Índice de Capítulo

    As emoções eram o fole de sua forja interna. Como uma fogueira, seu poder prosperava com a alimentação constante de sentimentos. Embora qualquer emoção forte pudesse atiçar as chamas, a raiva agia como o combustível mais potente.

    Não era uma queima constante, mas um inferno furioso, um vórtice agitado que sugava cada lampejo de paixão e o transformava em uma dança tempestuosa.

    Essa conflagração interna não era um caos aleatório, no entanto. Ela esculpiu seu próprio ser. A cada batimento cardíaco intenso, uma explosão em miniatura se propagava, moldando sutilmente a sua fisiologia para lidar melhor com a imensidão do poder que exercia.

    As labaredas se arrastaram pelo chão em minha direção, famintas e mais velozes do que eu gostaria de admitir. Em questão de segundos, senti o calor escalar meus tornozelos e consumir os arredores, enquanto Lewis surgiu do brilho alaranjado, encarando-me com o olhar fixo e a perna direita já em movimento, desenhando um arco certeiro em minha direção.

    Não tive tempo de raciocinar. Meus músculos já sabiam o que fazer antes mesmo de eu pensar. Levantei o antebraço prontamente. O osso vibrou ao receber o golpe, que viajou até a base da palma da mão. A dor foi imediata, intensa e incômoda, menor, no entanto, do que seria se aquele chute tivesse alcançado meu rosto.

    Usei a força do bloqueio para girar o corpo, torcendo o tronco depressa o suficiente para sentir o chão escapar por debaixo das solas, ainda que por um instante, na busca por uma brecha. Lewis estava no ar, e era só isso o que eu precisava.

    Minha perna direita se lançou na direção da coxa com uma curva no ar. A batida foi potente, ainda que o resultado fosse… decepcionante.

    Ouvi o som do meu pé afundando na carne dele até parar, tal qual se tivesse batido em madeira dura. Nem um centímetro ele se moveu.

    “Cacete, isso parece uma parede!”

    Dois passos atrás, observei a tensão em seus músculos enquanto testava meu equilíbrio. Os tendões da perna estavam saltados, grossos e duros quanto cordas ao limite da tração. Nada cedia. Mesmo com o impacto inteiro do meu giro, ele não arredou pé.

    Quantas horas por dia esse sujeito passa treinando? Quantas lutas, quantos tombos foram necessários para se tornar essa muralha ambulante?

    Meu pé ainda latejava, mas eu não tirava os olhos dele. Qualquer ajuste mínimo no ombro, a mais leve contração nas mãos, era um aviso. A situação era muito séria. Seu corpo era uma arma, e Lewis não estava ali para brincar.

    Notei algo estranho em seus olhos e percebi uma expansão animalesca e incontrolável por trás das pupilas, um desejo voraz por mais do que apenas a vitória. Era como encarar um corpo tomado por uma febre há muito tempo adormecida, ávida pelo calor do confronto.

    “Acho que tô fodido.”

    Lewis se encolheu de lado. A base do seu pé esquerdo girou, e o seu quadril deslizou, moldando o seu corpo na forma de um arco pronto para o lançamento, conduzido por uma força imponderável. A perna direita descreveu uma meia-lua que rasgou o ar com uma brutalidade elegante.

    Tudo ao redor perdeu a nitidez. Os sons abafaram de tal forma que o mundo ficara submerso. O tempo se esticou e se contorceu. Antes mesmo de vê-lo por completo, senti o movimento dele se aproximando por meio de um tremor no chão causado pela mudança de pressão acompanhada do assobio do vento seco na minha pele.

    Minha coluna reagiu automaticamente. Tombei a cabeça para trás em uma inclinação súbita, puxada por reflexo e desespero. Senti o rastro da perna dele passando rente, tão perto que pude sentir o calor roçar meu queixo.

    Desviei. Por um triz.

    O alívio veio como uma onda de maré baixa. Um gosto doce e amargo tomou minha língua com sua espessura e familiaridade. Levei os dedos ao rosto e os retirei sujos e vermelhos. A ponta do meu nariz pulsava; os pequenos vasos se romperam em algum momento do frenesi.

    “Não é possível. Ele me acertou mesmo errando?”

    Aquela maldita pressão tinha causado algum dano interno. O ferimento não era preocupante, mas a mensagem estava clara. Lewis tinha força, mas também era uma ameaça à beira do controle, com os pés fincados no caos.

    — Já deu, né? — disse, limpando o sangue com o dorso da mão. — Não falei por ma…

    Mal tive tempo de terminar. Lewis já vinha na minha direção. 

    Seu pé adiantou-se a uma velocidade absurda, impulsionado pelas chamas ondulantes ao redor de seu corpo. Sua perna direita se tencionou à medida que os músculos se tornaram mais rígidos. O giro do tornozelo se deu com precisão e liberou toda a força acumulada naquele movimento.

    O impacto veio direto no meio do meu peito.

    Tentei cruzar os braços toscamente, na esperança de me defender, mas fui esmagado antes de conseguir fazer qualquer coisa. O som da pancada latejou em meus ouvidos com a intensidade de um tambor batendo dentro da minha cabeça. Voei pelos ares feito um pedaço de papel à mercê do vento. Meu corpo rodopiou, desgovernado, por quatro metros, até atingir o solo bruscamente.

    Rolei duas ou três vezes sobre os ombros, raspando-os em pedras, soltando o ar por entre os dentes. Cada rebarba e imperfeição do solo rasgava minhas costas. Tudo doía. Tudo latejava. 

    Fiquei de lado apoiado nas mãos para tentar puxar o ar escasso. A poeira se levantava sobre mim como uma neblina seca. Minhas palmas ardiam devido aos pequenos cortes e à areia.

    “Porra… o que eu faço agora? Esse cara tá fora de si.”

    Seus ataques eram uma torrente de impulso e fúria, como se ele estivesse disposto a desistir de tudo para vencer. O seu mundo se tornou um redemoinho carmesim no calor da batalha, uma cortina escarlate que obscurecia tudo, exceto sua forte vontade de triunfar. A luta atingiu níveis sem precedentes e a linha entre vontade e obsessão ficou cada vez mais nebulosa.

    — Respeite o calor, ou ele o derreterá mais rápido que manteiga em uma frigideira.

    A ficha caiu. Cada crítica, cada gesto arrogante era um golpe direto no ego de Lewis, acendendo uma chama interminável de ódio. Era como se um manto de desprezo tivesse se infiltrado profundamente em seu espírito, reabrindo uma ferida antiga, uma cicatriz emocional que latejava nesses momentos. 

    Ser subestimado não era apenas um incômodo, era uma faísca que acendia a brasa de seu orgulho. Abriu uma mágoa antiga, uma angústia enterrada que voltou à superfície. Ele não estava apenas com raiva, estava desesperado para provar seu valor, para queimar tão intensamente que eles não ousariam desviar o olhar.

    A necessidade de extinguir a imagem dele como uma piada, tornou-se um inferno dentro de si. Isso o alimentou, levando-o a feitos cada vez maiores, uma dança distorcida entre a validação e a autodestruição.

    — É sério, deixa eu…

    Uma nova explosão erupcionou do solo a seus pés, rompendo as camadas compactas de sedimento. A pressão térmica rasgou a crosta e cuspiu uma coluna de plasma incandescente girada em torno dele. As labaredas orbitavam seu corpo e se alongavam conforme os comandos instintivos de sua raiva, os quais se traduziam em energia.

    Ele avançou. O oxigênio circundante foi sugado abruptamente à medida que as moléculas colidiam em estado de excitação extrema. Sua taxa de combustão disparou. A atmosfera o recebia como um organismo agitado, reajustando seu próprio equilíbrio para manter o fogo vivo e voraz.

    Os contornos de seu corpo tremeluziam sob um espectro borrado. Era impossível distinguir onde a pele terminava e a chama começava.

    No intervalo impossível dentre um batimento e outro, meus sentidos se concentraram apenas na trajetória ígnea que se aproximava de mim. Toda a minha musculatura ficou paralisada. Não restou qualquer instinto de evasão que pudesse alterar a conclusão inevitável da colisão.

    Meu campo de visão se estreitou. A figura em combustão preenchia o horizonte com uma presença absoluta. Tudo que não fosse Lewis se dissolvia na periferia.

    Então, o impacto veio.

    A onda de choque chegou com um atraso mínimo, porém com uma brutalidade que comprimiu o ar em um surto de energia, rasgando o espaço à nossa volta. A expansão abrupta gerada pela compressão térmica resultou em um pulso violento ao qual fez o solo vibrar.

    Uma poeira fina subiu e se misturou às partículas de fuligem e cinza em suspensão, formando um véu irregular a poucos metros de altura.

    Nenhum som, exceto a batida do meu coração, que eu conseguia ouvir claramente.

    Meus olhos mal conseguiam capturar os contornos de quem estava à minha frente. A densidade das partículas dispersas no ar reduziu meu campo visual a manchas turvas. 

    — Huh?

    Quando a poeira finalmente baixou, Mikael se destacou de forma imponente em meio ao tumulto. Sua mão levantada, sólida como uma rocha, agiu como um escudo intransponível diante do valente ataque de Lewis.

    O olhar dele falava por si só; exalava seriedade e resolutividade. 

    Cada centelha em seus olhos transmitia uma dedicação intransigente, uma vontade inabalável de preservar e lutar pela causa, um juramento silencioso gravado na pedra da convicção, mais alto do que qualquer palavra proferida.

    A investida inexorável de Lewis foi neutralizada por um lampejo de percepção, e fomos conduzidos a uma breve, mas notável, pausa no conflito. 

    O silêncio resultante foi intenso, pulsando com a antecipação de um cessar-fogo iminente.

    — Foi mal.

    Lewis sofreu uma mudança durante esse raro momento de discernimento. Seu olhar mudou de uma intensa atitude de obstinação para uma profunda contemplação. Era como se um vórtice interno de turbulência tivesse se evaporado, permitindo uma pequena pausa.

    — Deixei a raiva subir à cabeça.

    — Deixou mesmo.

    Uma marca de queimadura, como uma cicatriz temporária, se revelou quando Lewis desceu sua perna, destacada na pele de seu antebraço. A área danificada estava vermelha e um pouco inchada. Mesmo assim, Mikael parecia não sofrer com os danos.

    — Você estava indo longe demais. Tem que aprender a se controlar antes que o fogo queime tudo o que resta.

    Mikael deu-lhe um peteleco na testa.

    — Você é do Clã Agni, por isso suas ações sempre extrapolaram todos os parâmetros. 

    Ele me deu uma olhada de lado, verificando discretamente minha condição.

    — Caramba, olha o seu estado. 

    O suor caía em gotas sobre minha testa, com os fios de cabelos grudados sobre a pele. Meus músculos, rígidos e dispostos para a luta, começaram a relaxar. A respiração era difícil e pesada, pois meus pulmões precisavam de oxigênio após o que ocorreu. Havia hematomas e arranhões por todos os meus braços.

    — Deve ter sido pegado.

    Seu semblante solene deu lugar a uma expressão descontraída, iluminada por um sorriso. E, apesar de sua natureza, esse sorriso transmitia uma sensação de conforto e simpatia.

    — Eu peço uma coisa simples e vocês só faltam se matar, né? — Riu-se. — Bem, deu para testar o combate físico.

    Enquanto isso, limpei o sangue que ainda escorria do meu nariz.

    — Se eu não interviesse, acho que vocês estariam em problemas. — Ponderou por um breve momento a respeito do que disse. — Até eu também.

    Lewis deu um suspiro profundo.

    — É difícil manter o controle. — Bateu a palma da mão na cabeça. — Foi um vacilo meu.

    — Não, na verdade, foi idiotice minha ter dito aquilo. — confessei. — Vou me certificar de nunca mais abrir a boca, porque, né…

    Estendi minha mão, com a palma para fora. Este era um gesto que, de maneira clara, transmitia a mensagem de “vai me fazer mal de novo”.

    — Mesmo que tenha apanhado, você foi bem. — Esfregou a mão sobre minha cabeça. — Só tem que melhorar bastante.

    — Pff. — Lewis prendeu a risada.

    Minhas pupilas se contraíram, meus lábios se curvaram em uma linha reta e meu olhar se aguçou, revelando um descontentamento. 

    Foi uma reação visceral, uma expressão imediata de profundo ressentimento.

    — Mas, é, realmente. — Lewis concordou. — Pensei que o Krynt não soubesse lutar, mas ele manja pra caramba.

    — É claro, sou pouca coisa não.

    Mikael estava procurando um objeto específico nos bolsos da calça.

    — Tenho uma coisa pra te mostrar.

    Ele exibiu com orgulho o distintivo da força-tarefa.

    A luz refletiu no objeto, revelando o símbolo que denotava a minha posição como Agente de Campo Classe Regular.

    A insígnia, com seu brilho metálico, simbolizava autoridade e responsabilidade.

    — Ah, não acredito… — disse, incrédulo.

    — Agora você oficialmente faz parte da gente. Incrível, não é?

    Nada pude dizer, visto que estava em um estado de total admiração. 

    Meu silêncio foi uma reação à grandiosidade da surpresa que me pegou de surpresa, como se as palavras tivessem desaparecido.

    Minha expressão fixa e atônita mostrava toda a extensão do choque com a notícia.

    — Isso não vai ser perigoso? — Lewis perguntou.

    — Se fosse eu jamais cogitaria chamá-lo para trabalhar com a gente. O Krynt será de grande suporte, principalmente na missão de amanhã.

    Lewis considerou a ideia de Mikael, mas um lampejo de percepção iluminou sua mente com a revelação de suas verdadeiras intenções. 

    — Não sou tão burro, mas acho que saquei. — disse, sorrindo. — Genial, Kael!

    Fiquei surpreso com a elegância do distintivo quando ele me foi entregue. 

    Eu o segurei cuidadosamente em minhas mãos, admirando cada detalhe.

    O centro do distintivo era ornamentado com uma bela águia em voo, com as asas estendidas, emoldurada por uma folha de carvalho e uma guirlanda de louros. 

    O nome da força-tarefa foi escrito em uma caligrafia delicada e elaborada com a sigla: U.E.C.

    — O nosso papel é separar o mal das pessoas para que essa espécie desapareça. Você, como um novo funcionário, tem esse dever agora. Você acha que consegue?

    Agarrei-me ao meu distintivo com uma firme resolução. 

    Apesar das lembranças angustiantes da catástrofe que eu havia criado involuntariamente, decidi, de agora em diante, curar o dano. 

    O fato de agarrar-me firmemente ao distintivo simbolizava meu desejo incondicional de enfrentar meus pecados e seguir o caminho da expiação, transformando um erro cometido em algo que pudesse produzir o bem.

    — Vou fazer o meu melhor.

    Mikael sorriu com um toque de orgulho.

    Apoie-me

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 0% (0 votos)

    Nota