer sacrifícios.

    A melodia de suas palavras contrastava dolorosamente com a destruição que a cercava, como se ela fosse uma aparição deturpada de um conto de fadas.

    — Você é como um super-herói agora. Os heróis fazem o que é necessário, não é? Mesmo que seja feio. Mesmo que seja sujo. Eles fazem o que é necessário.

    O olhar vago de Amy estava fixo em Benjamin, como se estivesse buscando sua aprovação para as mortes que haviam se desenrolado.

    — Vermelho é minha cor favorita, você sabia? É tão bonita e… significativa.

    Abaixou-se e deslizou os dedos sobre as manchas de sangue que pontilhavam o chão. 

    — É tão bonito, não acha? Ver o mundo tingido dessa cor.

    Seu sorriso, um deleite bizarro, alternava entre infantil e assustador.

    — Obrigada por esse presente.

    Amy se levantou e foi até Benjamin. 

    Com a mão ela tocou na mancha de sangue na pele dele, fazendo com que aquilo se transformasse em uma obra de arte a ser apreciada.

    — É uma bela bagunça. Algumas vezes, o herói precisa sujar um pouco as mãos. Você fez isso muito bem.

    A garota sorriu de forma assustadoramente grácil.

    — Capitão Justiça, meu herói favorito.

    O uso da palavra herói soava irônico.

    Tinha o som de uma memória desvirtuada que, outrora, fora preenchida com dignidade honrosa.

    A trajetória dos eventos deixara o conceito de justiça distorcido, reduzindo-o a um reflexo confuso de sua forma anterior.

    A própria palavra justiça pairava no ar para lembrá-lo da realidade nebulosa com a qual a natureza conseguia gravar o que antes era considerado nobre, em vez de uma promessa de salvação.

    Em uma tentativa de bloquear a visão equivocada que se apresentava à sua frente, Benjamin fechou os olhos.

    Ele suspirou profundamente e sussurrou para si mesmo:

    — Eu quero morrer.

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