Índice de Capítulo

    E aí, pessoal! Antes de vocês começarem, um aviso rápido: este primeiro arco é o que eu chamo de “slow burn”. Eu ainda estava aquecendo os motores e focando em construir o clima e o sofrimento do Hermes. É mais introspectivo e um pouco mais lento.

    Se você está aqui pela ação e pela fantasia sombria mais pesada, peço só um pouquinho de paciência! A partir do segundo arco, a história engata uma nova marcha e o ritmo fica muito mais próximo do que eu quero para a série. Acredite, a preparação vale a pena.

    Valeu pela chance e aproveitem a leitura!

    Olímpia. A Cidade-Estado conhecida por ser a mais próxima da morada dos deuses, o Monte Olimpo.

    Fora construída aqui, há muito tempo, quando ainda se acreditava que por estar perto do grande monte sagrado, estariam protegidos pela presença dos deuses.

    Hoje, já não se crê mais nisso, e a cidade antes considerada um ponto de adoração em especial, agora é apenas mais uma das tantas outras pólis. Talvez um ponto de visita para sacerdotes e peregrinos excêntricos.

    Ela não possui muito de diferente em relação às outras grandes Cidades-Estados. Uma enorme cidade circundada de uma muralha de pedra. Do lado de fora das muralhas, algumas poucas fazendas espalhadas por entre os campos sem florestas.

    Essa noite parece tranquila, e o céu está lindo, realçando a brilhosidade das constelações com escuridão do céu. Poucas nuvens, pouco barulho. A via Láctea, obra prima de Hércules, ornamenta o firmamento para o deguste dos admiradores de estrelas.

    A guarda da cidade caminha por entre os casarões da parte alta e nobre, a Acrópole, enquanto alguns outros se concentram nos entornos das muralhas.

    Em cima de um dos postos sobre os grandes muros, dois guardas presenciam o passar da noite de maneira relaxada. Um recruta de aparentemente dezessete anos, e um guarda mais velho que aparenta estar nos seus quarenta e poucos.

    — É, parece que não vamos ter nada para fazer hoje de novo — o jovem afirmou, o queixo apoiado na mão, o olhar perdido nas estrelas.

    — Que os deuses te ouçam, garoto — respondeu rispidamente o guarda mais velho, sem tirar a atenção de um pedaço de madeira que esculpia com uma faca afiada.

    — O senhor acredita mesmo neles, Sargento? — o mais jovem se virou para ele, surpreso.

    — É só um jeito de falar — retrucou o velho. — Uma praga que a gente pega dos nossos pais.

    O rapaz suspirou, um pouco desapontado. — Meu avô jurava ter visto um ciclope perto de Neméia uma vez. Contava histórias de heróis e monstros…

    — E o único monstro que eu vi este mês foi o cobrador de impostos do Arconte — o velho o cortou, forçando a faca na madeira. — Acredite, garoto, os deuses estão ocupados demais para se importarem conosco. Que existam, que não existam, que se fodam se quer saber.

    O jovem voltou a encarar o céu, o desânimo pesando em seus ombros. A reação do sargento era a mais comum. As grandes histórias dos heróis agora eram apenas isso: histórias.

    Foi em meio a seus devaneios que ele percebeu algo estranho. Um feixe de luz cortando o céu noturno, movendo-se com uma velocidade surpreendente em direção ao Monte Olimpo. Ele estreitou os olhos, e então, um reconhecimento animado o fez pular da cadeira.

    — SEN-SENHOR! OLHE! É O MENSAGEIRO! É HERMES! — Ele apontou para o rastro dourado com um entusiasmo que não sentia há muito tempo.

    — Pare de baboseira e fique quieto, recruta — o velho resmungou, sem se dar ao trabalho de olhar.

    — Não, é sério! O senhor precisa ver! Veja! Veja!

    Desesperado para provar seu ponto, ele correu e segurou os ombros do guarda mais velho, balançando-o. O movimento brusco fez a faca do homem deslizar, abrindo um corte em sua mão.

    — Argh! Seu filho de uma- — o sargento se levantou com uma careta de dor, o rosto se contorcendo em fúria. Antes que o recruta pudesse se explicar, um soco violento o atingiu no rosto, arremessando-o contra a parede de pedra da muralha.

    — NÃO QUERO SABER DE DEUSES MORTOS! — o velho urrava, o rosto vermelho de raiva. — Se tem tanto tempo para olhar para o céu, então pegue um esfregão e vá limpar a latrina! E NÃO VOLTE ANTES DE DEIXÁ-LA BRILHANDO!

    — S-sim, senhor! Sinto muito! — O rapaz se levantou de maneira desajeitada e correu para as escadas, fugindo da fúria de seu superior.

    O sargento observou-o sumir, resmungando e procurando um pano para o corte. De repente, sentiu uma corrente de vento passar por ele, um arrepio subindo por sua espinha. Ele se virou, assustado, na direção que o garoto apontara.

    Não havia nada. Apenas o céu quieto e estrelado.

    — Rum. Hermes. Tch! — Ele resmungou com zombaria, voltando a se sentar.

    Mas, por um instante, o cinismo em seu rosto deu lugar a uma sombra de dúvida, enquanto o eco de uma presença divina ainda pairava, invisível, no ar da noite.

    Longe da muralha, o rastro dourado cortava o céu noturno. Para os poucos mortais que o avistavam, era uma estrela cadente, um presságio. Para ele, era apenas o caminho de casa.

    Hermes, o deus dos mensageiros, movia-se pelo ar não com o esforço de um pássaro, mas com a certeza de uma força da natureza. O vento era seu domínio, um rio invisível pelo qual ele navegava. Abaixo, o mundo dos homens era um tapete escuro, pontilhado pelas luzes fracas de fogueiras e cidades distantes. De sua altitude, ele via as rotas comerciais como veias brilhantes na terra, sentia as mudanças de pressão no ar que anunciavam tempestades a dias de distância. Era seu ofício.

    Em sua mão direita, o Caduceu repousava, inerte. Na esquerda, ele ergueu uma pequena jarra de metal, bebendo o último gole de ambrósia. O néctar divino, que deveria ter o gosto da eternidade, hoje parecia insípido. Com um gesto displicente, ele arremessou a jarra vazia, que desapareceu na escuridão em direção a uma floresta abaixo.

    Ele acelerou, o rastro dourado se intensificando. A convocação de Zeus ecoava em sua mente. “Urgente”. Era uma palavra que seu pai não usava levianamente.

    No entanto, havia um silêncio perturbador em torno do chamado. Ele havia entregue a mensagem a todos, de Ares em seus campos de treinamento a Afrodite em seus templos. Nenhum deles sabia o motivo. Nem mesmo Poseidon, cujo conhecimento das profundezas rivalizava com o dos céus.

    Isso o incomodava. Hermes era o deus dos segredos, das informações que corriam entre mundos. 

    Sua mente derivou para a última vez que sentira essa mesma tensão no ar do Olimpo. A Titanomaquia era história antiga, mas a guerra contra Tifão era uma cicatriz recente. Ele ainda se lembrava do terror nos olhos dos outros deuses, da fúria desesperada de Zeus, da visão do colosso cuja cabeça tocava as estrelas. Lembrava-se do cheiro de caos.

    O ar desta noite tinha um quê daquele mesmo cheiro.

    Absorto em seus pensamentos sombrios, ele não percebeu o brilho familiar do Monte Olimpo se aproximando. Quando sua mente retornou ao presente, ele já havia ultrapassado seu destino, sua velocidade o traindo por conta de sua distração. Com um suspiro irritado consigo mesmo, ele freou no ar, o corpo vibrando com a energia contida, e refez o caminho.

    Pousou suavemente no topo do monte, no centro de um enorme altar de mármore e pedras negras. O ar ali era frio e rarefeito. 

    Ele esperou, a impaciência uma velha inimiga. Para um ser feito de movimento, a quietude era uma forma de tortura. Pendurou o Caduceu na cintura e juntou as mãos, fechando os olhos. Era proibido subir ao Olimpo sem ser convidado.

    De repente, o céu, antes limpo, respondeu. Um raio desceu, não com fúria, mas com precisão cirúrgica, envolvendo seu corpo em uma luz ofuscante. Houve um estrondo que ecoou pelas montanhas e, quando a fumaça se dissipou, o altar estava vazio.

    Acima do Monte Olimpo, numa espécie de Ilha flutuante, está o Olimpo. A morada dos deuses.

    A ilha, que de alguma forma flutua, possui construções muito bem feitas que são de uso dos deuses, tanto para fins de lazer quanto para outros.

    Coliseus, grandes prédios, casas e até mesmo jardins enormes. Todos os elementos reunidos dão a esse lugar um aspecto puro e divino.

    No que parece ser a entrada da grande ilha flutuante, Hermes surgiu. Ele ajeitou a túnica, não para limpar o pó, mas como um ator se preparando para entrar no palco. Compôs o rosto, forçando o vinco de preocupação a se transformar em seu sorriso habitual, a máscara de irreverência que todos esperavam dele. 

    Logo, percebeu uma figura familiar um pouco à sua frente, sentado no fragmento de uma pilastra de costas, tocando uma lira. 

    Um rapaz de cabelos loiros e porte magro e esbelto. Era Apolo. Mas a melodia que flutuava no ar não era uma de suas composições alegres ou épicas. Era uma canção baixa, melancólica, cheia de notas dissonantes que pareciam se perder na vastidão do Olimpo.

    Hermes se aproximou em silêncio, a curiosidade superando a vontade de fazer uma piada. Em vez de um peteleco, ele pousou a mão suavemente sobre as cordas da lira, abafando o som triste.

    Apolo se sobressaltou, virando-se com os olhos amarelos arregalados. Ao ver o irmão, sua expressão não foi de raiva, mas de um alívio tenso.

    — Hermes…

    — Que melodia fúnebre, irmão — disse Hermes, o sorriso sacana em seu rosto não alcançando totalmente seus olhos. — Alguém morreu e esqueceram de me avisar?

    — Hoje não, Hermes. Por favor — Apolo respondeu, a voz baixa e preocupada. — O ar está pesado. Sinto algo errado.

    — Errado? — Hermes ergueu uma sobrancelha, pegando a lira da mão de um Apolo surpreso demais para reagir. — Você sempre foi o mais dramático de nós. O que te aflige? O pai finalmente proibiu suas poesias medíocres?

    Ele segurou a lira como se fosse tocá-la, um gesto de provocação para forçar uma reação genuína.

    — Não é brincadeira! — Apolo se levantou, a angústia clara em seu rosto. — Ninguém sabe o motivo da reunião. Ninguém. Nem mesmo Atena. Meu pai… ele está diferente. Há uma fúria nele que não sinto desde a guerra contra os Titãs. E você chega atrasado, como sempre.

    Antes que Hermes pudesse retrucar, uma terceira voz, fria como o mármore, cortou o ar.

    — Ele tem razão em se preocupar. E você, como sempre, só se preocupa consigo mesmo.

    Os dois se viraram. Hera estava parada ali, seus olhos púrpuras os avaliando com um desgosto evidente. Sua presença era imponente, e a atmosfera, que já era tensa, tornou-se gélida.

    — He-Hera… — Apolo gaguejou, inclinando a cabeça em um gesto de respeito.

    Hermes, por sua vez, apenas ofereceu um sorriso charmoso, embora sentisse um calafrio. — Que bom vê-la, madrasta. Sempre radiante.

    Hera o ignorou. — Apressem-se. Seu pai os espera. E ele não está com humor para as suas insolências.

    Ela se virou e se afastou, sua túnica deslizando silenciosamente pelas pedras, uma rainha em seu domínio.

    Apolo se virou para Hermes, a preocupação agora tingida de pânico. — Viu? Eu te disse. Algo muito sério está para acontecer.

    Hermes devolveu a lira para o irmão, o sorriso finalmente desaparecendo de seu rosto, substituído por uma máscara de ponderação. Ele deu um tapinha no ombro de Apolo.

    — Então é melhor não o deixarmos esperando mais — disse ele, a leveza em sua voz agora soando forçada até para si mesmo.

    Enquanto caminhavam em direção ao coliseu, a melodia sombria de Apolo ainda ecoava na mente de Hermes, um presságio terrível do que estava por vir.

    O ar dentro era frio e imóvel. Diferente das outras reuniões, marcadas por conversas e música, esta era dominada por um silêncio pesado e opressivo. Os deuses não conversavam; estavam parados como estátuas em seus lugares designados, seus rostos máscaras de pedra.

    Nos tronos de mármore, a tensão era palpável. Ao lado do trono vazio de Hades, Poseidon, o deus dos mares, batia os dedos impacientemente. Seus cabelos negros já salpicados de cinza e seus olhos azuis profundos eram uma tempestade contida, e a grande cicatriz que cruzava seu peitoral parecia se contrair a cada segundo de espera. Hera, com seus longos cabelos negros e olhos púrpuras e afiados, permanecia de pé ao lado do trono central, a mão no ombro do marido, o rosto uma máscara de desgosto régio.

    Com o sorriso finalmente desaparecido do rosto, Hermes adentrou o salão, sentindo o peso de dezenas de olhares divinos sobre si. Ele e Apolo tomaram seus lugares, e um silêncio ainda mais profundo se instalou.

    Zeus se levantou. Sua figura era imponente, a longa barba branca caindo sobre um peito forte e marcado pelo tempo. Seus olhos, brancos e sem pupilas, varreram a assembleia, parecendo conter a fúria de uma tempestade represada.

    — Chamei-os aqui para tratar do mundo mortal. — disse ele, a voz um trovão contido. — A fé dos homens, a fonte de nossa influência, diminui a cada dia.

    — E nos chamou até aqui apenas para afirmar o óbvio, irmão? — Poseidon retrucou, a impaciência vencendo a prudência.

    — Não — a voz de Zeus tornou-se um fio de gelo. — A humanidade nos esquece, mas não se enganem. A fé deles não desaparece por acaso. Ela está sendo… corroída.

    Ele fez uma pausa, deixando o peso de suas palavras assentar.

    — Sinto uma energia que não sentia desde que acorrentei meu pai e os Titãs no abismo. Uma energia profana, do próprio Tártaro, está vazando para o mundo dos mortais.

    Um murmúrio de choque e descrença percorreu a arena.

    — Impossível! — bradou Poseidon, levantando-se. — Os portões do Tártaro estão selados! Hades os guarda. — Ele afirmou o braço erguido na direção do trono vazio de seu irmão.

    — Não é uma fuga, Tio. É uma fissura. Uma influência — a voz de Atena soou, calma e analítica. De pé, com seu escudo ao lado e a lança firme na mão, seus olhos castanhos pareciam dissecar o próprio ar, buscando a lógica na crise. — Alguém, ou algo, está criando uma ponte.

    — Então devemos esmagar essa ponte antes que mais alguma coisa a atravesse! — rosnou Ares. O deus da guerra, cujos olhos vermelhos queimavam com a promessa de violência, deu um passo à frente, seus longos cabelos ruivos balançando sobre o peitoral coberto de cicatrizes.

    ­— Que travessura… — uma risada úmida e abafada veio de um canto. Dionísio, barrigudo e com o rosto corado, ergueu sua taça de vinho, uma coroa de uvas escuras pendendo sobre seus cabelos. — Talvez eles nunca estiveram totalmente presos…

    Apolo, pálido, ignorou o comentário bêbado e se virou para o pai. — Quem ousaria agir contra o Olimpo, pai? Quem nos trairia?

    O olhar de Zeus, branco e elétrico, varreu a arena.

    — Um oráculo me trouxe um aviso. Um fragmento de uma profecia antiga, quase esquecida. — Sua voz baixou, tornando-se um segredo sombrio. — Ela diz: “A nota do armagedom anunciará sua chegada quando o arauto tiver, finalmente, sua última mensagem enviada.”

    Os murmúrios mais uma vez tomaram conta do salão. 

    Ártemis cochichou algo para si mesma com um rosto incomodado, a mecha branca de seu curto cabelo negro caindo um pouco sobre os olhos. Afrodite enrolava uma mecha de seu cabelo ruivo com os dedos, seus olhos verdes tensos.

    Apolo engoliu em seco, a pergunta entalada em sua garganta como se não quisesse verdadeiramente fazê-la.

    — Ma-mas quem? Qual arauto? — A questão saiu baixa, quase um sussurro.

    O deus dos raios não se fixou em um inimigo distante, nem em uma conspiração nas sombras. Seus olhos pararam, frios e pesados como uma sentença de morte, em seu próprio filho.

    — Um arauto — continuou Zeus, cada palavra uma pedra caindo em um poço. — Um que viaja livremente entre os reinos. Um que conhece os segredos do Olimpo e do submundo. Um que poderia, sob o disfarce de seu ofício, entregar uma mensagem aos nossos inimigos acorrentados, abrindo a fissura que nos ameaça.

    O silêncio que se seguiu foi absoluto. Todos os olhares se viraram para Hermes, o deus de quíton branco e feições elegantes. Apolo o encarou, a boca entreaberta em horror.

    — Hermes é o traidor! — Um trovão resvalou no céu limpo de nuvens com a afirmação de Zeus.

    Hermes, alvo de todo o panteão, encontrou o olhar furioso de seu pai. E, para o completo espanto de todos, um sorriso lento e indecifrável tocou seus lábios, um sorriso que não continha alegria, mas a descrença de que realmente havia escutado aquilo.

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