Capítulo 35 - A Fusão da Existência
“Morta.”
A palavra veio como uma constatação dolorosa. Cravou-se como uma lâmina fria no pensamento, sussurrando entre os escombros do que restava de sua consciência. Significava não apenas o reconhecimento de um fim, mas a sensação crua de estar sendo lentamente esvaziada por dentro por uma vida que se retirava calmamente.
A dor em seu abdômen excedia uma simples ferida; estava viva, latejante, como uma maldição pulsante de rancor. Aquela garra que atravessava sua carne estava carregada do veredito de um destino já selado.
O gosto de sangue, espesso e quente, invadia sua boca, entranhando-se na língua e escorrendo pelos lábios com uma lentidão cruel.
“Como se eu já não estivesse mais aqui. Como se meu corpo tivesse ficado.”
A mente se desfazia aos poucos e os pensamentos se embaralhavam como folhas levadas pelo vento. Era difícil saber onde a realidade acabava e o delírio começava. Com tudo ao redor vibrando e tremeluzindo, parecia que o mundo estava perdendo sua forma diante dos seus olhos.
E então veio o medo. Um medo antigo, que rastejava pela espinha semelhante a uma cobra.
Era como cair. Não de um penhasco, mas de si mesma.
E, entre a dor, o sangue e a escuridão que se aproximava, pela primeira vez Raven sentiu que estava, de fato, à beira do fim. Um silêncio vindo do outro lado.
Não havia uma escapatória, apenas um aperto que se intensificava.
“Quanto tempo faz… desde a última vez que me senti assim?”
O presente começou a desmoronar. As memórias, tão vívidas quanto dolorosas, tomaram conta.
Asas de metal cortavam o céu e rasgavam as nuvens como lâminas. Uma turbulência brutal sacudia a cabine, como se o avião fosse um brinquedo perdido em uma tempestade. O rugido dos motores excedia um simples ruído mecânico; aquilo soava como um apelo metálico, uma súplica angustiante que retumbava pela fuselagem.
Raven podia ver as expressões dos passageiros. Olhos arregalados, bocas entreabertas em pânico e orações inaudíveis. Ela tentou focar em algo, qualquer coisa, mas tudo estava em movimento. O tremor incessante do avião misturava-se com a crescente pressão nos ouvidos, tornando o espaço claustrofóbico.
Um som mais alto que o resto a fez apertar os braços contra o corpo. A aeronave inclinou-se de forma abrupta, e os corpos dentro dela foram jogados como bonecos. Um choro abafado rompeu o caos, mas Raven não conseguia distinguir se vinha de outra pessoa ou dela mesma.
Ela fechou os olhos para abafar os sons, mas as vozes persistiam.
Uma voz, suave, perfurou o turbilhão em sua mente:
— Não tenha medo, minha filha. Está tudo bem.
Eram gentis as palavras, ofereciam uma promessa de proteção que a fez querer acreditar. Algo quente tocou seu ombro, reconfortando-a em meio ao caos.
O chão se aproximava rápido demais.
— Estou aqui, M…
E então veio o impacto.
Raven abriu os olhos lentamente. A visão à sua frente era um quadro de destruição. O cheiro ácido de combustível queimado era sufocante, misturado ao calor que ondulava em torno dos destroços. Fragmentos de metal projetavam-se do chão como espinhos de uma fera morta.
Os corpos espalhados pelo cenário eram espectros de uma tragédia que não poupava ninguém. Alguns jaziam imóveis, pálidos e rígidos, suas feições congeladas em expressões de terror absoluto. Outros ainda se moviam com movimentos pequenos e convulsivos.
Ela lentamente se levantou. Os pés descalços encontraram cacos de vidro e pedaços de plástico derretido, que se cravaram na carne, mas ela não sentiu. Não podia sentir.
Limpou o rosto com a palma da mão, mas o sangue seco e o suor criaram uma camada viscosa na pele. Conforme dava passos, sua visão se deparava com novas imagens de sofrimento.
Corpos estavam dispostos como marionetes abandonados, em posições que desafiavam a noção de lógica. As suas faces eram irreconhecíveis, cobertas por manchas escuras de fuligem e carne queimada.
Havia mãos erguidas, congeladas em um último ato de desespero, agarradas ao casco do avião como se isso pudesse salvá-las. Dedos crispados em torno do nada, ossos rompendo a pele em uma tentativa inútil de escapar do inevitável.
Alguns corpos ainda tinham olhos abertos, mas não lhes restava vida. Apenas vidros opacos refletindo o momento final da tragédia.
Raven caminhava entre os escombros. Embora ainda houvesse vida cerca dela, era fugaz, pendurada por um fio que já estava se partindo.
Um homem com metade do rosto queimado tentava arrastar-se para longe, mas seu rastro de sangue desaparecia em meio aos destroços. Uma mulher mutilada ainda se debatia, com os olhos arregalados e a boca se abrindo e fechando sem emitir som.
Não era possível fazer nada. Nada poderia mudar o que estava diante dela. Era o peso esmagador de uma realidade que não oferecia consolo.
Não deveria ser assim. Pensava, em silêncio, sobre as promessas que nunca foram cumpridas. Queria apenas uma vida sem aquele peso, sem os espectros que a acompanhavam desde que se lembrava. No entanto, havia algo de cíclico em tudo aquilo. Era como se o destino sempre a empurrasse de volta para os mesmos cenários.
Morte e destruição estavam costuradas à sua existência.
Raven segurou a lateral do abdômen, à procura de algum sinal de dor que denunciasse um ferimento grave. Sentiu arranhões e hematomas, mas nada que correspondesse àquela sensação gelada interna.
Seus passos cessaram. Diante dela, um espelho rachado permanecia de pé entre os escombros. O vidro estilhaçado refletia o que restara de sua imagem. Tal imagem não trazia conforto algum.
Ela via ali o retrato de uma mulher que carregava mais do que deveria, cujos ombros haviam cedido, cujas mãos não conseguiam mais segurar as promessas de outrora.
Pensou que poderia ter percebido antes. Não tinha como fugir. Não importava onde estivesse, aquilo a encontraria. Sempre existiria algo.
— Sempre existirá alguém me puxando.
Seu reflexo tremulou. As rachaduras do vidro começaram a engolir sua forma. Algo mais surgiu, então. Além da sombra dela, outra figura se formava entre as fissuras.
A voz que surgiu era firme, fria, com uma ponta de desdém:
— Está começando a entender.
Ela se virou devagar. O que viu foi familiar. Os olhos brilhavam em um escarlate tão profundo que eram capazes de atravessar a carne. Os cabelos negros desciam pelos ombros daquela figura, longos e pesados, mas se moviam como se fossem feitos de algo vivo, uma substância entre o sólido e o etéreo. O manto escuro consumia a luz ao redor, uma ausência que era impossível ignorar.
Raven não disse nada. O olhar fixo era a única resposta.
— Você escolheu ignorar a verdade. Preferiu se esconder em uma vida de mentiras, mesmo sabendo que isso só atrasaria o inevitável.
Ela apertou os punhos, mas não olhou para a figura novamente. Estava cansada. Talvez, pela primeira vez, aceitasse que a luta nunca terminaria.
— Não sei do que está falando. — contestou, afastando lentamente. — Você esteve sempre me perseguindo. Me responda, o que quer?
— Não é uma questão do que eu quero, mas do que você precisa.
Os olhos dela procuraram uma saída, uma rota de fuga dessa encruzilhada cruel. Mas ele, em sua semelhança distorcida, permaneceu.
— Você criou essa realidade para se esconder da verdade, para evitar enfrentar o passado e evitar quem você é.
Raven tentou desviar o olhar.
— Eu não sou essa coisa… — Algo a atraiu de volta, como se estivesse hipnotizada por tal. — Sou humana, sei disso.
Tentando manter sua humanidade diante da violência ao seu redor, a sua voz tremeu quando falou.
— Você era somente uma carne morta quando te encontrei.
— Não! Eu não estou morta e nunca estive! Estou viva… Continuo vivendo como uma pessoa normal.
A figura permaneceu imóvel, como se os sentimentos de Raven não passassem de um lamento no contexto mais amplo da situação.
— Viva? Sim, mas apenas à sombra do que já foi. Você sacrificou sua humanidade para escapar da dor. Eu lhe ofereci uma saída, uma nova vida.
Raven negou veementemente, balançando a cabeça. Ela se recusava a aceitar a possibilidade de que sua existência fosse apenas uma ilusão, agarrando-se à realidade que conhecia.
— Você… está errado. Eu tenho uma vida, pessoas que amo, um passado que lembro.
— Viva, mas não viva. Humana, mas não humana. Você se apega a definições superficiais enquanto as expressões de sua verdadeira natureza se estendem.
— Não é bem assim. Eu não sou como você. Sou quem escolhi ser. Tenho sentimentos, uma vida.
— Escolheu ser cega para os fatos. Escolheu abraçar uma existência que não é totalmente sua.
Raven tentou resistir à verdade, mas cada palavra dita por ele parecia arrancar uma parte de sua farsa imposta por ela mesma.
— Não é isso…
O ambiente ao seu redor pulsava com uma energia estranha, como se estivesse prestes a desmoronar a qualquer momento.
— Eu… sou uma aberração.
Inclinou a cabeça, aparentemente reconhecendo a angústia na voz de Raven. Parecia satisfeito, como se uma decisão há tempos esperada tivesse sido finalmente tomada.
Se aproximou mais, sua presença opressiva preenchendo o espaço entre ambos.
— Aberração ou não, essa é a sua verdade que você tenta evitar, e que sempre volta para assombrá-la.
Estendo sua mão enluvada até o seu rosto, o frio se espalhou por sua pele após o toque, como o vento gelado que precede uma tempestade.
Com a aceitação puxando-a para baixo, Raven sentiu um nó crescer em sua garganta.
— Não posso fugir de quem eu sou, posso?
A coisa assentiu levemente com a cabeça.
— Você pode tentar, mas nunca conseguirá escapar do que você realmente é.
— E o que resta pra mim?
— Veja atrás de você.
Raven sentiu a presença ao seu redor intensificar-se ao fechar os olhos. Era um sentimento insondável que se misturava com o terror do que estava por vir. Os lamentos dos perdidos e as vozes distantes dos mortos teciam uma sinfonia estranha.
Ao abrir os olhos novamente, ela era mais que uma simples mulher. Representava a fusão de algo mais poderoso e sobrenatural, como se existisse além do reino da percepção ordinária.
— Então é isso…
A garra que havia atravessado sua barriga ainda estava lá, cravada em sua carne. Não deveria haver alívio para o que sentia. Mas havia. Ao invés de uma sensação de alívio, porém, sentia uma ausência de dor que era tão ruim quanto, como se o corpo estivesse negando sua própria agonia.
O ferimento começou a se fechar. Uma energia rastejava pela pele rompida, preenchendo o espaço vazio com algo que palpitava como vida, mas não era.
A criatura que a atacara percebeu seu erro tarde demais. O membro cravado nela começou a ser puxado pela força que emanava do próprio ferimento. Esse processo solidificava a energia, sugando, prendendo e exigindo que ele ficasse.
A criatura se remexia, lutava; seus movimentos desesperados geravam sons úmidos de carne sendo forçada além do limite.
O braço de Mephisto começou a se partir aos poucos. A criatura rugia de terror e ódio.
De uma vez, o braço finalmente se desprendeu em um rasgo longo e cru.
A carne arrancada não caiu. Uma névoa espessa se ergueu em torno dela consumiu e se dissipou em uma fumaça negra.
— Abandonando o lado humano… é isso que me torno.
O rosto de Raven era uma divisão nítida entre o que ela era e o que estava se tornando. Metade permanecia intocada, a outra, porém, estava diferente.
As sombras que cobriam metade de sua bochecha direita eram estranhas, como se a escuridão lhe houvesse dado uma máscara doentia. Na superfície, tinha se formado uma esfera negra que refletia um vazio no fundo, na forma de um olho. Suas íris estavam dilatadas e lançavam uma luz fraca, oscilando entre tons de azul profundo e violeta.
Dividido pela linha que marcava a mudança, o cabelo de Raven assumiu uma dualidade intrigante. De um lado, ele fluía como uma típica cascata cinza e sedosa e, do outro, transformava-se em sombras fluidas que deslizavam assustadoramente pelo ar.
— Uma… aberração.
A dualidade que agora a definia não era uma escolha, mas uma consequência. E, no fundo, algo nela sabia que não havia mais volta.
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