Índice de Capítulo

    O mundo se movia em câmera lenta.

    Uma lança de ponta de bronze passou a centímetros do nariz de Hermes. Ele a viu girar no ar, viu as farpas na madeira do cabo, viu o suor voando do braço do soldado troiano que a arremessara.

    Para qualquer outro, aquele seria o momento da morte. Para Hermes, foi apenas um instante entediante.

    Ele deu um passo para o lado. O movimento foi fluido, sem esforço, sem o peso da gravidade ou a dor nos músculos que o atormentava há meses.

    A lança passou pelo espaço onde sua cabeça estava um milissegundo antes e cravou-se no escudo de um hoplita grego atrás dele.

    Hermes olhou para suas mãos. Elas brilhavam. Não havia sujeira, não havia calos, não havia cortes. Sua pele emanava uma luz dourada suave.

    Ele fechou o punho e sentiu a força de uma montanha comprimida em seus dedos.

    — Eu sou… eu.

    A voz saiu potente, sem intenção, ressoando com autoridade divina, abafando o som do aço colidindo ao seu redor.

    O caos da batalha o envolvia. Milhares de homens gritavam, morriam e matavam sob o sol escaldante da Ásia Menor. O cheiro de cobre e entranhas abertas era forte, mas não o enjoava. Era um cheiro familiar. O cheiro de oferenda.

    Hermes respirou fundo. O ar entrou em seus pulmões como néctar, revigorando cada célula de seu ser.

    Uma dúvida gelada, no entanto, perfurou a euforia.

    E as minas? E a fome? E a dor de ver Teseu sangrar? E o sorriso triste de Magno?

    Aquelas memórias pareciam distantes agora, como um pesadelo febril que se desfaz ao acordar.

    “Será que tudo aquilo foi uma ilusão?”, pensou Hermes, desviando casualmente de uma espada que buscava seu pescoço. “Será que eu adormeci no Olimpo e sonhei que era mortal?”

    Ele olhou ao redor, buscando se localizar.

    Os gregos estavam recuando. As linhas de defesa estavam quebradas. Os troianos, liderados por um guerreiro de penacho vermelho em seu capacete, avançavam como uma maré de fogo em direção aos navios negros encalhados na praia.

    Heitor. O Príncipe de Tróia estava massacrando os aqueus.

    Hermes franziu a testa. Ele conhecia aquele dia. Lembrava-se dele como se fosse ontem. Das suas memórias estranhas, daquelas visões que não entendia.

    Era o dia da Ira. O dia em que Agamenon, em sua arrogância, ofendeu o maior dos guerreiros. O dia em que a maior espada da Grécia permaneceu embainhada por orgulho.

    — Aquiles não está aqui — murmurou Hermes.

    Ele sabia o que viria a seguir. Athena sussurraria no ouvido de Pátroclo. O garoto vestiria a armadura do primo. Heitor o mataria. E a guerra deixaria de ser uma disputa por honra e se tornaria um abatedouro movido por vingança.

    E depois… o fim. O fim da Era dos Heróis. O silêncio dos Deuses. A queda do Olimpo.

    Hermes viu tudo isso em sua mente. Ele entendeu, uma profecia horrível, confiada a ele pelo destino.

    — Não — disse ele. — Não desta vez.

    Ele flexionou os joelhos e impulsionou o corpo para cima.

    O chão explodiu sob seus pés, criando uma cratera na terra batida.

    Hermes subiu. O vento cortou seu rosto. Em segundos, o campo de batalha virou um tabuleiro de peças minúsculas. O barulho dos gritos se tornou um zumbido distante.

    Ele voou sobre a planície, as sandálias aladas criavam açoites de vento atrás de si.

    À frente, as muralhas inexpugnáveis de Tróia se erguiam, desafiando o céu, e no topo da torre mais alta, duas figuras brilhavam com uma luz que ofuscava o sol.

    Hermes pousou na amurada de pedra. O impacto foi silencioso, suave como uma pena.

    Apolo e Ártemis se viraram.

    O Deus do Sol estava magnífico. Seus cabelos loiros pareciam feitos de fios de ouro derretido. Ele segurava um arco prateado, relaxado, com um sorriso de canto nos lábios perfeitos. Uma visão estranha de seu irmão ensanguentado apareceu de repente, mas Hermes a afastou com um abano de cabeça.

    Ao lado dele, Ártemis mantinha a expressão fria e distante, seus olhos prateados focavam na carnificina lá embaixo.

    — Hermes! — Apolo saudou, sua voz soava como música. — Achei que estivesse neutro nesta disputa. Veio assistir ao triunfo de Heitor? Minha mira está impecável hoje.

    Ele apontou para um soldado grego que corria lá embaixo. Puxou a corda do arco sem flecha, e soltou.

    Lá embaixo, o soldado caiu, morto por uma flecha invisível de peste e calor súbito. Hermes sentiu um arrepio. Por algum motivo de… repulsa?

    As memórias plantadas em sua cabeça faziam-no lembrar de como era estar lá embaixo. De como era ser o alvo.

    — Precisamos parar isso, Apolo — disse Hermes, sem rodeios.

    O sorriso de Apolo vacilou por um instante, mas logo voltou, mais cínico.

    — Parar? Agora? A festa está apenas começando.

    — Isso não é uma festa. É um suicídio. — Hermes deu um passo à frente. — Se continuarmos com isso, se deixarmos essa guerra consumir tudo… os mortais vão se cansar.

    Ártemis riu. Um som seco e curto.

    — Cansar? Eles vivem para isso, irmão. Olhe para eles. — Ela apontou para o mar de corpos. — Eles nos imploram por vitória. Eles queimam hecatombes para que nós guiemos suas espadas. Eles amam a guerra tanto quanto nós.

    — Eles nos temem! — Hermes rebateu. — E o medo… o medo não dá lugar a nada virtuoso. Eu vi… eu tive visões.

    Apolo sorriu com a fala, e o interrompeu.

    — Que coisa irmão, achei que profecias fossem mais o meu estilo.

    Hermes franziu o cenho.

    — Isto é sério Apolo. Eu vi. Um mundo onde os templos estão vazios. Onde nossos nomes são apenas histórias para crianças, sem poder, sem prece. Um mundo onde nós caímos porque empurramos eles longe demais.

    Apolo suspirou, entediado. Ele apoiou o arco no ombro e olhou para Hermes com uma condescendência irritante.

    — Você anda trabalhando demais, Mensageiro. O estresse de carregar as palavras do pai está afetando sua mente. Visões de queda? Nós somos eternos. Isso aqui… — Ele gesticulou para a guerra. — É apenas um jogo. E os jogos têm regras.

    — As regras vão mudar — insistiu Hermes. — Se Aquiles entrar nessa guerra por vingança, o banho de sangue será irreversível. Tróia cairá, mas nós cairemos junto com as cinzas dela.

    — Tróia deve cair. É o destino — disse Apolo, voltando a olhar para o campo. — E Aquiles entrará. É inevitável.

    Hermes olhou para o irmão. Aquele rosto perfeito, aquela certeza inabalável. Ele percebeu que palavras não funcionariam. O orgulho divino era uma armadura mais espessa que as muralhas da cidade.

    — Talvez — disse Hermes, a voz baixa. — Mas não pelo motivo que você pensa.

    Sem esperar resposta, Hermes saltou da muralha e desapareceu como um feixe de luz. Apolo olhou para Ártemis e, com a boca torcida numa expressão de complacência, deu de ombros.

    Hermes mergulhou em direção ao acampamento grego, longe da linha de frente, onde os navios dos mirmidões estavam ancorados. O acampamento estava silencioso, em contraste com a batalha furiosa a quilômetros dali. Pousou diante da maior tenda, e entrou.

    O interior era decorado com peles de leão e armas de bronze polido. No centro, sentado em um banco de madeira, estava o maior dos guerreiros.

    Aquiles dedilhava uma lira. Seu rosto definido em ângulos perfeitos era belo e terrível. Seus olhos de um azul brilhante encaravam o nada entreabertos, queimando com uma raiva fria e contida. Os cabelos longos e loiros caiam sobre os ombros como a juba do Leão de Micéia.

    Ao vê-lo, Pátroclo, que estava sentado no chão polindo uma greva, levantou-se num salto, derrubando a peça de bronze.

    — Lorde Hermes! — exclamou o jovem, curvando-se.

    Aquiles não se levantou. Ele parou de tocar a lira e olhou para o deus com um interesse preguiçoso.

    — O Mensageiro dos Deuses em minha tenda — disse Aquiles. — Veio trazer ordens de Agamenon? Se for, pode levar a resposta na ponta da minha lança.

    — Não sirvo a Agamenon — disse Hermes. Sua presença e voz preencheram a tenda, fazendo o ar vibrar. — E não trago ordens. Trago um aviso.

    Aquiles ergueu uma sobrancelha.

    — Estou ouvindo.

    — Os gregos estão morrendo. Heitor está na praia. Em breve, ele queimará seus navios. E você ficará aqui, tocando música enquanto seu legado vira cinzas.

    — Que queimem — rosnou Aquiles. — Que Agamenon aprenda o preço de me desonrar.

    — O preço não será pago por Agamenon — Hermes olhou para Pátroclo. O garoto tinha os olhos arregalados, cheios de vontade de lutar, de ajudar seus compatriotas.

    Hermes voltou o olhar para Aquiles.

    — O preço será pago por aqueles que você ama.

    Aquiles ficou tenso. Seus dedos apertaram a lira com força.

    — O que você sugere, Deus? Que eu rasteje de volta para aquele rei sujo?

    — Não. — Hermes se aproximou. — Sugiro que você seja quem você é. Vá até a trincheira. Mostre-se. Não precisa lutar. Apenas sua presença, o brilho da sua armadura, fará os troianos recuarem. Eles temem você mais do que temem os deuses.

    Aquiles ficou em silêncio. A lisonja tocou sua vaidade, mas a lógica tocou seu orgulho.

    — Salve seu povo — continuou Hermes. — Sem se curvar ao rei. Vença a guerra com o medo, não com o sangue. E poupe… poupe a dor que virá se você esperar demais.

    Hermes tocou no ombro de Pátroclo levemente, um gesto sutil para que ele ficasse onde estava.

    — Não envie substitutos, Pelida. O destino não aceita cópias.

    Aquiles soltou a lira. Ele se levantou. Era alto, quase da altura de Hermes em sua forma divina.

    — Você fala de forma estranha hoje, Hermes. Há uma urgência em sua voz que não combina com a postura despreocupada de sempre.

    O guerreiro caminhou até a entrada da tenda e olhou para a fumaça preta que subia ao longe.

    — Agamenon não merece minha espada — disse Aquiles, baixo. — Mas meu povo não merece a morte.

    Ele se virou para Hermes.

    — Eu pensarei no que disse. Agora vá. Deuses me dão dor de cabeça.

    Hermes assentiu e saiu da tenda. Num piscar de olhos, estava de volta aos céus, observando o mundo lá embaixo.

    Se Aquiles aparecesse agora, Pátroclo não precisaria se disfarçar. Heitor recuaria. A guerra esfriaria.

    Hermes sentiu uma ponta de esperança. Talvez, apenas talvez, ele pudesse consertar o rumo das coisas e impedir que suas visões se concretizassem.

    Lá do alto, ele olhou novamente para a muralha de Tróia.

    Apolo ainda estava lá.

    E por um breve momento, Hermes teve a impressão de que o Deus do Sol não estava olhando para a batalha, mas sim diretamente para ele.

    Apolo estava sorrindo.

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