Capítulo 45 - O Manto Vermelho da Noite
Parque de Hill City
— Sempre tarde demais.
Se antes o parque era exuberante, sempre cheio de risadas e com o barulhinho das folhas caindo, foi reduzido a um cenário medonho. Os prados verdejantes se transformaram em uma tela cinzenta e lúgubre, marcada por tons de vermelho devido ao derramamento de sangue.
Diante dessa visão desoladora, estava Raven.
Lanternas fracas espalharam uma luz intermitente e sombras dançantes sobre a paisagem trágica, penduradas nos ramos das árvores circundantes. Tais árvores, espectadoras silenciosas, erguiam-se para o céu noturno com os seus ramos que pareciam garras negras.
O ar estava pesado com o terrível fedor dos mortos, misturando-se com as tonalidades da noite. O odor que lhe impregnava as narinas era indescritível – uma mistura de decadência e desespero – e servia como uma lembrança amarga da vitalidade que outrora pulsava nesses corpos agora sem vida.
O corpo de uma criança estava espalhado em meio aos adultos mortos, como que para enfatizar ainda mais o que era um espetáculo de horror inimaginável. Raven sentiu-se mais enojada do que nunca ao ver a inocência tão impiedosamente destruída e a delicada beleza da infância entregue a esse espetáculo repugnante.
Apesar de tudo, a expressão dela manteve-se firme, como se ela não fosse afetada pelo mal que estava a acontecer à sua frente, mesmo no meio da visão de sacrifício e destruição. Parecia estar totalmente concentrada na sua tarefa, enquanto observava-os com uma objetividade distanciada, escondendo as suas verdadeiras emoções por detrás de uma fachada inquebrável.
A sua luta interior contrastava com a sua aparente tranquilidade. A visão dos restos mortais – a maioria dos quais tinha sido sacrificada por uma razão maldita – provocou um misto de fúria reprimida e dor incomensurável. Mesmo assim, Raven se curvou diante dos corpos e proferiu em sussurros:
「 Névoa do Esquecimento 」
Com um gesto do pulso, uma mecha de sombra girou nas pontas dos dedos, cintilando com uma energia negativa. A Névoa do Esquecimento, que corroía carne e ossos, tomou o lugar do gélido toque da morte. As sombras obedeciam suas ordens, circulando os corpos como espectros famintos em forma de névoa.
A habilidade ultrapassou a mera manipulação. Ela se tornou um receptáculo, um conduto. Transformou-se em um vórtice, atraindo para Raven os fragmentos dos espíritos dos mortos. Uma aura negra emergiu, consumindo os tênues vestígios da vida. As almas foram extraídas lentamente e de forma definitiva, sua essência submergindo no núcleo de sua existência.
Os corpos, antes vibrantes e coloridos, tornaram-se cascas vazias, efígies sem propósito de uma vida esvaída. Uma quietude vacilante os seguia, interrompida apenas pela respiração ofegante de Raven enquanto ela suportava o fardo de seu sacrifício.
— Quer queiramos ou não, é uma responsabilidade nossa. Podre e sujo, mas ainda assim é nosso dever.
Os agentes executavam suas tarefas incansavelmente, imersos na busca incessante pelos Mephistos. A missão abrangia todas as facetas de sua humanidade, assemelhando-se a uma colcha de retalhos.
O odor de carne em decomposição persistia, atuando como um lembrete constante da natureza horrenda do trabalho.
A apatia surgiu como um mecanismo de defesa natural e uma resposta à violência testemunhada. Cenas de proporções grotescas e bizarras se desdobravam como uma peça teatral à beira de um abismo, com cada vitória refletida de maneira distorcida e cada sucesso manchado pelo espectro do desespero.
A decadência inerente a esta estrutura transcendia o mundo tangível e passou a simbolizar a fragilidade da moralidade e da integridade humana diante de forças sobrenaturais malignas. Alguém que desafia não apenas a ordem material, mas também o cerne fundamental da humanidade, faz com que o tecido moral se desgaste diante das atrocidades perpetradas.
— Isso continuará até quando?
Um estrondo ecoou repentinamente, fazendo com que o Raven ficasse em alerta. Após cessar sua técnica, ele se levantou e se virou na direção do barulho.
— O que foi isso? — perguntou-se, confusa. — Mandy…
Uma onda crescente de preocupação apertava-lhe o peito, como um aperto de mão frio sobre o seu coração. As sombras pareciam tornar-se mais espessas, envolvendo-a num manto de incerteza, enquanto ela antecipava o pior que poderia acontecer à menina.
** ** **
À beira da estrada, erguia-se a Little White Church, uma estrutura modesta cuja simplicidade e pureza se espelhavam na sua fachada. As tábuas de carvalho desbotadas, cobertas por uma camada de tinta branca envelhecida, contavam a história enraizada naquele lugar.
Como um testemunho mudo das numerosas eras que a igreja conheceu, uma torre ténue alcançava o céu, coroada por uma velha cruz de ferro. O luar filtrava-se suavemente através das janelas, decoradas com vitrais vibrantes, criando um mosaico de sombras no interior tranquilo.
Um suave aroma a velas derretidas e incenso encheu o espaço quando duas pessoas atravessaram a porta de madeira, evocando um ambiente sereno e devoto.
Olhando para os vitrais, Klaus disse:
— Inocência e fé, palavras tão… ingênuas.
Dirigiu-se casualmente para os bancos de madeira polida.
— O homem, sempre clamando por salvação, como se pudesse lavar a sujeira que carrega consigo, busca se redimir em lugares como este, achando que algum deus misericordioso olhará além de sua podridão.
Ele passou a mão pelos bancos vazios, deslizando os dedos sobre a madeira desgastada.
— A alma, essa coisa frágil e branda. Todos pensam que ela é intocável, que é imune à corrupção. Mas, veja bem, ela é como uma flor delicada. Uma vez pisoteada, ela nunca se recupera totalmente.
Os seus olhos concentraram-se nos pormenores dos altares ornamentados com enfeites artesanais.
— E então, nós, seres nascidos da negatividade humana. Somos apenas um reflexo do que essa espécie decadente é capaz de fazer. Fracos, egoístas, insensíveis. Nos alimentamos da escuridão que polui as almas dos tolos que se ajoelham diante de seus desejos mesquinhos.
O espaço era iluminado por velas dispostas como sentinelas silenciosas, sublinhando a calma das imagens sagradas que cobriam as paredes. Os vitrais, magníficas obras de arte, apresentam cores vibrantes para representar os acontecimentos bíblicos.
A Virgem Maria sorria para os fiéis à luz filtrada, enquanto anjos alados observavam o espetáculo, com seus olhares faiscantes que consolavam sem palavras. As velhas vigas de madeira do teto abobadado conferiam um ar de segurança e acolhimento.
— E-eu quero ir embora… — disse Benjamin.
— Com medo, não? — Olhou-o de canto. — É assim que a presa deve se sentir diante de um predador. Não há refúgio para você aqui, nenhum esconderijo seguro das verdades sobre as quais eu sei.
Benjamin sentiu-se impotente perante a presença esmagadora de Klaus, com poucas opções à sua disposição. Sentiu como se o espaço se encolhesse à sua volta, tornando-se num labirinto sem esperança.
Enquanto a sua cabeça se agitava com as ameaças veladas e as realidades inquietantes que pairavam no ar, os seus olhos procuravam freneticamente uma saída.
O seu coração batia descompassadamente, uma batida rápida e errática.
Ele, apesar de ainda estar receoso, sentiu um arrepio a percorrer-lhe a espinha. Mesmo assim, a sua curiosidade e coragem levaram-no a perguntar:
— O que… você quer de mim?
Klaus sorriu, um sorriso que tinha tanto de perverso como de irônico.
— O que eu quero, de fato, é a essência de sua alma. Quero saborear cada nuance de medo, de desespero, que você tenta tão diligentemente esconder.
— P-por favor, eu não… Eu só quero ficar em paz.
Fritz ignorou o apelo de Benjamin, permanecendo com o olhar impassível e voraz. Ele se aproximou lentamente, como se quisesse prolongá-lo da agonia.
— Não se preocupe, eu lhe darei uma paz única, uma quietude que somente a escuridão pode oferecer.
A criança recuou, seus olhos se encheram de pavor.
— Não! Por favor!
— Só estou brincando. Não posso matar você. Não agora. Você será útil de agora em diante.
Benjamin piscou, confuso e aliviado ao mesmo tempo.
— Útil…?
A expressão de Klaus mudou, tornando-se mais séria.
— Você viverá, mas não da mesma forma. Será uma existência moldada pela verdade que eu lhe mostrarei, uma realidade que muitos preferem ignorar. Seu sofrimento, sua angústia, serão minhas ferramentas para desvendar os segredos nobres do espírito humano.
Se afastou, virando-se de costa e caminhando lentamente pela igreja.
— Considere isso como uma segunda chance. A sorte sorriu para você hoje, ou talvez seja o destino traçando um caminho que você nem consegue imaginar.
Benjamin, com a voz trêmula, tinha uma expressão lamentosa.
— Só penso que… não machuque mais ninguém.
Fritz cessou seus passos, com as palavras recém-proferidas a ficarem registradas na sua mente. Virou-se de lado para encará-lo, com os seus olhos intensos fixos nele, como se conseguisse ler todas as expressões no rosto do menino.
O olhar dele tinha uma intensidade obscura, que o levava a examinar atentamente a forma como as suas observações poderiam afetá-lo. Não apenas o olhar exterior, mas uma tentativa de alcançar os pensamentos mais íntimos deste, do mesmo modo que se estivesse avaliando a resposta emocional de um alvo prestes a ser detido.
— Seus sentimentos são compassivos, o que é uma raridade com relação à decadência entre os seres vivos. Se eu decidir causar mais dor será por opção, não por capricho. — Alternou o olhar para os vitrais, como se procurasse respostas nos padrões de luz e cor que dançavam no recinto sagrado. — E, quem sabe, talvez sua presença aqui tenha mudado algo em mim também.
Benjamin sentia que seu peito apertava-se de agonia, como se o ar fosse rarefeito e difícil de respirar. Todo o seu corpo se contraía, gritando para que fugisse da entidade ameaçadora que pairava sobre ele.
Tremendo incontrolavelmente, o seu corpo era uma resposta física ao desconhecido que se aproximava.
Ambos se aproximaram do altar-mor, onde a imagem de Cristo crucificado pairava como uma pequena estátua, rodeada de velas acesas.
— Um símbolo de sofrimento venerado como redenção. O homem adora o martírio. — Riu-se baixinho. — As almas em si são moedas baratas, negociadas por uma passagem ao paraíso onde só existe na imaginação. Os que são realmente fortes, que têm o poder de moldar o destino, somos nós.
Seus olhos, refletindo a escuridão de seus pensamentos, fixaram-se nas imagens sacras que decoravam o local.
— Isso é o que acontece com as criaturas que emergem da sujeira humana, nutrindo-se da podridão que os fracos tentam disfarçar sob um teto de santidade.
Ele esticou a mão em direção à estátua, alinhando à altura da cabeça de Cristo.
— No Mundo Carmesim, onde o Sol encontra a Lua, é justamente quando cortaremos esse mal pela raiz. — anunciava com convicção. — Essa cidade se tornará um epicentro de purificação, em que Cicatrizes colherá porções das almas dos fracos e as transformarão no combustível necessário à liberação do meu Rei.
O ar local ficou carregado, como se a própria atmosfera estivesse reagindo à intensidade da revelação de Klaus. Benjamin, espantado, tentou entender a natureza do que estava sendo dito.
— A técnica ainda está ativada. Absorver todos os espíritos da cidade é o último passo para completar o plano. Uma ascensão que trará a verdadeira ordem ao Mundo Carmesim, libertando o Rei que espera no limiar entre a escuridão e a luz.
Então, como se estivesse marcando o fim à revelação, Fritz apertou sua mão com uma expressão que misturava satisfação e expectativa.
— O que… o que você espera conseguir com tudo isso?
O sorriso sutil dele persistiu, como se ele pudesse ver além do véu da realidade comum.
— O Mundo Carmesim representa o auge da combinação entre as forças da luz e das trevas. — respondia enquanto descia o braço. — Libertá-lo significa transcender as limitações humanas e trazer ordem real ao absurdo que vocês ousam chamar de vida.
Benjamin sentiu-se desconfortável com a resposta de Klaus porque transmitia uma convicção que ia contra a crença popular e sugeria um destino que era mais sombrio e complicado do que qualquer história deste mundo poderia descrever.
— Veio só pra criticar a igreja ou tá pensando em fazer algum sacrifício?
A atmosfera lúgubre foi quebrada pelo eco de uma voz na porta, interrompendo-o.
Viraram-se os dois para olhar para a entrada quando se deram conta de uma presença surpreendente.
— Olhos de Sangue.
Mikael encontrava-se ali, descontraído, apoiado no seu ombro junto à soleira.
O caminho até ali tinha sido permeado de obstáculos e desvios. O mesmo, persistente em sua busca, viu-se confrontado com os Mephistos, cuja presença desviou temporariamente seus passos.
À medida que tentava discernir algum sinal dos seus companheiros, a cena no céu captou a sua atenção, revelando o confronto entre Lewis e Wolfgang.
Apesar das distrações, ele estava agora diante do alvo principal. O tempo passado na viagem até então tinha revelado uma teia de desafios e adversidades, mas a resolução nos olhos do homem permanecia impávida, traduzindo a sua prontidão para mais um confronto iminente.
— Que prazer vê-lo por aqui.
Cumprimentou-o com uma ironia nas suas palavras que não passava despercebida.
— Seus brinquedinhos foram bem chatos, vou te contar, viu. Principalmente o grandão, me deu um trabalhinho, mas não tem desafio que eu não possa vencer.
Mikael sorriu e piscou para Klaus, provocando a sua expressão serena com um sorriso sugestivo, parecendo tão à vontade como um espectro de confiança.
O gesto impudente sugeria que havia um clima entre as duas figuras, como se este pequeno gesto fosse o precursor de uma altercação iminente.
Klaus tentou disfarçar qualquer sinal de desconforto, mas a presença de Mikael tinha claramente perturbado o seu domínio momentâneo.
— Mas se só você está aqui, significa que os outros estão mortos, certo?
— Nah. — Apontou o polegar atrás de si. — Eles estão se dando muito bem.
Um lampejo vermelho, seguido por um barulho abafado, desenhou um arco luminoso numa zona periférica da cidade, tão vívido que o seu brilho podia ser testemunhado por todos. 1
— Viu só?
Houve uma sensação incômoda que apoderou-se dele em consequência do acontecimento, que, sinceramente, nem Mikael esperava, fazendo-o virar na direção do barulho.
“Se eu estiver certo, parece que Lewis, contra todas as expectativas, alcançou um novo poder e habilidade. Está começando a brilhar do jeito que eu disse que brilharia.”
Os olhos de Mikael brilharam com um misto de surpresa e realização enquanto ele considerava as ramificações do que estava presenciando.
- Ambos, Mikael e Raven, ouviram o mesmo som ao mesmo tempo, apesar de estarem em cenários diferentes.[↩]
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