Capítulo 102 | O Prisioneiro do Abismo
O cheiro de lavanda sumiu. O calor do sol na pele desapareceu.
Num piscar de olhos, o quarto de mármore, a cama macia e o rosto de sua mãe deixaram de existir.
Sêneca deu um passo à frente, mas seu pé não encontrou o mosaico frio da casa do Eupátrida. Encontrou algo sólido, liso e invisível.
Não havia chão. Não havia teto. Não havia paredes. Havia apenas o escuro.
Uma escuridão absoluta, densa, que parecia pressionar seus globos oculares. Sêneca estendeu as mãos, tateando o vácuo. Seus dedos invisíveis no umbral agarraram apenas o ar gelado e parado.
Ele girou o corpo, procurando uma fresta de luz, uma estrela, qualquer coisa. Nada.
— Mãe? — chamou.
Sua voz não ecoou. O som saiu de sua boca e morreu instantaneamente, engolido pelo negrume sem fim. Afagou uma mão com a outra, ambas estavam gélidas. Não parecia capaz de produzir qualquer calor para se aquecer.
Começou a caminhar.
Um passo. Dois. Dez. Cem.
Sêneca andou sem rumo, sem saber se estava indo para frente, para trás ou em círculos. O tempo perdeu o sentido. Não sabia se já haviam se passado minutos, horas, ou apenas segundos. Tentava recuperar a noção a cada passo que se perdia na escuridão.
Parou de contar na casa dos quinhentos.
Olhava em volta a todo momento, buscando por algo, qualquer coisa. Um feixe de luz, algo que se destacasse do nada. Sua respiração começou a ficar irregular, mas ele se controlou. Parou por alguns segundos e, de olhos fechados, inspirou profundamente, uma técnica de meditação que aprendera nas minas.
Abriu os olhos. Nada.
A única constante era a sensação de pequenez. A imensidão do nada pesava sobre seus ombros e esmagava a esperança de alguma mudança, mesmo que mínima, com uma indiferença brutal.
Em algum momento, Sêneca parou. Seus joelhos tremiam, não de cansaço físico, mas de pavor. O medo primitivo de deixar de existir. Teria ele finalmente morrido?
Foi então que ele ouviu.
Plic.
O som foi baixo, distante.
Sêneca prendeu a respiração. Ele girou a cabeça, forçando os ouvidos contra o silêncio.
Ploc.
Era o som de algo espesso… pingando. Algo pingando em pedra.
Vinha da esquerda. Ou talvez de baixo. Naquele lugar, as direções eram irrelevantes.
Seguiu o som, recuperando subitamente a força nas pernas.
Plic… Ploc…
O ritmo lento e constante tornava cada passo agonizante.
Aos poucos, uma mancha pálida surgiu na escuridão. Uma luz fraca, azulada e lânguida, que não iluminava o entorno, apenas a si mesma.
Sêneca se aproximou. A luz revelou uma cena que fez seu estômago revirar.
Um homem estava ajoelhado no meio do nada.
Ele não tocava o chão invisível. Estava suspenso. Correntes negras, grossas como o tronco de uma árvore, surgiam da escuridão acima e terminavam em cravos de ferro enormes.
Os cravos atravessavam os pulsos do homem. Outros atravessavam seus tornozelos. Um maior perfurava o centro de seu peito.
Ele estava preso, esticado como uma peça de carne num açougue.
Das feridas, não saía sangue vermelho. Escorria um líquido preto, viscoso, que pingava incessantemente para o abismo abaixo dele.
Plic. Ploc.
Sêneca cobriu a boca com a mão para abafar um grito.
O prisioneiro moveu a cabeça. O movimento foi lento, doloroso. De forma bizarra, um par de asas pequenas estavam presas às suas têmporas, caídas sobre o rosto pálido e encovado. Quando o homem ergueu o rosto, elas se abriram, e o revelaram.
Ele abriu os olhos e os focou diretamente em Sêneca. Eram fossos prateados, sem pupila, como uma escultura.
— Vo-Você consegue nos ver? — A voz soou arrastada, rouca como se ele não falasse há muito tempo.

Sêneca franziu o cenho, olhou em volta e depois voltou para o acorrentado.
— Nos? — perguntou Sêneca, confuso.
Então, para a sua surpresa, atrás das correntes, outras começaram a ganhar forma nas sombras. Pequenos brilhos fracos e azulados revelavam grilhões enormes, e mais cravos negros. Sêneca viu a luz lutar para tomar formas.
Eram silhuetas, vultos cinzentos e trêmulos. Estavam dispostos em romboide, na mesma posição de agonia, presos por correntes idênticas. Mas Sêneca não conseguia focá-los. O foco de seus olhos escorregava por eles como óleo em vidro. Eram borrões estáticos, falhas na visão.
Apenas o homem no centro era nítido.
O homem pálido franziu a testa. Ele virou o rosto para o lado, encarando o vulto desfocado à sua direita. As asas em sua têmpora se agitaram, limpando uma gota de suor que escorria da testa.
— Acalmem-se — disse ele para o nada. — Ele também não sabe. Ele só vê a mim.
Sêneca recuou um passo.
— Quem… quem é você? — gaguejou Sêneca.
O homem ignorou a pergunta. Ele parecia irritado, balançando a cabeça como se tentasse espantar moscas.
— Eu não consigo ouvi-lo com todos vocês falando ao mesmo tempo! — gritou ele para os vultos silenciosos. — O tecido está rasgado! Não sussurrem regras que caíram para mim!
Ele respirou fundo, o peito subindo com dificuldade por causa do cravo de ferro, e voltou os olhos prateados para Sêneca.
— Como você chegou aqui, mortal? Este lugar não é para os vivos. Nem para os mortos comuns.
— Eu… eu não sei — Sêneca respondeu, a voz trêmula. — Eu estava numa casa… e depois…
Ele tentou lembrar. As memórias pareciam distantes, enevoadas.
— Eu vim com Hermes — disse Sêneca. — Estávamos na praia.
As correntes fizeram um barulho estridente, torcendo-se. Sêneca ergueu o rosto assustado, o corpo do prisioneiro retesou nas correntes.
— Hermes… — ele sussurrou.
— Você o conhece? — Perguntou o confuso Sêneca.
O desconhecido fechou os olhos e suspirou pesadamente, mais uma gota de suor escorreu de sua testa e, dessa vez não amparada por uma de suas estranhas asas, despencou para o abismo.
— Todos o conhecem. O Mensageiro dos Deuses. — o tom do prisioneiro fez a frase parecer mais uma constação para si mesmo.
Sêneca franziu o cenho.
— Acredito que esteja confundindo. Meu amigo… — juntou as mãos humildemente numa tentativa de corrigir o engano.
— Não. — Interrompeu-o o estranho. — Eu percebo. Só assim faria sentido que você tenha chegado até aqui.
O velho engoliu em seco.
— Qu-quem é você?
O estranho fechou os olhos por um instante dramático, antes de pronunciar em uma voz baixa, quase incerta.
— Hipnos.
Sêneca sentiu a palavra preencher a sua mente como um espírito próprio. Ele abriu a boca, mas de algum modo percebeu que não precisava perguntar nada mais sobre aquilo. Ele, que nunca acreditou no divino…
A mera presença…
— Então começou. — A voz de Hipnos soou mais pesada do que antes.
Sêneca olhou ao redor, para a escuridão infinita.
— Por que eles não estão aqui? — perguntou Sêneca, a angústia crescendo. — Por que o Hermes e o Magno não vieram comigo? Por que só eu fui trazido para cá?
O homem pálido negou com a cabeça.
— Eu não sei — respondeu. — As barreiras entre os planos estão desmoronando. Talvez sua mente estivesse mais frágil. Ou talvez…
Ele estreitou os olhos, observando Sêneca.
— Você carrega a marca de um Totem Deôntico.
O velho ergueu uma das mãos ao peito, como se o gesto fosse protegê-lo da acusação.
— Um artefato torceu sua percepção e o jogou nas fendas do Tártaro.
— Tártaro? — Sêneca sentiu as pernas falharem.
— Escute — o homem falou rápido pela mudança em seus olhos a urgência havia substituído a exaustão. — Você precisa voltar. Precisa avisar o Mensageiro.
— Avisar o quê?
— O Usurpador — disse o deus. — Ele está se movendo. Endimião é apenas um fantoche. O mestre dele quer chegar aqui.
O homem se inclinou para frente, as correntes esticando.
— Nós não podemos permitir que ele chegue ao Submundo. Se ele tocar as raízes…
O homem travou. Sua boca se abriu num grito mudo.
Seu corpo convulsionou violentamente. Ele se curvou para frente e vomitou uma torrente de icor negro. O líquido espesso caiu no chão invisível, espalhando-se como piche.
Sêneca correu instintivamente em direção a ele.
— Eu vou tentar soltá-lo! — gritou o velho, estendendo as mãos para os cravos nos pulsos do deus.
— Não! — O homem ergueu a cabeça, os dentes manchados de preto. — Não há chave para isso aqui, tolo! A única chave é deter o Usurpador na superfície! Só assim você salvará a todos!
De repente, um som grave começou a vibrar.
Não vinha de um lugar específico. Vinha de toda parte. Era um rangido colossal, profundo, que fazia os dentes de Sêneca doerem e seus ossos vibrarem.
A escuridão ao redor começou a clarear levemente, num tom de cinza chumbo.
Sêneca olhou para cima e para os lados. Seu queixo caiu.
O vazio tomou forma.
O universo inteiro ao redor deles era feito de correntes. Correntes gigantescas, do tamanho de cordilheiras, cruzavam-se no infinito, sobrepostas umas às outras, esticadas até o limite.
Elas rangiam. Elas se moviam.

Tártaro estava se agitando.
O homem acorrentado olhou para as correntes colossais com pavor genuíno.
— Vá embora! — gritou ele para Sêneca. — Agora!
— Eu não sei como! — Sêneca gritou de volta, cobrindo os ouvidos por causa do barulho ensurdecedor do metal se retorcendo.
O deus olhou para ele. Viu que o espírito do mortal estava começando a rachar sob a pressão daquele lugar.
Ele arregalou os olhos e eles brilharam dourados. Inspirou todo o ar que conseguia.
— ACORDE! — gritou.
Sêneca sentiu uma dor aguda na cabeça, como se um prego estivesse sendo martelado em sua têmpora. Ele caiu de joelhos, gritando.
— ACORDE! — O deus gritou de novo.
As correntes gigantescas ao redor bateram umas nas outras. O som foi como o choque de planetas.
Sêneca sentiu que ia ser esmagado de dentro para fora. A pressão era insuportável.
— ACORDE!
A escuridão engoliu tudo.
Sêneca abriu os olhos.
A luz do sol feriu suas pupilas. Ele piscou, sentindo o corpo pesado, dolorido, como se tivesse sido pisoteado por cavalos.
Sua respiração estava curta. O ar tinha cheiro de poeira seca e pedra velha.
Ele se sentou devagar esperando a visão voltar aos poucos.
Não estava mais no vácuo de correntes. Estava sentado na terra batida, cercado por ruínas de pedra calcária. O céu acima era de um azul límpido.
À sua frente, a alguns metros de distância, havia uma pedra grande e plana.
Alguém estava sentado nela.
A visão de Sêneca focou.
Era uma mulher. De cabelos escuros em um tom que parecia púrpura, vestia uma túnica cinza simples, que deixava os ombros à mostra. Ela era bela, com traços delicados e perfeitos, exceto por um detalhe brutal.
Uma cicatriz de queimadura, enrugada e rosada, cobria todo o lado esquerdo de seu pescoço, subindo até a mandíbula.
Ela estava numa pose relaxada, uma perna cruzada sobre a outra, observando-o com curiosidade.
— Ora, ora — disse ela.
Sua voz, tão suave e doce que forçava o peito a prender o ar.
Ela inclinou a cabeça levemente para o lado. Seus lábios se moveram novamente, mas o som que saiu foi errado. Duplicado. Grave e agudo ao mesmo tempo, como se puxasse uma corda de instrumento prestes a se romper.
— Então você já acordou…


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