Capítulo 101 | A Escola dos Ratos
Magno rasgou uma tira da barra de sua túnica com os dentes e o som do tecido se partindo quebrou o silêncio tenso da cisterna por alguns instantes. Ele amarrou o pano ao redor do corte no antebraço, apertando o nó com uma careta, ignorando os quatro pares de olhos que o observavam como falcões.
A sua versão jovem ainda segurava a adaga de obsidiana com força suficiente para embranquecer os nós dos dedos.
— Você ainda está aqui — disse o garoto numa voz que oscilou entre a ameaça e a incerteza. — Já teve o que mereceu. Saia.
Magno apontou com o queixo para a mão do garoto, que ainda segurava a arma com os nós dos dedos brancos de tensão.
— Essa postura é ridícula — disse Magno, com desdém. — Olhe para o seu dedão. Está muito alto no cabo. Se você acertar uma costela ou um osso duro, sua mão vai escorregar direto para o fio. Vai cortar o próprio dedo fora antes de furar alguém de verdade.
— Não parece que tive esse problema com você. — O menino sorriu sarcasticamente na resposta, mas discretamente ajustou a pegada movendo o dedão para longe da direção da lâmina.
Magno testou o movimento do braço. Doía, mas não era nada que ele não tivesse sofrido antes. Ele olhou para o grupo, e sorriu de novo.
— E pra piorar… — apontou para o jovem com a adaga. — Pegou uma adaga preta de ferrugem, mas deixou a bolsa de moedas. Amador.
Começou a gargalhar.
O pequeno Magno franziu o nariz, irritado, e apertou o cabo da adaga. Os outros pareceram se encolher, inquietos, e se protegeram às costas dele.
— Não posso sair assim — disse Magno, com uma calma irritante. — Vocês vão acabar se matando antes que eu alcance o porto.
Ele se encostou na parede de pedra, cruzando os braços de forma relaxada.
— Vamos fazer um acordo. Vocês me deixam ficar aqui até meu braço curar. Em troca… — Ele fez uma pausa, olhando nos olhos de sua versão mais jovem. — Eu ensino vocês.
— Ensina o quê? — Tico perguntou, curioso, antes de levar uma cotovelada de Vareta.
— Ensino a roubar dos nobres da Cidade Alta — continuou Magno. — Não apenas sobras de peixe e pão duro. Ensino a entrar onde ninguém entra e sair sem ser visto. Ensino a serem reis, não ratos.
— Ensina o quê? — Tico perguntou, curioso, antes de levar uma cotovelada de Vareta.
— Ensino a roubar dos nobres da Cidade Alta — continuou Magno. — Não apenas sobras de peixe e pão duro. Ensino a entrar onde ninguém entra e sair de onde ninguém sai sem ser visto. Ensino a serem reis, não ratos.
O Jovem Magno franziu a testa, a ganância brilhou em seus olhos por um segundo num combate contra o orgulho ferido.
Foi então que Lia se pronunciou.
Ela saiu de trás do líder do bando, com os braços cruzados e o queixo erguido.
— Não — disse ela, firme. — Ele não é confiável, Mag.
Ela apontou um dedo acusador para o adulto.
— Olhe para ele. As roupas são estranhas, o tecido é caro demais para um vagabundo do porto. E ele carrega uma espada na cintura, mas luta com adagas. Ele mente. Ele é perigoso. Se ele ficar, vai nos matar ou nos vender enquanto dormimos.
O Jovem Mag hesitou, olhando para Lia e depois para o intruso. A lógica da garota era sólida.
Magno sorriu. Um riso genuíno de aprovação que veio acompanhado de palmas.
— A garota é esperta — disse ele, desencostando da parede e caminhando lentamente na direção deles. — Vocês deviam escutá-la.
Os quatro recuaram e Mag, mesmo com a adaga na mão, se curvou um pouco franzindo o cenho.
Magno andou ao redor deles, com as sobrancelhas crivadas e os olhos semicerrados no que parecia ser uma análise minuciosa de cada um deles. O grupo girava quase abraçado no próprio eixo, acompanhando Magno com os olhos enquanto Mag o acompanhava com a adaga.
Ele voltou à frente e parou a um passo de distância do grupo.
— Eu sou perigoso — admitiu Magno. — Mas não para vocês.
Ele abriu a mão esquerda diante do rosto do Jovem Magno.
— Porque se eu quisesse machucá-los…
Na palma aberta, repousava a faca de madeira que Vareta estava segurando segundos atrás.
O Jovem Magno piscou, confuso. Vareta tateou o cinto vazio, boquiaberto.
Magno abriu a mão direita.
— …eu já teria feito.
Ele segurava o pedaço de pão que Tico estava comendo. O garoto gordinho olhou para a própria mão vazia, chocado, sem entender como a comida havia sumido.
E então, Magno ergueu o dedo mindinho.
Pendurada nele, balançava a pequena bolsa de moedas de cobre que estava presa ao cinto de Lia.
— E você nem teria percebido, “esperta” — completou Magno, olhando para a garota.
Lia levou a mão à cintura, os olhos arregalados. O rosto dela corou de vergonha e surpresa.
Nenhum deles havia sentido nada. Nem um toque, nem um sopro de vento. Ele havia passado por eles, conversado com eles, e os depenado completamente sem que notassem.
Magno jogou o pão de volta para Tico, devolveu a faca a Vareta e arremessou a bolsa para Lia.
— Vocês são barulhentos — disse ele, voltando a se sentar. — Pisam como bois. Respiram alto. Se eu fosse um guarda, estariam todos presos.
O silêncio na cisterna mudou. O medo deu lugar a um respeito relutante e admirado. Tico tinha o queixo caído em um meio-sorriso.
O Jovem Mag olhou para a adaga em sua mão e depois para o homem sentado. Ele guardou a arma na cintura, tentando recuperar a postura de líder.
Ele chutou uma pedra no chão, evitando o olhar dos amigos que claramente não acreditavam nele.
— Mas… precisamos de alguém para vigiar a entrada à noite. E você parece saber um truque ou outro. Pode ficar.
Ele apontou um dedo sujo para Magno.
— Mas só até o braço melhorar. Depois, você some.
Magno assentiu, escondendo o sorriso.
— Como quiser, chefe.
Os dias seguintes transformaram a velha cisterna em algo que Magno jamais imaginou viver: uma escola.
— Tico, de novo! — A voz de Magno ecoou nas paredes de pedra.
O garoto gordinho bufou, o rosto vermelho e suado. Ele estava coberto de cordas amarradas com latas velhas, sinos enferrujados e pedaços de metal que faziam barulho ao menor movimento.
Sua missão era simples: atravessar o salão sem acordar os mortos.
Tico deu um passo, tentando ser leve. Seu calcanhar tocou o chão.
CLANG. BLÉIM. POFT.
O barulho foi ensurdecedor. Parecia uma cozinha desabando. Morcegos voaram do teto, assustados.
Magno esfregou as têmporas, suspirando.
— Você é um ladrão ou um trovão? — perguntou ele.
— É impossível! — choramingou Tico.
— Pise com a lateral do pé. Role o peso. Não bata o calcanhar — corrigiu Magno, demonstrando o movimento com uma graça felina que não fazia o menor som.

Então, apontou com o indicador para o céu e, de olhos fechados, entoou o que parecia o mantra de um sábio.
— Seja água, não uma pedra caindo no lago.
Ele certamente não havia pensado nessa frase sozinho.
Enquanto isso, em um canto, Vareta gemia no chão.
— Ai! Meus rins! Acho que vou morrer! Socorro, nobres senhores! — gritava o garoto magro, segurando a barriga e revirando os olhos de forma grotesca.
Magno caminhou até ele e deu um leve chute em sua canela.
— Vareta, pelo amor dos deuses. Se você fizer isso no mercado, vão te jogar numa fogueira achando que é a praga, e não te dar esmola.
O garoto parou de atuar e sentou-se.
— Achei dramático — defendeu-se.
— Dramático demais. A mentira precisa ser sutil — ensinou Magno, agachando-se. — Um tremor na mão. Um suor frio. Um olhar perdido. A compaixão vem do que está implícito, não do grito.
Lia, por outro lado, era um desafio diferente.
Ela estava sentada em um caixote com um pedaço de carvão, desenhando em uma pedra plana. Magno se aproximou e observou.
Ela mapeava as rotas dos guardas da praça central.
— Eles trocam aqui, quando o sino bate — explicou ela, marcando um ‘X’. — Ficam cegos por cinco minutos enquanto bebem água e contam piadas.
Magno sorriu, mas sentiu um aperto no peito. Ela tinha a mente de um estrategista. Em outra vida, em outro mundo, ela comandaria exércitos, não pivetes de rua.
— Perfeito — disse ele, a voz embargada de orgulho. — É aí que vamos entrar.
E havia o Jovem Mag.
A relação dos dois era uma guerra fria. O garoto recusava-se a pedir ajuda, mas observava cada movimento do invasor com uma atenção obsessiva.
Se Magno escalava uma parede em dez segundos, o garoto tentava em nove, esfolando os joelhos e quase caindo, mas nunca desistindo.
Se Magno arremessava uma faca no alvo, o garoto arremessava duas, sempre tentando acertar mais perto do centro.
Eles competiam até para ver quem comia mais rápido.
Até que, enfim, chegou a noite da prova.
Após uma tarde inteira de dúvidas e revisões no plano, eles saíram, deslizando pelas sombras do anoitecer em Therma como vultos treinados.
Tico moveu-se sem derrubar uma única telha. Vareta distraiu os guardas do portão da mansão com uma tosse seca e convincente, ganhando até uma moeda de pena antes de abrir caminho. Lia guiou o grupo pelos pontos cegos do jardim.
E o Jovem Mag abriu a despensa trancada com um grampo, usando a técnica que o adulto lhe mostrara na noite anterior.
O retorno foi triunfal.
A cisterna, sempre cheia de eco e fome, naquela noite encheu-se de cheiros que nunca estiveram ali.
Sobre o caixote central, repousava um frango assado inteiro, dourado e ainda morno. Havia pães brancos e macios, queijo de cabra curado, cachos de uvas doces e uma ânfora de vinho roubada da adega de um magistrado.
— Conseguimos! — Tico riu, a boca cheia de frango, a gordura escorrendo pelo queixo.
Vareta jogava moedas de prata para o alto, rindo.
— Vocês viram a cara dele? — Vareta imitava o guarda. — “Coitado do menino, parece tuberculose”. Nessa hora eu já tinha até levado a chave!
Lia comia uvas devagar, os olhos fechados, saboreando o doce com um sorriso de pura satisfação.
O Jovem Mag estava sentado no topo de sua pilha de tesouros, comendo um pedaço de queijo. Ele olhou para o adulto, que estava encostado em uma coluna, bebendo um gole do vinho aguado.
O garoto limpou a boca na barra da clâmide.
— Nada mal para um velho — disse o Jovem Magno.
Era o máximo de elogio que seu orgulho permitia.
Magno ergueu a ânfora em um brinde silencioso, sentindo o calor do momento aquecer algo frio dentro dele.
— Nada mal para um pirralho — respondeu.
Tico, vendo Magno com o braço erguido, ergueu também o seu copo de madeira
— Um brinde ao primeiro banquete dos Reis do Lixo!
Os outros olharam surpresos, incertos sobre o nome adotado. A boca de Magno logo saiu da surpresa para um sorriso. E ele balançou a ânfora.
— Um brinde aos Reis do lixo.
O Jovem Magno sorriu. Um sorriso aberto, sem a malícia ou a defesa de sempre. Apenas um garoto feliz, de barriga cheia, cercado por sua família.
As risadas ecoaram pela cisterna, abafando o som da água e do mundo lá fora.
Magno riu junto. Por aquela noite, apenas por aquela noite, ele se permitiu acreditar que aquele momento duraria para sempre. Que a tragédia não estava esperando logo ali, na próxima curva do destino.


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