Capítulo 10 - Todos temos sangue nas mãos
Seus pés faiscavam no chão, queimando como brasas. Lewis avançou em um ritmo colossal, reduzindo a distância entre nós para incríveis três segundos.
Seus pés faiscavam no chão, escaldando como brasas. Lewis avançou em um ritmo colossal, reduzindo a distância entre nós para incríveis três segundos.
Com o pé esquerdo, ele disparou em minha direção feito um míssil teleguiado, mirando obstinadamente em minhas costelas.
O golpe foi desferido com uma elegância letal, demonstrando um grau incrível de habilidade, embora misturado com uma pitada de imprudência, o que contribuiu para o espetáculo emocionante.
Era um encontro, uma dança de fogo e agilidade juntos.
— Pensa rápido! — avisou antes do impacto.
Mas por dentro, algo se mexeu.
Não se tratava de medo ou adrenalina comum. Eu sentia como se uma força subterrânea tivesse acordado, algo vivo adormecido dentro de mim despertando junto com meu corpo. Meus membros responderam mais rápido do que deveriam, com uma rapidez tal que meus pensamentos se transformavam em comandos direcionados aos meus músculos. Precisei admitir que a eficiência dos meus próprios movimentos me assustou mais do que o chute de Lewis.
Com um leve recuo do meu corpo, o garoto deu meia-volta e colocou os pés levemente no chão, com o peito levemente arfante. Ele tinha um sorriso enviesado no rosto – não por subestimação, mas por diversão genuína com o que estava vendo.
— Então é verdade. Você sente isso mesmo, né?
— Isso o quê? — perguntei, ainda com a respiração descompassada.
— Essa… coisa. A coisa dentro de você. — Ele andava em círculos ao meu redor, os olhos atentos. — Como é? Fala sério. Parece… tipo um espírito? Um demônio? Ou é só uma bateria infinita grudada nos seus ossos?
— Eu não sei. — respondi, mais duro do que pretendia. — Chamam de Mephisto. Não tem rosto. Só… tá aqui. Às vezes quieta. Às vezes, como agora, como se quisesse tomar o controle.
— Isso não te enlouquece? — Ele parou e me encarou. — Ter uma coisa dentro de você que não entende, que mexe no seu corpo como se fosse dela?
Desviei o olhar. Meus punhos se fecharam sem que eu percebesse.
— Começou a ser um incômodo há pouco tempo.
Lewis assentiu.
— Sabe, não sou só o cara que chuta pessoas pra ver se elas quebram. — disse com um sorriso irônico, voltando a assumir posição. — Parte do meu trabalho é te entender. Quero saber até onde você vai, mas também… quem você é por baixo disso.
— Não tem muito aí embaixo pra explorar.
— Mentira. — Ele avançou outra vez, agora com uma combinação de chutes baixos e cotoveladas rápidas. — Todo mundo tem alguma coisa. Até você.
Fui forçado a me defender. Meu corpo respondeu antes da mente — agilidade acima do natural, reflexos moldados por algo que não era meu. Bloqueei um golpe com o antebraço, me abaixei sob outro, e por pouco não tomei um chute no queixo.
— Qual era o seu nome antes disso tudo? — perguntou no meio do movimento.
— Ainda é Krynt. — respondi entre os dentes, desviando de um chute circular.
— Tá. Mas quem era o Krynt antes da cela? Tinha família? Amigos?
— Tinha.
O chute seguinte quase me acertou no ombro.
— E agora?
O peso da pergunta me distraiu por menos de um segundo — e foi o suficiente.
Seu pé atingiu minha coxa com força suficiente para fazer o músculo latejar. Cambaleei para trás, respirei fundo, com a tentativa de manter o controle.
Lewis não aproveitou a vantagem. Ele nem sequer se moveu. Ficou parado na minha frente, com os braços caídos e os olhos fixos em mim.
— Hein?
Engoli em seco. Minhas pernas ainda ardiam, mas era a pergunta que queimava de verdade.
Olhei para ele – o modo como me encarava, se quisesse abrir meu peito e ver o que ainda restava lá dentro. Parte de mim queria mentir, dizer que estava tudo bem, que eu era alguém forte. mas eu estava cansado demais para manter a fechada.
— Agora… eu sou o que sobrou. — Minha voz saiu rouca. — Era só um cara normal. Nada especial.
Lewis franziu a testa, como se não tivesse entendido.
— Como assim?
— Quero dizer… antes de tudo isso, eu era só um estudante. Vivia uma vida entediante na cidade. Eu nem treinava. Nunca fui forte. Não ligava pra nada além de videogame, música e dormir até meio-dia.
Ele arqueou uma sobrancelha, visivelmente desapontado.
— Tá de sacanagem comigo. Você tá me dizendo que essa… coisa que você carrega foi parar num cara que não sabia dar uma flexão?
— Nem sabia o que era isometria até o primeiro dia aqui. — admiti, dando de ombros. — Minha maior preocupação era lembrar de entregar um trabalho de história antes do prazo. Isso ou limpar a pia da cozinha quando o fiscal vinha.
O garoto passou as mãos pelo rosto em um gesto de descrença frustrada.
— Isso explica muita coisa… e nada ao mesmo tempo. — resmungou, voltando a andar em círculos ao meu redor.
— Eu não pedi pra isso. No dia do massacre, eu tava tentando salvar uma amiga minha. E aí… o mundo virou um campo de extermínio. Um segundo tava tudo normal, no outro eu andava sobre o sangue e ouvia gritos de gente que não vi mais depois daquilo.
Lewis parou. Não disse nada.
O silêncio entre nós ficou denso.
— Eu só queria ajudar, e… isso aconteceu.
Lewis cruzou os braços. Ele parecia diferente agora. Não estava mais desapontado ou curioso. Seu olhar era… de pesar.
— Não é bonito, nem nobre. Mas é o que todo mundo tenta fazer pra ajudar quem precisa.
Assenti vagarosamente com a cabeça. Era estranho ouvir isso dele. Um sujeito que chutava como uma arma viva, que parecia invencível. Mesmo assim, havia algo na maneira como ele dizia isso que fazia com que soasse… certo.
— E quando tudo parou… eu não era mais só eu. — completei, tocando o próprio peito. — Tinha essa coisa em mim. Não sei de onde veio, nem o que quer.
— E você foi trazido pra cá.
— É. Agora tô aqui, levando chute e respondendo perguntas existenciais enquanto sangro por dentro.
Um breve sorriso puxou o canto da boca de Lewis.
— Sangrando ou não, você ainda tá em pé.
— Por enquanto.
Ele girou os ombros, respirou fundo e voltou à postura de combate.
— Então vamos ver se esse cara normal aguenta mais um round.
A energia em seu corpo mudou, eu pude sentir.
De novo, ele se moveu. Rápido demais.
Uma mudança no ar foi a única advertência que recebi. Seu pé cruzou o espaço e desenhou uma linha curva de baixo para cima. Meus reflexos me traíram: levantei minha mão, aberta, em uma tentativa instintiva de bloquear o golpe.
Falhei.
O golpe encontrou a região entre o dorso e o pulso da minha mão, bem na junção onde a fáscia e os pequenos ossos da carpo se cruzam em finas e frágeis estruturas.
O som não foi um impacto normal – tratou-se de algo agudo, seco, um estalo.
O mundo se dobrou.
Uma dor lancinante explodiu da mão e irradiou até o ombro, como se cada nervo tivesse sido exposto a um fio de cobre em brasa. Meus dedos se abriram sozinhos, contra minha vontade, antes de se curvarem num espasmo tremulante.
O chão veio depois. Não lembro de ter caído. Só percebi que estava ali quando minhas costas tocaram a terra. Um tipo de choque visceral e cru me fez sentir arrepios.
Lewis parou. Seus olhos se arregalaram como se não reconhecesse o próprio corpo.
— Merda… Krynt?
A voz dele perdeu toda a força habitual.
Eu não respondi. Minha boca se abriu, mas só o som áspero, sujo, preso entre a garganta e o pulmão.
— Foi um reflexo. — murmurei, tentando manter os olhos abertos, mesmo com a dor zunindo nos ouvidos. — Foda-se.
Tentei mexer os dedos e a dor aumentou como uma mordida de ferro quente. Vi minha mão começar a inchar, os nós dos dedos tortos, desconectados, a pele tremendo num tom vermelho roxo que se espalhava devagar como um veneno.
— Ngh! — Continuei suprimindo um grito de ajuda. — Ah… doeu como o caralho…
O garoto contorceu o rosto, gravando linhas de arrependimento e realização em sua expressão despreocupada. Entre a enormidade do que acabara de acontecer e o peso de suas próprias ações, ele parecia preso.
— Caramba… — sussurrou, passando a mão pelos cabelos. — Eu não queria fazer isso, de verdade, foi mal. Pensei que você ia se defender.
— É… — Com a voz trêmula, respondi: — … pensei a mesma coisa.
Mordiscou os lábios, visivelmente desconfortável.
— Eu realmente não queria que as coisas chegassem a esse ponto. — Desviou o olhar por um momento. — Uhm… Posso chama a Raven. Ela pode consertar isso, tenho certeza.
— E… quem é essa Raven?
— Bom… — Lewis arqueou a sobrancelha e levantou o queixo, com os olhos no céu. — Uma mulher incrível, de cabelos pretos, veste o mesmo uniforme que todo mundo…
Conforme ele divagava, os olhos presos a uma imagem qualquer que só lhe era visível, tive a estranha sensação de que algo não estava certo em minha mão.
A dor fora diminuindo… rápido demais. Virei-a lentamente para a luz e meu estômago deu um salto.
Os ossos começavam a se rearranjar sob a pele, como cordas puxadas por ganchos imperceptíveis. O inchaço cedia centímetro por centímetro, e o tom roxo começava a se dissolver em um vermelho difuso. Veias vibravam com um calor de dentro para fora, reacendendo-as.
A regeneração era real. A carne se fechava absurdamente tranquila, indiferente a tudo.
Lewis não percebeu e ria sozinho de sua descrição patética. Foi nesse segundo de distração que tomei minha decisão.
Levantei-me sem dizer uma palavra.
Com a mão livre, dei um murro direto e forte no seu estômago. O golpe fez com que o seu corpo se inclinasse para a frente e, no movimento seguinte, levei o meu joelho à sua face, machucando-o.
— Se vai ficar aí parado eu vou te descer o esculacho.
Talvez eu tivesse a coragem que nunca percebi que tinha diante de uma circunstância tão terrível. Eu não estava com humor para ter pena. Em vez disso, minha postura ficou rígida e meus olhos, pesados. Foi uma repreensão moderada, uma censura feita pelo poder absoluto de minha raiva contida.
— A-ah… — Ele gemeu de uma forma que poderia ter sido de dor ou prazer, depois um sorriso brincalhão se espalhou por seu rosto. — Bem…
Piscou, com um brilho de algo perigoso em seus olhos.
— Tô gostando disso.
** ** **
Toc Toc
Depois de duas batidas, a porta se abriu, revelando Mikael entrando no escritório da vice-líder.
O escritório era um refúgio particular dentro do enorme edifício, situado no topo. Através das ripas inclinadas, a luz do sol da tarde atravessava a sala, lançando uma luz longa e curiosa. O ar estava carregado de uma tensão indefinível, não muito hostil, mas definitivamente não despreocupada.
A sala era um enigma intrigante. Pilhas proeminentes de documentos e arquivos bem etiquetados coexistiam sobre a mesa com laptops abertos que exibiam fluxos de dados misteriosos. Dossiês perfeitamente alinhados ocupavam um canto, enquanto uma massa desorganizada de papéis soltos cobertos de anotações escritas às pressas ocupavam outro.
Os detalhes exclusivos do espaço sugeriam uma história que não estava escrita nas paredes, mas sim gravada na variedade incomum de artefatos. Livros antigos que detalhavam intrigas políticas que há muito haviam desaparecido da vista do público estavam lado a lado com livros empoeirados sobre ocultismo e suas capas de couro que haviam se desgastado com o tempo. Eles eram os confidentes de inúmeras noitadas, prova da sua erudição.
A vice-líder estava intensamente concentrada enquanto digitava em seu notebook, folheava relatórios e consultava os bancos de dados dos Mephistos.
— Opa, desculpe interromper. — disse ele, fechando calmamente a porta. — Caramba, até esqueço o quão metódica você é.
Ele notou que um painel de cortiça gigantesco ocupava toda a parede. O painel estava coberto de fotos e anotações abrangentes.
Cada imagem era cercada por recortes de jornais, post-its coloridos e observações escritas à mão que retratavam uma criatura estranha diferente.
As características e o comportamento da espécie foram meticulosamente registrados nessas anotações. Cada detalhe ali registrado continha conhecimentos úteis sobre tais.
— Tem meu total respeito, sério. Nem eu sou capaz de algo assim. — quando reparou em um detalhe particular, comentou: — Olha só, não sabia que você guardava pets por aqui.
Um aquário estava disposto no escritório, criando um pequeno oásis de serenidade. O aquário ficava em uma prateleira de madeira escura com enfeites elaborados, cercado por uma auréola de luz natural que entrava pelas cortinas entreabertas.
As plantas aquáticas ondulavam suavemente no fluxo criado pelo filtro, enquanto os peixes Betta splendens exploravam os ângulos do tanque, produzindo uma exibição movimentada de cores.
Mikael aproximou-se para enxergá-los melhor.
— Hahaha, que legal! — Ria como quem estivesse se divertindo. — Acho que a Mandy iria amar ver isso.
— Pois não, Mikael? — A voz da vice-líder soou firme e sem qualquer traço de acolhimento. Ela mantinha os olhos fixos nele, austeros, como se já soubesse que algo irritante viria a seguir.
Acostumado a lidar com sua frieza, esboçou um sorriso curto, mas irônico. Ele ajeitou a postura, embora relutante em adotar o tom sério que a situação exigia. Seu estilo sempre foi um tanto irreverente, e ele sabia que a rigidez dela contrastava fortemente com sua natureza mais descontraída.
— Ahem. — pigarreou de leve, deliberadamente prolongando o silêncio. — Estou aqui para discutir o destino do garoto.
Os olhos da vice-líder estreitaram-se. Sua reação não foi de surpresa, mas de tédio; parecia que já esperava por isso.
— A decisão já está tomada. Não pretendo alterá-la.
Mikael ergueu as sobrancelhas e deixou escapar um suspiro exagerado.
— Entendo, entendo. — Ele acenou levemente com a mão. — Contudo, acredito que ele não merece um destino desses. Krynt nunca teve controle sobre sua natureza desde o início. Culpar o garoto por algo que ele nem compreende direito me parece… vamos dizer… um tanto medieval. E nós estamos em uma sociedade moderna, não?
A vice-líder se manteve impassível. Seus olhos transpareciam uma mistura de cansaço e irritação, como se já tivesse ouvido variações desse argumento dezenas de vezes. Seus dedos tamborilaram levemente na mesa.
— Esse assunto também já foi debatido. O que você realmente deseja, Mikael?
Ele se aproximou um pouco mais da mesa, inclinando-se com um olhar que misturava uma confiança quase irresponsável e um leve toque de provocação. A vice-líder era difícil de dobrar, mas ele sempre gostou do desafio.
— Bem, eu tenho uma proposta… — começou, com um sorriso que ela certamente consideraria irritante. — Gostaria que o Krynt entrasse para a força-tarefa.
Ela congelou por um breve momento, mas logo seu rosto assumiu uma expressão de desgosto e perplexidade. Sua sobrancelha se arqueou, e por um segundo Mikael achou que ela fosse explodir.
— Isso é ridículo. Isso não afetará apenas nosso trabalho. Vai repercutir em mim, em todos que trabalham aqui. Você sequer pensou nisso?
Mikael cruzou os braços e deu de ombros, como se aquela reação fosse exatamente o que ele esperava.
— Já havia considerado que essa questão poderia surgir. Mas… não será um problema. O garoto está sob minha supervisão. E você sabe que eu sou ótimo em supervisionar. Tenha a certeza de que manterei tudo sob controle.
A vice-líder olhou para ele com olhos penetrantes, como se tentasse desvendar o real intuito por trás daquela proposta absurda. Mikael estava ciente de que seu passado não era exatamente um portfólio de escolhas acertadas e que, aos olhos de muitos, ele era mais um elemento de desordem do que um estrategista confiável. No entanto, desta vez, sua convicção era firme.
— Suas decisões costumam nos causar prejuízos. E colocar nossas vidas em risco… Por que você insiste em trazer o garoto para cá, sabendo que ele pode ser mais um problema?
— Sejamos francos. Estamos no meio de uma guerra. Uma guerra silenciosa, mas ainda assim uma guerra. E nesse jogo, todos temos sangue nas mãos.
Ela permaneceu em silêncio, observando-o com atenção. Mikael percebeu que talvez estivesse empurrando os limites, mas já havia ido longe demais para recuar.
— Os Mephistos estão evoluindo, se adaptando, se tornando mais espertos do que nunca. — Ele continuou, seu tom agora mais sério. — Se formos honestos, estamos perdendo terreno. Krynt, por mais que você o veja como um problema, é exatamente o tipo de recurso que precisamos. Ele entende como eles pensam, ele tem uma conexão com o lado sombrio que estamos lutando para erradicar. Imagine só, colocá-lo do nosso lado… Seria uma vantagem estratégica significativa.
Ele caminhou até a janela, olhando para fora, e depois voltou a encará-la.
— Eu sei, você vai me dizer que é arriscado, que pode dar errado. — Ele ergueu as mãos, como quem se rende. — Mas olha o cenário, desde 2019 temos visto as baixas aumentarem. A cada ano mais inocentes morrem. E a última vez que verificamos, nossa brilhante estratégia estava sendo superada. Krynt pode virar a maré a nosso favor. Sim, ele é imprevisível. Mas o imprevisível, às vezes, é exatamente o que precisamos quando o previsível está nos matando aos poucos.
A vice-líder suspirou, seus olhos vagando pelo escritório em busca de uma resposta que ela já conhecia, mas relutava em aceitar.
— Mikael, ele ainda é um jovem incapaz de lidar com ameaças que ultrapassam qualquer coisa que já viu. Temos dois novatos tão novos quanto Krynt, e nenhum deles está preparado para enfrentar uma ameaça de classe mortal. Colocá-lo em perigo só porque achamos que ele é um inimigo natural… isso não é favorável à sua condição atual.
Um passo atrás, Mikael deixou o peso das palavras dela pairar na sua cabeça por um momento. Ele sorriu levemente, não o seu sorriso incisivo de sempre, mas algo mais contido, quase melancólico. Sabia que ela estava parcialmente certa.
— Sabe… eu entendo o seu ponto. — Passou a mão pelo queixo com uma expressão pensativa. — Mas isso é uma questão de tempo. Tempo e, talvez, um pouco de fé na próxima geração, que, pelo que vejo, anda escassa ultimamente.
Se aproximou da mesa da vice-líder e se sentou na borda, algo que sabia que a irritaria, mas fez mesmo assim.
— Veja o caso de Lewis e Mandy. — continuou, gesticulando com a mão livre. — Há dois anos, você disse que eles não estavam prontos para missões de classe regular, e olha onde estão agora. Eles estão enfrentando esses monstros de frente. Se conseguirmos elevar o nível deles, podemos fazer o mesmo com Krynt. E você sabe disso.
A vice-líder encarava-o com uma combinação de irritação e curiosidade. Mikael era, no mínimo, provocante, mas suas palavras sempre continham uma lógica oculta, embora fosse uma lógica audaciosa e perturbadora. Ela comprimiu os lábios, porém não o interrompeu.
— O que você realmente precisa, e aqui vai meu conselho gratuito, é acreditar na próxima geração. Porque, goste ou não, somos uma linha tênue entre sobrevivência e colapso. Francamente, já tentamos o seu jeito, e as coisas não estão exatamente indo bem. Estamos ficando sem tempo, e Krynt é uma ferramenta que ainda não sabemos usar.
Ele não precisou de gestos exagerados para reforçar sua posição. A confiança que exalava era silenciosa, quase irritante, mas inegável. Mikael sabia que, no fundo, ele estava certo.
— Então… garanta que ele não vá causar qualquer tipo de dano severo em caso de possessão. Essa é a sua única tarefa. Espero que entenda o que está fazendo, Mikael.
Mikael levantou-se da mesa.
— Eu posso dar conta, você sabe disso. — Enquanto se virava para sair, lançou um olhar de canto, algo quase desafiante. — Nesse mundo, ele está no meu domínio. E se der errado, eu sou o primeiro a pagar o preço, como sempre.
A seleção de palavras de Mikael não era aleatória. Todas estavam imbuídas de um significado profundo que só ele entendia, uma combinação de confiança e aceitação do caos ao seu redor. Conhecia os grandes riscos envolvidos, mas, no fundo, essa era a única maneira que sabia como agir.
A vice-líder o observava com cautela, seus olhos eram gelados, mas uma novidade brilhava neles: curiosidade. Talvez ela estivesse começando a entender o que Mikael estava tentando expressar, por mais insano que isso pudesse parecer.
Quando se aproximou da porta, prestes a atravessá-la, um barulho alto ressoou do lado de fora, fazendo com que eles se voltassem instintivamente na direção do som.
— O que está acontecendo? — A vice-líder perguntou, já se levantando de sua cadeira.
Mikael deu um passo para trás, um leve sorriso brincando em seus lábios.
— Ah… — Suspirou, como se de repente se lembrasse de algo trivial. — É mesmo. Eles estão lá fora.
— Eles quem?
** ** **
A tensão que se fazia sentir no recinto intensificava-se a cada evasão eficaz, a cada golpe evitado. Os meus passos rápidos no chão eram abafados pelo crepitar das chamas. À nossa volta, rodopios de chamas e faíscas ondulavam.
Movi-me rapidamente para aproveitar ao máximo a pausa de Lewis na resposta.
Com um movimento rápido, a minha mão bateu-lhe na barriga nua. Ouvi um som abafado quando a colisão forçou o ar a sair dos seus pulmões.
Lewis recuou centímetros para trás, ligeiramente fraquejando, mas o seu ímpeto feroz manteve-se inalterável.
Os músculos dele se contraíram com rapidez enquanto se afastava, e o movimento que fez foi uma demonstração incrível de precisão.
A perna esquerda ergueu-se perfeitamente, apoiada na outra, e a sua postura lembrava uma figura de um antigo guia de artes marciais.
O calcanhar de Lewis estava quase insuportavelmente quente, uma sensação abrasadora que antecedia o impetuoso golpe.
A força inerente àquele pontapé fazia tremer o ar.
“Esse cara não para de se mexer igual uma mosca chata. Se eu não agir rápido, ele vai me derrubar fácil.”
Eu tinha consciência de que estava a enfrentar um especialista suscetível de causar danos insondáveis.
Quando dei por mim, estava a desviar-me de um golpe que se dirigia à minha cabeça, curvando-me no último segundo para evitar o que era impensável.
— Excelente movimento! — elogiou, satisfeito. — Você aprendeu rápido!
O meu coração batia num frenesim, acompanhando o ritmo dos obstáculos que se aproximavam.
Dobrei os joelhos em instantes e deslizei o meu pé esquerdo sobre a sua perna de apoio, prejudicando o seu equilíbrio e levando-o a cair.
A investida ousada foi eficaz, porém Lewis impulsionou o seu corpo para a frente com uma agilidade espantosa antes de cair sobre a outra perna.
O ruivo, com grande energia, retrocedeu num movimento quase magistral com a perna que lhe restava. Girou no ar como um louco, traçando um arco ascendente a partir da perna livre e lançando-se à minha direção.
O meu cérebro entrou em alerta máximo à medida que eu reagia tão rapidamente como uma chita em perseguição.
Ao afastar-me, consegui evitar o golpe mortal por uma fração de segundo.
O vento gerado pela passagem de Lewis fez-me arrepiar os cabelos, e eu sentia o calor abrasador que emanava dele. Era uma dança perigosa em que milímetros significavam a diferença entre a vida e a morte.
— Quase lá. — Sentiu-se genuinamente impressionado. — Você realmente manda bem na luta.
— Tô curioso sobre esse estilo. Juro que nunca vi nada parecido.
— É um estilo exclusivo do Clã Agni, com ênfase em chutes.
— Hmm… — Fiz-me de entendido. — Também sou versado em uma arte marcial.
— Interessante. — Um sorriso animado se desenhou em seus lábios. — Vamos lá!
A luta foi retomada, um duelo sem fim. Era uma guerra de habilidade selvagem entre a ferocidade dos socos, onde as armas eram as mãos e os pés e o combate corpo a corpo era a única lei.
Entendemos que não poderíamos manter esta dança letal indefinidamente.
Era uma corrida para ver quem aguentava mais tempo. Eu e o Lewis éramos combatentes e não íamos deixar que a nossa energia diminuísse.
O único objetivo era ganhar.
A minha obstinação atingiu um novo grau no momento em que o garoto disparou o seu pontapé no meu caminho.
Com um impulso, agarrei a perna dele com uma força firme e segurei-a sob o meu braço direito como se a minha vida dependesse disso.
Era um teste de força e habilidade.
Comecei a torcer o membro preso. Apesar dos seus protestos, ele não conseguiu parar o impulso da rotação.
Quando o atirei para o lado oposto, como um míssil errante, o ar estalou com a força do movimento.
— Segura!
Lewis estava a quatro metros de distância, no entanto, o mais espantoso era que continuava de pé, como um felino valente.
— Caramba, você tem malhado esse braço escondido, é isso? Tá com um trator aí no lugar do bíceps?
A provocação era leve, até divertida. Uma tentativa de seguir o clima anterior.
— Se eu te contar, tu vai achar que é mentira. — retruquei, com um sorrisinho debochado.
O garoto riu baixo, limpando o suor da testa com as costas da mão.
— Vai, fala aí. Tô aceitando umas dicas. Faz tempo que eu tô emperrado no treino de força.
Foi aí que abri a boca sem pensar. Com naturalidade demais. Como se a frase não carregasse veneno.
— Ah, cara… isso não dá pra ensinar. Tem gente que simplesmente nasceu com talento. É coisa de berço. Uns têm, outros correm atrás.
A princípio, ele apenas me olhou. Sem expressão. Aquele tipo de silêncio que não era dúvida, nem confusão.
Foi um segundo. Talvez dois.
Então os olhos dele mudaram.
O brilho leve e brincalhão se apagou, dando lugar a um fulgor seco e penetrante. Algo que não combinava com Lewis, que até então vinha tentando ser gentil. Era um olhar rígido, próprio de alguém que viveu muito tempo sob estresse.
— Entendi.
Reconheci tarde demais a forma como as palavras tinham soado. Não adiantava mais. O estrago já estava feito.
O ceticismo sobre seus esforços se tornara uma realidade inegável, uma chama ardente que o queimava com fúria. Era como se uma mentira se tornasse uma verdade incontestável, uma força que ele usava para enfrentar todas as dificuldades.
Lewis odeia isso.
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