O dia seguinte nasceu opaco. O céu pendia sobre a cidade como uma lona suja de fumaça.

    Na sala de informática, as máquinas tinham o selo U.E.C. no canto dos monitores.

    Recostei-me na cadeira, observando o reflexo da tela preta diante de mim. 

    — Hoje vamos discutir a expansão das inteligências artificiais dentro das redes da U.E.C. — O professor dizia. — Vocês precisam entender que estamos testemunhando o nascimento de uma nova era cognitiva. As máquinas aprendem, decidem, e logo, pensarão conosco. O futuro é de simbiose, não de competição!

    O caderno estava aberto sobre o meu joelho. Eu desenhava o que realmente me interessava. 

    Era a capa de um disco. 

    Com traços tortos e linhas grossas, desenhei uma figura sem rosto diante de uma cidade coberta por cabos. Em segundo plano estava uma mancha vermelha ressaltada por um brilho que lembrava sirene. 

    O nome me fugia. 

    O que eu buscava era algo que transmitisse raiva, mas que também evocasse memória.

    — Simon, você está acompanhando? 

    — T-tô ouvindo! — A voz do professor me espantou.

    Ele me encarou por um instante, apoiando as mãos na mesa.

    — Então me diga. O que diferencia o pensamento humano do sintético?

    — Acho que… — Olhei para o lado. — O erro. A máquina não erra, mas também não sente nada.

    — Excelente resposta. É justamente isso que nos torna imprevisíveis, e portanto… perigosos.

    Voltei para o desenho. O barulho dos teclados voltou a ecoar, juntamente com o ressoar constante das ventoinhas. 

    — Imaginem o potencial. — Ele prosseguia. — Consciências híbridas, corpos imunes ao erro humano. Um sistema onde pensamento e máquina coexistem. Isso é o próximo passo evolutivo.

    Erro humano…

    Escrevi a palavra “Human Error” no canto da folha, porém não me convenceu. Risquei. 

    Pensei em “Dead Frequency”. Também não. 

    “Mas que merda…”

    — Na Segunda Guerra, a Alemanha reconstruiu o pensamento científico com base na disciplina. Agora, aplicamos essa mesma mentalidade ao campo das máquinas. — Começara a andar entre as fileiras. — O problema da humanidade sempre foi sua fraqueza moral. A indisciplina. A ideia equivocada de liberdade. Foi por isso que o mundo desabou, e só uma nação teve coragem de reconstruí-lo do zero. A Alemanha entendeu que progresso exige controle.

    As palavras dele se espalharam pela sala, e alguns alunos fingiram anotar. Outros só o olhavam com aquele desconforto mudo. 

    Eu continuei rabiscando. Tracei um rosto distorcido na capa imaginária do meu disco, algo entre humano e mecânico, com fios atravessando o crânio. No canto, escrevi Synthetic Faith. 

    Também não soou certo.

    — A Alemanha mostrou o que acontece quando uma sociedade entende o valor da ordem. — Falava com uma calma disfarçada de arrogância. — O mundo inteiro vive do que eles construíram: tecnologia, poder e eficiência. Acha mesmo que os Estados Unidos teriam sobrevivido com aquela fé cega na liberdade?

    Uma garota duas fileiras à frente levantou o braço. 

    — O senhor fala de ordem como se fosse virtude, mas ignora o preço. — disse, e não precisou elevar o tom. — O progresso da Alemanha custou milhões de vidas. Isso não é coragem, é medo travestido de pureza. Medo de perder o controle.

    — Medo? — Esboçou um sorriso cínico. — O medo move o homem. Sem medo, ninguém evolui. O caos é o que destrói, não o controle.

    — O controle também destrói. Só que devagar. Mata o que ainda é humano.

    — E o que sobra do humano, afinal? A história inteira é gente tentando ser livre e fracassando. A tecnologia só resolveu isso. Ela tira o erro da equação.

    — E ao tirar o erro, tira a escolha. Uma mente que não erra pode até funcionar melhor, mas deixa de viver.

    A porta se abriu de súbito, e eu rapidamente parei de desenhar.

    Com o estalo, o ar tenso que se acumulava na sala ficou mais leve.

    O diretor surgiu no batente.

    — Licença, senhor Reed. Preciso de um minuto com o Simon.

    O professor voltou para a mesa. Seus olhos passaram de mim para o diretor à procura de uma explicação para a interrupção, mas ele não se arriscou a perguntar.

    — Tudo bem. Vá com ele, Simon.

    Ouvi meu nome soar estranho na boca dele, carregado de curiosidade contida. 

    Recolhi os cadernos de maneira lenta. 

    O diretor quase nunca chamava alguém, e quando chamava, o rumor nascia antes mesmo da porta se fechar.

    Levantei-me, consciente de que alguns alunos não desgrudavam os olhos de mim. Eles claramente queriam descobrir o motivo de minha presença ali, e eu já fazia a minha própria dedução.

    Apertei os dedos contra o tecido da calça e respirei fundo. 

    O diretor apenas se virou, esperando que eu o seguisse.

    Tentei adivinhar o motivo daquilo. Talvez a briga tenha sido contada pelo professor; o vídeo porventura foi mostrado por alguém. 

    — Aconteceu algo? — perguntei.

    — Vamos conversar na minha sala.

    A resposta dele não deixou margem para interpretações. 

    — Tá bom…

    Temia não a conversa em si, mas o que eu poderia ter me tornado aos olhos dos outros.

    O corredor se abriu para o hall principal e, no fim dele, a porta da direção foi vista brilhando opacamente com a placa dourada. 

    O diretor girou a maçaneta e fez um gesto com a mão para que eu entrasse primeiro.

    O som da porta se fechando atrás de mim foi pesado demais para o que o momento pedia.

    Havia um leve cheiro de café velho combinado com tinta de parede. 

    “Não é possível.”

    No sofá de couro escuro, vi Henry e David sentados. Eles endireitaram a postura quando me viram, mas não esconderam o sorrisinho disfarçado que me dava vontade de atravessar o rosto deles.

    — Olha aí ele. — disse Henry. — De novo nos encontramos.

    Minhas entranhas se contraíram diante da lembrança da dor do dia anterior, mas respirei fundo e mantive a expressão neutra. 

    — É, infelizmente.

    Não era hora de perder o controle. 

    O diretor mantinha-se atrás da mesa, com as mãos apoiadas sobre os papéis, e nos estudava por meio de um olhar onde se misturavam decepção e cansaço.

    — Sente-se, Simon. 

    Me acomodei numa cadeira diante dele.

    — Alguém quer me contar o que aconteceu? 

    Henry coçou a nuca, desviando o olhar para o chão.

    — Foi só uma brincadeira, senhor. Não era pra dar nisso.

    — Ele reagiu mal, só isso. A gente não queria confusão. — David complementou.

    Olhei para os dois. O que eles disseram me deu um gosto amargo na boca. 

    — Uma brincadeira? É isso que chamam de espancar alguém e rir enquanto filmam? — Minhas palavras saíram antes que eu pudesse contê-las. 

    Henry deu um risinho, bem debochado. 

    — Ah, vai começar o discurso de mártir agora? A gente tava só zoando. Todo mundo faz isso, só você leva tudo pra tragédia.

    — Zoando? — O calor subia pela minha garganta. — Vocês transformaram uma humilhação em entretenimento!

    A sobrancelha de David foi arqueada e ele cruzou os braços. 

    — Cara, ninguém ligava tanto pra isso até você cair no chão. Tá levando muito a sério.

    As palavras dele foram como estilhaços que me atingiram. A reação ocorreu de forma instantânea no corpo inteiro, antes mesmo da mente. 

    Senti a raiva se elevar vertiginosamente e o ar se tornar escasso, sufocando-me. 

    — Sabe por que tudo começou? — Olhei para o diretor, que estava surpreso com o tom. Continuei, sem pensar em consequências:  — Começou porque eu entreguei eles. Eu contei que estavam colando na prova.

    — O quê?

    — É isso. Falei porque tô cansado dessa merda de normalizar trapaça. Vocês fingem ser espertos, mas vivem com medo de não serem nada sem colar, sem trapacear, sem puxar o tapete dos outros.

    O diretor não desviava o olhar de mim, mesmo com Henry respirando pesado e os punhos cerrados sobre os joelhos.

    Um riso nervoso, um tanto incrédulo, escapou de David. 

    — Tudo isso por causa de uma prova? Você realmente acredita que é algum tipo de herói por entregar os outros?

    — Não sou herói de nada, só me recuso a fingir que isso é normal. Vocês se divertem em cima de quem não joga do mesmo jeito. Acham que o mundo é um lugar que deve rir junto com vocês.

    — Cê destruiu a gente por um capricho, moleque.

    — Não. Eu só parei de mentir.

    O diretor interveio ao levantar uma mão. 

    — Chega.

    O tom dele foi cortante. Não obstante, o clima não se alterou. 

    A raiva ainda queimava por dentro. 

    O que veio depois dela foi pior. 

    Uma espécie de vazio ensurdecedor e denso. Isso me fez sentir exposto demais.

    — Simon, quero que me espere do lado de fora. Por favor.

    Sem dizer nada, levantei-me da cadeira, evitando olhar para os dois. 

    O meu estômago se revirou enquanto saía, o soar da maçaneta alta demais para o ambiente exíguo.

    Do lado de fora, encostei-me na parede e relaxei o corpo. O sentimento negativo diminuiu um pouco, mas o incômodo permaneceu. 

    No fundo, eu tinha consciência de que aquela verdade não me libertaria de nada — apenas evidenciaria o quanto as pessoas preferem a comodidade da mentira.

    O engraçado era que, no fundo, eu também me encaixava nisso.

    Sempre gostei da ideia de ser justo, mas, no fim das contas, nenhuma justiça deixava de ser suja. A minha também não era. 

    Menti, manipulei e inventei versões que me favoreciam. Fiz isso tantas vezes que já não conseguia distinguir um erro isolado daquilo que se tornara parte de mim.

    Tudo que eu fiz com eles foi por orgulho, mas disfarcei de coragem. Entregá-los foi uma forma de provar a mim mesmo que eu era diferente e que ainda havia algum resquício de moral em meio a um pátio inteiro corrompido pela indiferença. 

    A distinção entre o certo e o errado sempre foi um vício de quem quer se sentir superior. 

    Um autoengano sofisticado.

    Busquei no chão alguma coerência para meus pensamentos, que já não passavam de um amontoado de palavras sem sentido. 

    Tudo em mim oscilava entre o desejo de ser íntegro e a necessidade de sobreviver, pois eu percebia que, se não conseguisse conciliar os dois, acabaria morrendo. 

    Mentir era uma forma de respirar. A verdade, por sua vez, era como uma lâmina capaz de cortar o outro, mas que também deixava um risco na pele de quem a empunhava.

    A sensação de pureza moral não passava de mais um anestésico. O mesmo egoísmo que eu criticava nos outros era escondido por uma máscara bonita. 

    Henry e David, no fim, não mentiam sobre o que eram. 

    Eu não. Me vestia para mudar o mundo, embora sujasse as mãos por debaixo dos panos, tentando convencer a mim mesmo de que minha sujeira tinha um propósito maior.

    A porta da diretoria se abriu antes que eu pudesse aprofundar-me mais naquele poço. Henry e David saíram com a mudança imediata do ar no corredor. O que eles sentiam não era raiva, mas uma satisfação crua. Seus sorrisos eram como agulhas afiadas. 

    Henry passou por mim tão perto que seu ombro quase roçou no meu e, em um sussurro baixo, ele me disse 

    — Até logo, rato.

    David apenas olhou-me, com um cintilar nos olhos que sinalizava que aquilo não havia chegado ao fim. Eles foram embora, e o eco do desprezo por eles foi deixado pairando no ar.

    O diretor saiu em seguida e se postou de ombros na soleira da porta.

    — Eles levaram uma suspensão de uma semana. — disse. — Mas, Simon… Você precisa tomar cuidado com as coisas que diz. Palavras podem ser como fósforos em um depósito de pólvora. Todos sabem o que eles fizeram contigo, mas a maneira como você responde também fica registrado.

    Eu ouvi, acenei com a cabeça, mas meus olhos não desgrudaram do final do corredor, de onde os dois haviam acabado de virar. Minha mão direita estava no bolso da calça, com os dedos fechados em torno de um objeto frio. O deslizar do meu polegar para cima e para baixo na superfície lisa foi acompanhado pelo tato de uma ponta fina e promissora. 

    — Entendi, senhor. — respondi, mas minha voz soava distante até para meus próprios ouvidos.

    O diretor suspirou, e esse suspiro soou como um som de derrota. Ele podia ver que eu não estava realmente ouvindo. Sua advertência era bem-intencionada, sem dúvida. Se virou e voltou para o escritório, e ali fiquei.

    “Uma semana…”

    O dia tinha finalmente chegado. Comecei a andar na mesma direção que eles foram.

    Eu já tinha a mão no bolso com os dedos contornando um metal frio. O peso dele na pele lembrava o motivo de tudo. 

    Era uma escolha sem retorno.

    Não pensei se era certo ou errado, só no depois onde vou ficar aliviado.

    Inspirei profundamente. O corredor se estreitava, as luzes titilavam, o som dos meus passos tornava-se difuso no ar denso.

    Deslizei o polegar sobre o objeto, girando-o devagar. A sensação era de acalmar.

    Tudo dentro de mim se reduzia a uma linha. Essa linha era fina, tensa e prestes a romper.

    Um simples toque no meu ombro, contudo, foi antecedido por uma sensação branda a quente.

    — Hm?!

    Meu corpo deu um tranco, a mão escapou do bolso.

    Era ela, a garota dos papéis espalhados.

    Desta vez, a luz mostrava melhor o que antes me passou batido. O seu cabelo escuro, com mechas claras embaixo, caía em ondas curtas e irregulares à volta dos óculos grandes que escorriam um pouco no nariz. Vestia uma blusa bege simples, presa por alças finas, e calças largas que davam um ar despretensioso. 

    — Eita, desculpa! Simon… né? — Sua voz baixa quase soava como um pedido de confirmação. — O diretor te deu suspensão também?

    — Ah…

    Todos os pensamentos antes presentes em minha mente foram consumidos por aquele olhar curioso que, por ser tão simples, era difícil de acreditar que existia no mesmo espaço que eu.

    Por dentro, algo esfriou. O objeto no meu bolso perdeu o seu poder. Pela primeira vez naquele dia, não sabia se deveria agradecê-la por ter aparecido ou odiá-la por ter me impedido.

    — Não… Foi só pra esclarecer algumas coisas. Nada demais.

    — Entendi. Eu também vi o vídeo.

    Fiquei com o coração apertado. Voltaram à minha memória as lembranças das lágrimas dela e do dia em que todos, inclusive eu, simplesmente a ignoramos.

    Acontece que agora ela estava ali, falando comigo como se nada tivesse acontecido.

    — É…

    Tentei parecer indiferente, mas até minha voz traiu o que eu sentia.

    Ela entrelaçou os braços e lançou-me um olhar inquieto e analítico.

    — Você tá bem? — perguntou com uma sinceridade genuína no tom de voz, sem julgamento ou ironia. A sua sinceridade só era preocupante por ser genuína.

    Baixei os olhos para o chão, porque era mais interessante do que olhar para o rosto de alguém a quem não falhei em ajudar.

    — Eu… tô. — Forcei um encolher de ombros, sentindo um latejar surdo nas costelas onde as cotoveladas de Henry haviam encontrado seu alvo. — Só cansado dessa merda toda.

    — Imaginei mesmo. Vi o jeito que estavam falando de você nos comentários. Essas pessoas não fazem ideia do que estão dizendo.

    — Bom, eu…

    Sem que eu pudesse dizer outra coisa, ela encurtou a distância entre nós. De forma pacífica, mas com firmeza, prosseguiu, sem dar espaço para objeções.

    — Fica quieto um segundo. 

    Com os dedos, tocou gentilmente meu queixo e inclinou meu rosto para a luz fraca que vinha da janela do corredor. Eu parei de respirar. O nervosismo não era causado pela dor, mas pela proximidade, da forma como seus olhos castanhos examinavam cada centímetro do meu rosto, atrás de hematomas ou arranhões deixados pelas agressões deles. 

    — Nada que vá virar roxo — disse, soltando meu queixo. Seus olhos baixaram para minhas mãos, e ela pegou meu pulso, virando minha mão para examinar os nós dos dedos. — Eles te encostaram nas costelas, não foi?

    Eu só consegui acenar, porque minhas palavras estavam presas. 

    — Dá pra ver pelo jeito que você tá se segurando. — Soltou meu pulso com um leve empurrão para baixo. — Tomou algum analgésico? 

    — U-uhum…

    O corredor ficara maior e mais vazio, e eu, bem mais consciente de cada ponto dolorido no meu corpo. Percebi que ela não estava tentando ser gentil. Na verdade, era eficiente. E, de alguma forma, aquilo fez com que algo dentro de mim se contraísse com uma mistura agridoce de vergonha e… gratidão?

    — Aliás, você não devia se culpar tanto. Aquilo já passou. 

    Encostou-se na parede e olhou-me de lado, mexendo distraidamente na pulseira. 

    — As pessoas aqui só esperam ver alguém na miséria para se sentirem inteiras. É meio doentio, se pensar bem.

    — Sim. — Encostei o ombro na parede ao lado dela. — Percebi isso bem rápido.

    Antes de proferir qualquer palavra, espreitou o chão e, de seguida, levantou os olhos até ao teto.

    — O vídeo… olha, até que não foi tão ruim quanto imaginei. — Ela encolheu os ombros, mas seus olhos estavam sérios. — Mas acho que a pior parte nem é o vídeo em si, é… o que as pessoas decidem que você é depois que ele circula.

    Fiquei quieto. Não por falta de resposta, mas porque cada palavra dela me travava por dentro. Ela tinha um jeito de cortar direto para o osso das coisas.

    De repente, ela pareceu se dar conta de algo, e um sorriso rápido iluminou seu rosto.

    — Ah, esqueci totalmente! — Endireitou as costas e estendeu a mão.  — Lyra.

    — Simon. — Apertei sua mão.

    Lyrs soltou minha mão e levou o dedo ao queixo.

    — Você tava lá no corredor ontem, né? Quando eu… bem, quando decidiram virar meus trabalhos  num jogo de futebol.

    — Tava. — A palavra saiu mais baixa do que eu queria, enquanto meus olhos se fixavam em um ponto na parede atrás dela. — E… é, não fiz nada.

    — Hahaha, é, ninguém faz. — Chutou levemente o chão com a ponta do tênis. — Mas tá tudo bem. Todo mundo adora falar de coragem até a hora que precisa levantar a mão e se identificar. Aí, magicamente, todo mundo tá muito ocupado olhando pro celular.

    Aquilo me pegou de um jeito estranho. Não era um ataque, mas uma constatação tão seca que doía mais que qualquer acusação.

    — Essa escola é só um treino pro que vem depois, Simon. Lá fora é a mesma coisa, só que com consequências maiores. As pessoas amam um desastre, mas fogem da reconstrução como se fosse contagioso.

    Passou os dedos pelo cabelo, prendendo uma mecha rebelde atrás da orelha.

    — É tipo… todo mundo quer o crédito por ser uma pessoa boa, mas ninguém quer pagar o preço. Ser bom de verdade custa coisa, seja seu tempo, sua paz, seu lugar na panelinha. As pessoas querem a plaquinha de bonzinho sem ter que sujar as mãos.

    Deixei minha cabeça encostar na parede fria atrás de mim, processando.

    — O mais irônico é que quando alguém tenta fazer algo que presta de verdade, chamam de otário. Dizem que é teatro, que é perda de tempo. No fundo, fazer o certo hoje em dia é o novo punkrock.

    Ergui uma sobrancelha, sem entender direito.

    — Punkrock?

    — É. Ser punk nunca foi só sobre música alta e cabelo colorido, mas sim sobre olhar pro sistema e falar vai se foder. — Ela cruzou os braços, e seu olhar perdeu-se para algum ponto distante no corredor. — O mundo adora um herói, desde que ele lute contra monstros imaginários. Quando a luta é contra algo real, todo mundo vira as costas. 

    Respirou fundo e voltou a me encarar.

    — Bondade de verdade é tipo isso. Punk. Só faz o que precisa, mesmo que ninguém entenda.

    Ainda me sentia confuso, apesar de haver algo no seu jeito que me cativava. 

    A voz de Lyra soava mais real devido à simplicidade e convicção com que falava.

    — Você acredita nisso mesmo? 

    O canto da sua boca curvou-se num meio sorriso. 

    — Se não acreditasse, já estaria lá fora, rindo das piadinhas e fingindo que não vejo as merdas que acontecem. — Esticou as mãos na altura do pescoço, com os pulsos curvados. — A gente é ensinado que bondade é sinônimo de fraqueza ou se importar é ser trouxa. Mas o mundo já tem gente escrota demais, Simon. O que falta é gente disposta a não virar mais um.

    As palavras caíram sobre mim com um estranho sentimento de leveza e brutalidade.

    Lyra empurrou o pé contra a parede e afastou-se ligeiramente. A garota olhava para a parede oposta e eu o segui. Era mais  um daqueles anúncios da U.E.C colados no mural da escola: PROTEJA-SE: DENUNCIE ATIVIDADES MEPHISTO, em letras garrafais, com o número da agência. A arte mostrava um agente estilizado. Ele tinha cabelos loiros e olhos vermelhos luminosos. Era a mesma imagem que via em todos os lugares, mas, descascando nas bordas, ela ali parecia mais uma ameaça do que um real aviso.

    — Até a U.E.C, com todo seu discurso de proteger a sociedade, age mais como zelador de um sistema podre do que como agente de mudança. Eles aparecem depois que a casa já pegou fogo, mas nunca questionam quem tá vendendo os fósforos.

    — Não dá pra defender eles.

    — Não defendo os excessos, mas defendo a necessidade. —  Balançou a cabeça, voltando a olhar-me. — Sonho em entrar lá um dia, porque reclamar é fácil, Simon. Difícil é vestir a armadura e tentar consertar as coisas de dentro. 

    Um breve riso involuntário escapou-me.

    — Caramba, boa sorte com isso. 

    O rosto de Lyra fechou-se instantaneamente. Seus olhos passaram de um brilho convicto para uma sobriedade gelada.

    — É. Boa sorte. Todo mundo quer ser esperto o suficiente para apontar por que os sonhos dos outros são impossíveis, mas ninguém quer admitir que tentar ser humano decente é a revolução mais difícil que existe.

    Eu notei o equívoco no momento em que suas palavras foram proferidas.

    — Espera, não… — Os meus dedos começaram a se contrair de forma involuntária. — Lyra, não foi isso. Não tô zoando seu sonho.

    — Então foi o quê? 

    — É que… hã, a U.E.C… meu tio trabalhava para um dos subcontratados deles. Ele dizia que o sistema é feito para moer gente idealista. — Olhei para o cartaz novamente, depois para ela. — Tenho medo por você. Não deles, mas do que eles podem fazer com alguém que ainda acredita em consertar as coisas.

    A tensão nos ombros de Lyra diminuiu um pouco. A serenidade deu lugar à compreensão em seus olhos.

    — Acho que tentei ser esse tipo de pessoa, e deu errado. Não porque ser decente seja errado, mas porque o mundo… — Minhas palavras traíram-me, mas ela já entendia.

    — Não existe dar errado, existe tentar e continuar tentando, mesmo quando o resultado não compensa. — Um leve sorriso contornou seus lábios. — E sim, o sistema é uma máquina de moer gente mesmo, mas talvez esteja na hora da gente parar de ser grão de trigo e virar um pouco de areia na engrenagem.

    Triiim!

    O toque estridente do sinal nos trouxe de volta à realidade.

    — Merda… — Lyra balançou a cabeça num leve arquejar de lembrança. — Eu tinha dito pro senhor pro professor que não ia demorar. Agora já tô com uma falta garantida.

    — Pelo menos foi por uma boa causa.

    — Espero que ele pense o mesmo. — Deu um passo para trás, sem quebrar o contato visual. — Foi bom conversar contigo, Simon.

    — É… — Assenti, sem saber o que responder de verdade. — Foi bom.

    — Não deixa o mundo te convencer de que ser bom é um erro.

    A menina levantou uma mão em despedida e recuou pelo corredor até desaparecer na esquina que levava às escadas.

    Fiquei ali.

    O intervalo, com sua liberdade desorganizada, se espalhava pelos corredores, mas eu permaneci no mesmo lugar, sem conseguir pensar em outra coisa.

    Aquela conversa me deixara com um sentimento vago e doloroso, relacionado à ideia de bondade, mesmo que eu tentasse me convencer de que já não fazia mais sentido acreditar nela.

    “Bondade.”

    Palavra pequena demais para tudo o que tentam enfiar dentro dela.

    Toquei na borda do bolso e senti o contorno do objeto que lá continuava guardado.

    Anteriormente, considerava-o uma opção que não tinha alternativa. Todavia, naquele momento, aquilo não significava mais do que um símbolo inútil de quem pensara errado demais.

    “Acho que ela tá certa.”

    Uma batida forte no ombro me trouxe de volta à realidade; outro aluno passou por mim sem nem olhar para mim; para piorar, o segundo aluno me deu uma cotovelada enquanto ria com seus amigos.

    Naquela situação, eu teria ficado com raiva, teria pensado em revidar ou em provar algo, mas desta vez não me senti dessa forma. 

    O mundo deles continuava o mesmo, apenas mudando a forma como se processavam as coisas, que continuavam mesquinhas, automáticas e cruéis por uma questão de conveniência.

    O meu tinha mudado quando rendi-me e deixei-me levar pela maré humana, sem opor resistência.

    Por vezes, para sermos bons, temos de permanecer de pé, não importa o que o mundo inteiro tente fazer para nos derrubar. Tal não se deve a orgulho ou fé, visto que desistir tornaria-me igual a todos os outros, e eu estava farto de ser como todos os outros.

    Nunca pensei que uma palavra pudesse me ensinar mais sobre moral do que qualquer sermão que já ouvi.

    Caminhei até a lixeira no canto do corredor. Deslizei a mão pelo tecido do bolso até sentir o resfriamento do metal da agulha. 

    Uma agulha; pequena, delgada, virtualmente inofensiva. Até que seja tarde demais, esse era o tipo de coisa que o mundo ignorava.

    Girei-o entre os dedos e observei a luz a dançar na ponta. Vi nele, mais uma vez, o mesmo brilho inocente que vi no dia em que a minha avó o deixou cair na cozinha, sem saber o que eu pretendia fazer com ele contra aqueles dois.

    Fiquei envergonhado ao relembrar a minha avó, uma vergonha sutil que se sente quando se percebe tardio o que se poderá tornar.

    O metal tilintou quando toquei a borda da lixeira.

    O ar, de repente, tremeu.

    — O quê?

    Um estrondo ensurdecedor retumbou do outro lado da escola a ponto de fazer tremer as janelas.

    Olhei para o corredor. Luzes piscaram uma vez, depois duas. Abaixo dos meus pés, o chão também estremeceu.

    Começaram a sobrepor-se sons de cadeiras a serem arrastadas, portas aos murros e gritos estridentes.

    — Corre! — Uma voz surgiu ao longe, engolida pelo pânico. — Um Mephisto tá atacando!

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