Capítulo 33 - Mantas de Retalhos
Cada forma humana passou por transformações rigorosas, tornando-se uma colcha de retalhos de falhas grotescas que causavam estranheza e deformação na alma.
Os membros se contorciam de forma não natural, enquanto os rostos exibiam expressões que oscilavam entre a agonia e o azedume.
A cena se desdobrou em uma discórdia penetrante, ecoando como os murmúrios de um destino malévolo pronto para engolir o mundo que eu reconhecia.
Senti o frio da escuridão se desintegrando em sombras a cada momento que passava, apenas para se transformar em uma manifestação ainda mais sinistra de malevolência.
As cicatrizes representavam uma inundação sombria de energia além da compreensão humana, uma substância maligna que se manifestava como um portal para algo além. Uma distorção grotesca que roubava a essência humana das almas, outrora inteiras e vivas.
As ondulações das Cicatrizes tocaram cada molécula, cada sopro de vida, animando corpos que antes eram apenas meros pesadelos. Os olhos das almas transformadas tornaram-se esferas vazias, refletindo apenas o desejo voraz de Klaus Fritz, extinguindo a luz do espírito humano.
Meus sentidos aguçados atravessaram a confusão, e nuances perturbadoras nas expressões desvirtuadas dessas criações estranhas começaram a se revelar para mim.
“Me desculpem…”
Deformidades faciais horríveis e expressões emocionais atormentadas davam a impressão de estarem congeladas em uma estranha sensação de agonia, como se as almas estivessem presas em um estado eterno de morbidez.
Cada golpe desferido contra essas forças malignas transcendia um mero ataque físico.
“É estranho dizer, mas isso também dói em mim.”
Sentia-me a arrancar pedaços da escuridão que os envolvia a cada golpe, revelando o brilho que jazia sepultado sob um mar de sombras.
Estava à beira de mergulhar nas profundezas da maldade quando o som úmido a golpear a carne retorcida ecoou; era uma resposta, terrível e cruel.
“Não consigo parar de pensar que estou fazendo isso contra alguém que amou, riu, chorou.”
Cada ação servia como um lembrete desagradável sobre minha disposição quanto a sacrificar os últimos vestígios de humanidade que restavam naqueles seres infelizes em prol do triunfo.
“Eles já foram humanos. Almas confinadas em corpos esquisitos. Como posso explicar isso? Estou destruindo vidas, mesmo que elas tenham sido corrompidas por esse poder sinistro.”
Seus rostos contorcidos estavam marcados pela melancolia, e seus olhares vagos, à deriva em uma espessa névoa de escuridão, refletiam uma tristeza sem limites.
“Só que não tem jeito…”
No entanto, entendi que, para derrotar essas manifestações abomináveis, eu precisaria enfrentar a angústia profundamente enraizada que havia tomado conta deles. Mas mesmo quando eu extraía pedaços dos mesmos, não conseguia me livrar da impressão de que toda a essência desses Mephistos estavam irrevogavelmente ligadas às profundezas do desconhecido.
“Já não importa mais quem eles eram. Agora são aberrações e eu sou o único capaz de pôr um ponto final nisso.”
O apelo frenético pela salvação sobrepujou os primeiros pensamentos sobre a humanidade perdida desses seres. Portanto, cada golpe ressoava com uma resolução mais ousada, uma consciência relutante de que eu teria que destruí-los de alguma forma para libertá-los.
“A morte é a única misericórdia que posso oferecer.”
As ideias foram ficando cada vez mais violentas, como se a batalha estivesse me puxando para um abismo moral em que a distinção entre a humanidade e o monstruoso era nebulosa.
Por conseguinte, palavras gentis cederam lugar à inevitável crueldade, e a luta se transformou em um maldito rito de passagem quando meu punho amassou a face de um.
A pele contorcida se separou, expondo uma massa amorfa e sem forma que, apesar de toda a sua falta de estrutura, conseguiu se agarrar assustadoramente à sua antiga humanidade.
E quando esta caiu, o próximo veio, com os olhos mortos e fixos em mim com uma intensidade excruciante.
O peso do que eu estava prestes a fazer fez meu coração disparar, mas não podia permitir que qualquer hesitação surgisse.
“Seja o que for que os tenha transformado, que seja essa a última morte necessária para quebrar a praga que os prende.”
A voz da razão se ajustou à situação difícil em meio à batalha, levando-me a uma decisão em que, ironicamente, o assassinato era uma saída para os espíritos aprisionados na rede inquebrável do mal.
A chegada de Mephisto foi prenunciada por um uivo distante e pela escuridão que nos cercou como tentáculos insaciáveis.
Seu olhar fixou-se na frágil figura de Benjamin – o menino que eu prometera proteger com minha própria vida.
Minha percepção aguçada captou suas intenções sinistras.
A criatura lançou-se sobre o garoto, suas garras afiadas prontas para despojá-lo de sua esperança. Posicionei-me entre eles no último segundo possível. Meus dedos agarraram pelo pulso, resultando em um impasse tenso marcado por um estalo no ar e o som de carne sendo rasgada enquanto suas garras perfuravam minha mão.
— Ngh…
Meus lábios se apertaram com o arfar doloroso. O sangue escorria do ferimento, mas, apesar de tudo, mantive pressionado o punho da criatura persistentemente, como um predador agarrado à sua presa.
— Não posso me esquecer de você.
A boca de Benjamin se contraiu, mas nenhuma palavra foi dita. Sua respiração ficou irregular e seu rosto era uma tela viva de terror. As mãozinhas dele se enroscaram em seus braços, procurando desesperadamente por algo firme para se amparar no desenrolar daquilo à sua frente.
Por um breve momento, Benjamin sentiu a sensibilidade avassaladora de sua fragilidade infantil.
Com minhas veias dilatadas e meu punho coberto de sangue, eu o torci na mão do Mephisto. Sua pele fria e escamosa cedeu relutantemente. A sensação de pele rasgada reverberou, cada fibra de seu músculo foi superada pela força inconcebível que eu havia imposto.
Mephisto soltou um grito doloroso e gutural que se misturou ao som de ossos quebrando, compondo uma sonoridade medonha.
Segurando seu pulso deformado entre meus dedos, preparei-me para dar o golpe fatal.
Tenso e energizado, meu pulso direito se moveu resolutamente na direção do queixo do Mephisto. Sua mandíbula se dobrou com o golpe, deslocando-se violentamente como uma reação corporal à força acumulada em minha mão.
O barulho do osso batendo no osso soou como um alerta ameaçador enquanto a cabeça da criatura se curvava, incapaz de suportar o peso total do ataque.
Segurando seu rosto com a mesma mão, soltei a palma que estava presa às suas garras.
Finalmente livre, não hesitei.
Eu o golpeei com força no estômago, concentrando toda a minha força naquele ponto.
A pele do Mephisto se rasgou horrivelmente quando meu braço o penetrou, expondo seu interior viscoso e sujo.
O som de tecido úmido sendo rompido se combinou com os gritos agonizantes da criatura.
Sangue escuro e pegajoso jorrou da abertura, manchando a pele escamosa da criatura e provocando um fluxo sangrento que escorria por ela.
Quando o soltei, seu corpo caiu sem vida no chão. Seus olhos perderam o brilho, como se a essência de sua maldade tivesse desaparecido.
“Então essa é a sensação de matar alguém.”
O ar ao meu redor estava carregado com uma mistura de pânico e adrenalina, tornando minha respiração difícil.
Quando olhei para minhas mãos, cobertas pelo sangue do Mephisto, senti algo indescritível. Foi um confronto visceral que transgrediu a fronteira delicada entre humanidade e escuridão, um entrelaçamento de triunfo e desconforto.
— Benjamin — olhei-o de canto. —, tá bem?
O brilho assustado em seus olhos se transformara em perplexidade angustiada.
— S-sim.
— Você já fez coisa pior, para de ficar assim.
— Mas a sua mão…
A minha palma canhota apresentava três rasgos verticais. Olhando para as feridas, disse:
— Relaxa. São só marquinhas de uma briga chata. Não se preocupe, logo isso aqui vai sarar e a gente vai tá de boa.
Enquanto tentava dissipar a preocupação que estava crescendo nele, os olhos de Benjamin, ainda surpresos, continuavam observando as marcas em minha mão.
— Me desculpa… Você tá machucado assim por minha causa.
Levantei um olhar brincalhão.
— Machucados a gente cura, moleque. O importante é que agora tamo seguro. E olha, eu faria de novo, só pra garantir que você tá bem.
Dei um sorriso, desarrumando seu cabelo com a mão que estava menos machucada.
— Interessante.
Do outro lado, Klaus Fritz observava todo o procedimento com Amy à porta de sua casa, seus olhos ameaçadores refletindo uma curiosidade mórbida por cada detalhe.
Seu semblante ameaçador denunciava uma obsessão incessante pela selvageria desenfreada.
— Percebo que nosso herói possui um método peculiar para resolver problemas — comentou ele, com um tom de voz carregado de sarcasmo. — Esses truques manuais… são quase uma forma de arte. Já fez isso antes, certo?
Com um sorriso discreto, parecia estar à beira de uma revelação significativa, enquanto segurava o queixo com as pontas dos dedos.
— Você não parece ter poder algum, mas…
Eu me virei para ele com um semblante de desgosto e indignação.
— … possui grande força. Isso, sim, é interessante.
Olhei de soslaio para Benjamin, advertindo-o:
— Não saia daqui.
Aproximei-me rapidamente de Klaus e, quando ele percebeu que eu estava chegando, puxou a garota para trás e fechou a porta imediatamente.
Sem hesitar, eu me joguei contra a porta com meus ombros, tentando arrombá-la de uma vez, causando apenas um baque sólido.
— Porra!
Quando percebi que estava trancada, bati na porta com tanta força que a madeira se deformou e rangeu.
Com vigor renovado, ataquei novamente, dessa vez concentrando-me em um ponto crítico próximo à dobradiça. O impacto ecoou pelo cômodo e a porta, já enfraquecida pelo primeiro golpe, cedeu um pouco mais.
Mas não importava o quanto eu tentasse, estava claro que a resistência da porta não seria superada facilmente. A palma da minha mão ficou cada vez mais vermelha, e eu podia sentir o calor da frustração e a intensidade crescente da dor.
— Não posso perder tempo!
Busquei uma alternativa.
Ao observar uma janela ao lado, vi que ela poderia ser um meio viável para resolver o impasse.
Dirigi-me a ela e, após uma rápida análise da situação, concentrei todas as minhas energias.
Posicionei minhas mãos nos cantos da moldura e dei um golpe certeiro no vidro.
O som do vidro estilhaçando com força ecoou pelo ar, seguido de um estalo nítido.
A janela se partiu num instante, criando uma abertura que me permitiu adentrar a residência.
Diante de mim, a sala de estar se revelava, e o interior da casa se desdobrava como um refúgio improvisado.
— Não fique só fugindo, otário.
O ruído de vidro quebrando sob meus tênis foi o único som a perturbar o silêncio enquanto eu prosseguia.
Avaliei cada passo ao me mover pela casa, atento a fendas e recantos esquecidos por anos.
Caminhando pelos corredores quietos, meu instinto de sobrevivência me guiava entre os móveis cobertos de poeira.
A tensão era amplificada pelo estalar das tábuas do piso sob meus passos, ressoando como lamentos espectrais.
As paredes estavam cobertas de sombras dançantes que produziam ilusões passageiras, porém cativantes.
Senti que algo seria revelado quando abri levemente uma porta, embora o cômodo parecesse estar vazio.
Entretanto, quando olhei mais de perto, vi que duas figuras estavam entrelaçadas, criando uma cena fascinante no meio do espaço.
A luz fraca gradualmente tornou as formas, que eram nebulosas no início, mas distintas, revelando duas formas humanas empilhadas uma sobre a outra.
O cheiro insuportável de cadáver em decomposição foi uma invasão desagradável de meus sentidos que me fez sentir incomodado e enojado. Era uma mistura de odores arrebatadores, repugnantes e nitidamente desfavoráveis.
— Desgraçado…
O silêncio dos mortos forneceu apenas a dura evidência de que um evento horrível havia ocorrido e nenhuma explicação. Minha sensação de impotência diante da catástrofe à minha frente alimentou minha crescente frustração.
— Quando eu te encontrar, eu te juro… — Apertei os punhos. — Vou te fazer de carne morta.
Virei-me em direção ao som distante de um farfalhar e o segui.
Ao alcançar uma escadaria, o rangido de uma escada sob meu peso ecoou no silêncio da casa, soando como um alerta.
Subi as escadas cautelosamente, consciente de que cada passo poderia revelar mais do que eu estava pronto para enfrentar.
Um ar inquietante de expectativa pairava enquanto as portas dos quartos se alinhavam ao longo do corredor no andar superior.
— Ali?
Uma porta ao final do corredor capturou meu interesse. Era uma luz tênue que vazava por suas frestas.
Como se quisesse me seduzir, a luz ficava mais brilhante a cada passo, mostrando apenas o suficiente para despertar meu interesse, mas não o suficiente para resolver o mistério.
Agarrando a maçaneta, hesitei um pouco antes de girar a maçaneta com cuidado e abrir a porta.
Além dela, uma vista maravilhosa foi exposta pela luz que vinha da fenda.
— Nada.
O quarto brilhava como um farol de luz na escuridão da casa. A luz aconchegante de uma lâmpada de cúpula se espalhava pelas paredes, banhando-as em um delicado tom de azul.
O quarto transmitia uma sensação de conforto, enfatizada pelo carpete macio e espesso.
As prateleiras de madeira forravam as paredes e abrigavam uma coleção de livros, alguns bem gastos e outros com aparência de novos e intocados.
Um violão descansava em um canto, enquanto pequenas lembranças e fotografias emolduradas de momentos memoráveis davam o toque pessoal de Amy ao quarto.
— É até um pouco esquisito estar aqui. Mas… deixa eu ver.
Entre as muitas fotos que adornavam as molduras de um espelho em uma estante, uma se destacava por seu ambiente íntimo e comovente.
Ao olhar mais de perto, a foto mostrava os pais de Amy abraçando-a e beijando-a, enquanto ela sorria de forma gentil e inocente.
Essa foto, mais do que as outras, exercia um profundo impacto emocional. Era como se um raio de luz nostálgica tivesse iluminado uma época anteriormente marcada pela tristeza e pelo luto. Os três encarnavam a pura alegria de uma família, eternizada em um único momento.
A constatação veio como um golpe do nada.
— Eram eles. Eram os seus pais que estavam naquele lugar.
A gravidade do que eles haviam testemunhado tornou-se terrivelmente aparente. Os corpos que antes animavam a cena jaziam inertes. Uma única pintura capturou tanto a tragédia quanto a alegria, histórias que se tornaram cruelmente reais.
— Isso é medonho…
Eu sentia meu corpo ser jogado em um mar revolto. Enquanto me esforçava para manter o equilíbrio entre as turbulentas correntes de pensamento, uma dissonante sinfonia de vozes, gritos e sons indistintos ecoava ao meu redor.
— Medonho demais…
As bordas da estante tornaram-se uma âncora inesperada para mim.
Agarrei-me a ela com força.
Serviu como um ponto de estabilidade no mar revolto dos meus pensamentos.
Ao me observar no espelho, não era só a perplexidade que se fazia visível na minha imagem refletida; havia também uma mudança inquietante.
— Hm?!
Uma figura absurda que desafiava a racionalidade começou a tomar forma a partir de contornos distorcidos e sombras inquietas. Diante de meus olhos, estava ocorrendo uma fusão de carne se juntando.
— Merda!
Com seus tentáculos retorcidos estendidos para atacar, a criatura avançou freneticamente em minha direção.
Instintivamente, pulei para a esquerda, escapando por pouco da investida aversiva da aberração, que acabou colidindo e quebrando a estante de livros ao lado do espelho.
A cama amortizou parte do impacto quando caí desajeitadamente, mas não o bastante para evitar que eu rolasse para o lado oposto.
Minhas costelas atingiram o chão com um baque. Meu corpo reagiu espontaneamente à urgência da situação, o que permitiu que eu me levantasse rapidamente.
“Não sei o que é isso, mas isso é algo que não tem mais volta.”
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