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    Os dias que se seguiram foram uma prova de paciência que Hermes não possuía. 

    A praga da apatia e da euforia vazia havia se infiltrado em cada aspecto da vida em Thasos, transformando a simples tarefa de reabastecer em um exercício de frustração. 

    As bancas no mercado ficavam vazias por horas, seus donos ausentes em alguma “celebração”. 

    O padeiro, quando finalmente encontrado, tinha olhar distante e lhes vendeu pães duros de dias atrás sem sequer notar. A cidade não estava apenas doente, estava se desfazendo, negligenciando a si mesma em favor de uma devoção cega ao seu novo Sacerdote.

    Magno, por sua vez, continuava sua caçada por informações, cada vez mais sombrio a cada retorno. Hermes via a dor por trás da raiva do gatuno, mas a urgência de sua própria missão o tornava um conselheiro frio. Para ele, cada dia preso naquela ilha era um dia mais distante de Circe, uma eternidade longe de suas respostas.

    O ponto de ruptura veio em uma tarde quente e abafada. Enquanto caminhavam por uma rua residencial mais calma, eles presenciaram a cena que envenenaria de vez o ar de Thasos.

    Uma jovem mãe estava ajoelhada em frente ao seu filho, um menino de talvez cinco anos que se agarrava à sua túnica com dedos assustados. O rosto da mulher, no entanto, não era de tristeza, mas de um êxtase radiante.

    — Você deve se comportar, meu pequeno. Fique em casa e não abra a porta para ninguém.

    — Mas… para onde você vai, mamãe? — a voz do menino era um fio trêmulo. Seus olhos se tornaram brilhantes, úmidos. E então ele voltou a perguntar entre soluços. — Vai embora que nem o papai, não vai?

    — Claro que não meu pequeno! O Sacerdote me convocou. É uma oportunidade única. — Ela disse, os olhos brilhando com um fervor fanático. — Voltarei em alguns dias, e trarei a bênção dele para nós

    Ela beijou a testa do filho, levantou-se e se afastou, juntando-se a um pequeno grupo de outros cidadãos de olhos vidrados que caminhavam em direção às colinas, sem olhar para trás uma única vez. A criança ficou parada na rua, observando-a partir, o rosto confuso e choroso.

    Magno ficou paralisado, a mão fechada em um punho tão forte que os nós dos dedos ficaram brancos. Aquela imagem — uma mãe abandonando seu filho por uma promessa vazia — era um espelho cruel de sua própria perda, uma profanação do vínculo que ele mais valorizava.

    De volta ao barco, a tensão explodiu.

    — Você viu aquilo, Hermes? — Magno rosnou, a voz baixa e perigosa. — Ela o deixou! Como se ele fosse um saco de grãos! 

    Hermes, que também havia testemunhado a cena, permaneceu de costas, ajeitando uma corda com uma precisão desnecessária. A cena o perturbara mais do que admitiria, não por compaixão, mas pela ineficiência e pela loucura que aquilo representava. Era um obstáculo.

    — Já temos suprimentos suficientes para alguns dias. Partiremos com a maré da manhã — declarou Hermes, a voz fria, evitando o olhar de Magno.

    — Partir? — Magno se aproximou, incrédulo. — E simplesmente deixar que isso continue? Deixar que ele tire mais famílias de suas crianças?

    — Os problemas desta ilha não são nossos! — Hermes se virou, a frustração finalmente transbordando. — Nossa busca, Magno! Nós precisamos seguir e encontrar pistas sobre Circe ou as moedas! Não podemos perder tempo com coisas assim! Estamos em busca de algo maior.

    O impasse entre eles era um abismo. De um lado, a dor pessoal e a justiça crua de Magno. Do outro, a urgência desesperada e o foco implacável de Hermes. 

    O silêncio que se instalou foi quebrado apenas pelo som distante de um cântico estranho vindo das colinas, um lembrete de que, enquanto eles discutiam, o rebanho continuava a marchar em direção ao seu pastor.

    …………

    O sol poente sangrava no horizonte, manchando o mar e o céu com tons de laranja e púrpura. Hermes estava sozinho no cais, verificando pela terceira vez as amarras do veleiro. Cada nó que apertava era uma forma de canalizar a fúria e a frustração que ferviam dentro dele. Magno havia se retirado para o interior do barco, um silêncio pesado agora ocupando o lugar de sua raiva, o que era, de alguma forma, ainda mais perturbador.

    A cidade se aquietava. As sombras se alongavam, engolindo as vielas. Hermes olhou para a colina que se erguia sobre o porto, de onde o cântico fraco e intermitente ainda podia ser ouvido, e um rosnado baixo escapou de sua garganta. 

    Aquele “Sacerdote” e sua loucura haviam custado a eles um dia precioso. Amanhã, ao amanhecer, eles partiriam, com ou sem todos os suprimentos. Aquela ilha e seus demônios ficariam para trás.

    Foi quando ouviu os passos.

    Não eram os passos apressados de um comerciante atrasado, nem os arrastados de um bêbado. Eram calmos, ritmados e se aproximavam com um propósito. Hermes se endireitou, a mão descendo casualmente para perto do cabo de sua xiphos.

    Da penumbra do cais, a figura emergiu. Era um homem alto, de postura confiante, vestido com uma túnica simples, de um roxo escuro, mas de bom corte. Um sorriso sereno estava em seus lábios, e um tapa-olho de couro escuro cobria seu olho esquerdo, conferindo-lhe um ar de mistério e autoridade. Uma coroa de louros ornamentava seus cabelos encaracolados e vermelhos, dando a ele um quê de sacro.

    Hermes o encarou, o corpo tenso, preparado para um confronto. Esperava acusações, ameaças veladas, talvez até um desafio. Mas o homem parou a poucos metros, e a expressão em seu rosto não era de hostilidade, mas de reconhecimento. Um reconhecimento cúmplice.

    O homem inclinou a cabeça, e quando falou, sua voz era baixa, quase um segredo compartilhado entre os dois.

    — Vejo que você também carrega uma bênção do fim.

    A sobrancelha de Hermes se ergueu em uma confusão sutil. “De onde surgiu esse maluco? Bênção do fim?”

    — Hum… — O homem misterioso se aproximou, o olhar uno semicerrado em uma análise delicada. — Seria… Tânatos?

    Hermes sentiu sua respiração parar por um momento, o ar se tornando uma barreira em sua garganta. Ele congelou, a mente girando, tentando processar o que acabara de ouvir. 

    O homem sorriu, interpretando o silêncio de Hermes como uma confirmação cautelosa.

    — O Mestre me designou para preparar a colheita nesta ilha. O rebanho está quase maduro. — Ele falou em um tom íntimo enquanto se virava para as colinas com um olhar sereno. — Seria você um emissário enviado para ter certeza de que estou fazendo bem o meu trabalho?

    O olhar do desconhecido se voltou lentamente para o deus caído e um sorriso se formou, como se a resposta para a questão fosse desnecessária de tão óbvia.

    — Pensei que você fosse mais alto, cheio… — O homem tinha uma expressão de dúvida, mas a última palavra dita fez surgir em seu rosto um curto sorriso. — Mas não faz mal…

    Um calafrio percorreu a espinha de Hermes, um frio que nada tinha a ver com a brisa do mar. O problema local que ele desprezara, o falso profeta que considerara uma mera distração… estava diretamente ligado à conspiração que o assombrava. 

    Aquele homem não era um lunático qualquer. Ele era um deles. Um servo do mesmo poder sombrio. E o pior de tudo: ele achava que Hermes era seu aliado.

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