Capítulo 61 - Custo da Proteção
Ao soar do meio-dia, os televisores em todo o território norte-americano sintonizavam o principal noticiário do dia, trazendo aos lares um evento que abalaria a nação. Sob a luz fria dos holofotes do estúdio, o âncora John Davies enfrentava as câmeras com um olhar firme, mas carregado pelo peso das informações que teria de transmitir.
— Boa tarde, senhoras e senhores. São 12h30 e hoje trazemos notícias de uma magnitude estarrecedora. Hill City, em Dakota do Sul, foi palco de um evento catastrófico.
O telão atrás dele se transformou em um panorama devastador. Estruturas transformadas em escombros formavam um cenário desolador. Uma fumaça escura se erguia de ruínas que outrora abrigaram milhares de vidas.
Ao lado de Davies, a co-apresentadora Sophia Vargas prosseguiu com o relato:
— Segundo informações preliminares, confirmadas por fontes governamentais, a operação foi conduzida pela Unidade Expedicionária de Caça, uma força-tarefa especializada em enfrentar ameaças sobrenaturais. O objetivo era neutralizar um Mephisto identificado na região. Entretanto, o custo da operação foi a destruição irreversível de Hill City e a perda total de vidas civis.
As imagens transmitidas ao vivo mostravam drones sobrevoando o que restou da cidade. Veículos militares e caminhões de resgate cruzavam ruas devastadas, enquanto equipes equipadas com trajes especiais examinavam os destroços.
Davies voltou a falar:
— Em resposta à calamidade, o Presidente dos Estados Unidos declarou estado de emergência na área, autorizando a liberação imediata de recursos federais para apoio às vítimas indiretas e início dos esforços de reconstrução. A Guarda Nacional foi enviada para garantir a segurança do perímetro e coordenar as operações de resgate. Paralelamente, o Departamento de Defesa ativou unidades de resposta a crises, fornecendo suporte logístico e médico às autoridades locais.
Sophia continuou de onde John parou:
— As operações de resgate passaram para as fases de recuperação e avaliação. Equipes compostas por funcionários da FEMA1, peritos forenses e especialistas em resposta a desastres estão no local, trabalhando incansavelmente para identificar as vítimas e avaliar a extensão total dos danos.
O programa seguiu para entrevistas com especialistas e análises críticas. Um ex-oficial do Departamento de Defesa comentou sobre a atuação da U.E.C.:
— A força-tarefa é uma força necessária em tempos de crise sobrenatural, mas a destruição de Hill City levanta questões inquietantes sobre seus protocolos. Até onde devemos ir para conter uma ameaça? Quem paga o preço quando erros de cálculo levam à devastação total de uma cidade?
Outro analista foi além:
— O custo humano e material de operações desse tipo precisa ser pesado contra seus benefícios. Hill City não é um dano colateral; é um marco do que pode dar errado quando agências paramilitares têm carta branca para agir sem considerar as consequências.
Manchetes enfatizavam “a cidade que desapareceu em uma noite” e “uma operação que saiu do controle”. O foco parecia mais inclinado a alimentar o medo e a indignação do público do que a oferecer uma análise equilibrada. A tela exibiu um mapa da região, destacando as áreas mais afetadas pelo desastre. John continuou se concentrando nas implicações políticas:
— O incidente reacendeu os debates sobre a eficácia e as considerações éticas da Unidade de Caça Expedicionária. Os críticos argumentam que as ações da unidade aumentaram as ameaças sobrenaturais em vez de contê-las. Em resposta, o Congresso agendou sessões de emergência para revisar as políticas atuais e considerar possíveis reformas para garantir maior responsabilidade e eficácia ao lidar com essas ameaças.
Sophia acenou com a cabeça, aprofundando a discussão.
— Também, essa ocorrência ressalta a necessidade de maior coordenação entre os órgãos federais, estaduais e locais na preparação e resposta a desastres. A Estrutura de Resposta Nacional, que descreve como a nação responde a todos os tipos de desastres e emergências, está sendo examinada para identificar lacunas e áreas de melhoria.
Enquanto falava, na tela foi mostrada uma manifestação de apoio das comunidades de todo o país. Organizações de caridade, grupos religiosos e voluntários individuais estavam convergindo para oferecer assistência, fornecendo suprimentos essenciais, abrigo e apoio emocional às pessoas afetadas.
Sophia se dirigiu novamente ao público, dessa vez com um semblante mais empático.
— Em momentos como esse, é fundamental reconhecer o custo humano da tragédia. Famílias foram separadas, vidas foram inesperadamente interrompidas e a agonia é insuportável. Em memória das pessoas que morreram, damos voz aos parentes que estão tentando compreender e lidar com essa circunstância difícil.
Os vídeos apresentados a seguir mostravam pessoas aos prantos, devastadas pela dor da perda, mas determinadas a compartilhar suas experiências e honrar a memória de seus entes queridos.
Uma mulher negra, cabelos enrolados e escuros, tinha marcas profundas de sofrimento em seu rosto. Ela contou sua história para a câmera. Sua voz, embargada de mágoa, era um eco da tristeza que a envolvia.
— Minha mãe, Lara… ela estava lá, em Hill City. — Fez uma pausa, tentando conter as lágrimas que estavam se acumulando. — Você não pode imaginar o que ela significava para mim. Ela era minha base, o coração da família.
A emoção fez com que fosse difícil para continuar, mas a necessidade de compartilhar era evidente, enquanto se esforçava para articular as palavras.
— A cidade agora é só o que resta. Ruína. — Suspirou, tentando recuperar o fôlego. — Não posso nem mesmo visitar o lugar onde cresci, onde ela nos criou. Tudo o que tenho são as lembranças e a saudade. É algo que não dá para suportar.
As lágrimas corriam livremente, um tributo sincero ao vínculo que havia sido cortado tão rapidamente. A mulher continuou:
— Nós crescemos juntos em Hill City, mas os tempos eram difíceis. A pobreza, as dificuldades… Não tínhamos perspectiva de um futuro melhor.
Ela fez uma pausa por um momento, como se estivesse revivendo a dor.
— Decidi me mudar, ficar longe daquele absurdo. Queria dar aos meus filhos, Miguel e Ayla, a chance de uma vida melhor. — Limpou uma lágrima que escorria do seu olho. — Nunca imaginei que isso aconteceria lá. Não com minha mãe…
Ela se empenhou em encontrar palavras, como se cada lembrança fosse um fardo insustentável.
— Mesmo assim, não quero esquecer quem éramos e o quanto significávamos para essa cidade. Ela merece mais do que ser lembrada como um lugar que foi arruinado por esses monstros estranhos.
O programa de notícias continuou sua missão de dar voz àqueles que viveram a tragédia de Hill City, oferecendo mais depoimentos de membros da família que, mesmo à distância, sentiram profundamente o impacto da devastação.
Um homem de meia-idade de olhos azuis e cabelos grisalhos, cujo semblante refletia uma vida inteira de lembranças e arrependimentos, apareceu na tela. Sua voz, trêmula, ecoava uma forte angústia.
— Minha irmã, meus sobrinhos… Todos eles estavam lá. — Ele pesadamente suspirou, segurando uma fotografia desgastada de sua família. — Me mudei para outra cidade em busca de um futuro mais seguro, mas o passado continuou sendo um assombro para mim. A notícia de que eles perderam a vida… é como se o chão tivesse sido arrancado debaixo dos meus pés.
Outra declaração veio de um jovem pardo, olhos e cabelos escuros, expressando raiva e tristeza.
— Minha namorada, Beatriz, decidiu viajar para Hill City para visitar seus avós. Tínhamos tantos planos, e eu deveria estar lá com ela, mas isso… Quando nos falamos pela última vez, ela estava radiante e cheia de expectativas. E agora…
Ele fez uma pausa, como se as palavras seguintes fossem difíceis de articular. Seus lábios tremiam enquanto apertava suas mãos.
— Ela se foi por culpa desses filhos da *censurado*! Tiraram a pessoa que eu amava e nada fizeram! Eu espero que todo mundo desse *censurado* vão todos se *censurado* e queimar no infer-
O vídeo foi abruptamente cortado. No outro, gravado em um hospital, uma senhora idosa, com o rosto dominado pelo desalento e a resignação, revelou sua experiência angustiante para a câmera.
— Eu morava em Hill City, mas minha saúde piorou de repente, o que me obrigou a mudar para outra cidade mais próxima do hospital.
O tremor em suas mãos era nítido quando ela ajustou a almofada atrás de si para encontrar uma posição mais confortável na cama. Seus olhos cansados e úmidos examinaram a foto antiga em suas mãos. A foto capturava um momento simples, mas sincero: ela estava sentada em seu jardim florido, cercada por seus dois gatos, que se aconchegavam em seu colo.
— Meus gatinhos eram tudo para mim. Eles eram minha companhia e minha alegria. — Ela soltou um suspiro e lágrimas brotaram em seus olhos exaustos. — Minha neta, Anna, cuidou deles enquanto eu estava aqui, mas quando fiquei sabendo sobre Hill City, meu coração se partiu. Minha preocupação com minha família foi imediata. A dor de perder meus filhos e minha neta é enorme.
A mulher apertou a foto em seu peito, esperando encontrar consolo na imagem de seus gatinhos.
— Mel, Bolinha… — sua voz soou rouca. — Se ao menos vocês estivessem aqui comigo… se ao menos eu pudesse ter me despedido…
A imagem no telão mudou para um homem idoso, vestido de forma simples, com o rosto vincado pela dor. Atrás dele, a bandeira americana hasteada a meio mastro em um parque que, pelas evidências, fora improvisado como memorial. Ele segurava um retrato de sua esposa e dois filhos.
— Minha família estava lá. Eles só estavam visitando minha sogra. Não tinham nada a ver com essas coisas… essas coisas terríveis que vocês chamam de quê…? Petisco? Me-mefesto? Mephisto.
Suas mãos tremiam levemente ao segurar a foto
— E o que eles fizeram? Destruíram a cidade inteira como se minha família fosse descartável, como se cada vida ali fosse só um…
Subitamente, a expressão do homem mudou. A tristeza deu lugar a uma fúria contida. Ele olhou diretamente para a câmera, com os olhos injetados de sangue, e disparou:
— Vocês, da mídia, são abutres! Se alimentam da nossa dor! Transformam nossa tragédia em entretenimento! Vocês não se importam com as vítimas, só se importam com a audiência! Bando de…
Sophia, no estúdio, franziu a testa com desconforto visível.
Antes que ele pudesse continuar, o vídeo foi abruptamente cortado, substituído por um gráfico genérico com a manchete “TRAGÉDIA EM HILL CITY”.
A tela escureceu antes de voltar ao programa regular do jornal. O som solene de uma batida suave ao fundo deu à cena um tom lúgubre. Sophia, com um olhar austero, ocupou a tela.
John interveio com a voz fria e autoritária que o caracterizava:
— Se você é um telespectador em um mundo onde a segurança prometida se transforma em desolação, onde o medo se disfarça de proteção, estamos aqui para discutir algo que transcende as tragédias isoladas que vivenciamos recentemente.
— Hill City não é um caso isolado. — Sophia complementou. — Há outras cidades, cidadãos inocentes, vítimas de uma força-tarefa que diz proteger, mas cujas ações só criam o desastre. Cidades como Eastbrook, Riverdale, Beacon Hills. Todas marcadas pelo mesmo rastro de destruição da Unidade.
Imagens de protestos, ruínas urbanas e discórdia com a unidade vieram à tona, destacando a indignação dos cidadãos.
— É hora de avaliar a eficácia da força-tarefa e responsabilizá-la. Esconder-se atrás do pretexto de proteção enquanto cidades inteiras sofrem o impacto de suas ações é indesculpável. Essa é uma questão de segurança nacional, uma questão de vida ou morte.
Em seguida, houve uma compilação de clipes de notícias, cada quadro servindo como um lembrete das mortes de civis e dos danos colaterais relacionados às operações da organização.
— A Unidade é apenas uma extensão do governo, e chegou o momento de o governo confrontar as sombras que ele mesmo gerou. É necessário realizar uma investigação completa e transparente sobre suas operações. Isso transcende uma preocupação nacional, pois é uma questão de alcance global.
Atrás dela, um gráfico apareceu na tela, confrontando fortemente o orçamento da Unidade em relação aos programas sociais vitais. A discrepância era evidente, condenando visualmente a má alocação de prioridades.
— Estamos lidando com uma unidade que opera quase sem restrições, uma organização paralela com potencial para desestabilizar países.
Sophia permaneceu resoluta diante da câmera. Sua voz era um chamado claro em meio à crescente tempestade de controvérsias.
— Abusos de poder análogos foram observados em regimes históricos, como a Stasi na Alemanha Oriental e até mesmo em certas divisões com autoridade excessiva no Japão. Estas são histórias de advertência, não planos para o nosso futuro. Não podemos deixar que a história se repita.
A justaposição de símbolos americanos icônicos – a Estátua da Liberdade e a Declaração de Independência – com imagens de força militar estabeleceu um contraste impressionante.
Mas o próprio programa noticiário não escapava de um escrutínio mais atento entre as críticas à U.E.C. A insistência em explorar a dor e o choque, a repetição incessante de imagens e a edição sensacionalista das entrevistas revelavam um propósito maior. Não se tratava de informar. Tinha por objetivo alimentar uma audiência voraz por tragédias, transformando a destruição de Hill City em um espetáculo para consumo em massa.
Que tipo de ameaça justificaria uma operação tão devastadora? E o que isso diz sobre o mundo em que vivem, onde entidades sobrenaturais exigem intervenções dessa magnitude?
— O povo americano merece algo melhor. Merecemos transparência, responsabilidade e um governo que verdadeiramente sirva seus cidadãos. É hora dessa unidade ser responsabilizada aos mesmos padrões que qualquer outra entidade governamental. Basta.
- Agência Federal de Gestão de Emergências (Federal Emergency Management Agency). Ela é uma agência do governo dos Estados Unidos, subordinada ao Departamento de Segurança Interna. Sua principal função é coordenar a resposta a desastres naturais e outras emergências complexas que excedem a capacidade de resposta de estados e governos locais.[↩]
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