Índice de Capítulo

    O sol queimava a planície.

    O ar estava parado, pesado com a poeira levantada por milhares de pés e cascos. O cheiro era insuportável. Sangue coagulado, excrementos dos cavalos, suor e carne aberta exposta ao calor do meio-dia. Moscas formavam nuvens negras sobre os cadáveres que se amontoavam entre as muralhas de Tróia e os navios gregos na praia.

    Acima das nuvens, de braços cruzados, Hermes assistia impaciente. Sua armadura dourada reluzia com os raios de sol e o quiton esvoaçava fracamente com a brisa altiva.

    Lá embaixo, os gregos recuavam. A formação deles estava quebrada. Homens corriam, tropeçavam em corpos e eram perfurados pelas lanças troianas nas costas. Não havia o que se falar em glória. 

    Um soldado grego caiu de joelhos para pedir clemência, o troiano que o perseguia enfiou uma espada em sua garganta antes que ele terminasse a frase. Outro grego usou o corpo de um companheiro morto como escudo para fugir de uma saraivada de flechas.

    Patético.

    Hermes sentia uma irritação crescer em seu peito. Dias se passaram desde sua conversa com Aquiles.

    Ele olhou para a direção das tendas dos mirmidões. Nada se movia lá. Aquiles continuava sentado, polindo suas armas ou bebendo vinho, enquanto seu povo era massacrado a poucos quilômetros de distância.

    O orgulho do Pelida era maior que a razão. A promessa de considerar o pedido de um Deus não valeu de nada diante de sua mágoa mesquinha contra Agamenon.

    Hermes cerrou os punhos. A energia divina pulsou em suas veias. Ele olhou para suas mãos. Ele podia acabar com aquilo. Não precisava de Aquiles. Podia descer lá agora. Podia aumentar seu tamanho até ficar maior que as muralhas. Podia pisar nos exércitos como se fossem formigas. Podia queimar Tróia com um estalar de dedos.

    Podia matar Agamenon, Heitor, Paris, Príamo ou mesmo Helena se quisesse. Acabar com todos os motivos para essa guerra continuar. Podia romper com o ciclo das visões que se assentavam em sua mente. Na forma em que se seguia, essa guerra acabaria com a relação entre Deuses e humanos.

    Um grito se destacou no meio do caos.

    Heitor.

    O príncipe de Tróia avançava na linha de frente. Sua armadura estava banhada de vermelho, mas não o seu. Ele se movia com precisão letal. Golpeou um capitão grego, partindo seu escudo e seu braço com um único movimento. Em seguida, girou a lança e perfurou o peito de outro.

    Os gregos fugiam dele. Ele já tinha na ponta de sua lança vários nomes gregos importantes. Menestes, Eioneu, Treco… Ninguém ousaria enfrentá-lo.

    Heitor parou sobre uma pilha de corpos. Ele levantou sua lança ensanguentada para o céu e retirou o capacete que libertou seus longos cabelos negros, e mostrou o rosto suado e contorcido pela adrenalina.

    — Olhem para mim! — Heitor berrou  numa voz que ecoou pelo campo. — Olhem para o seu fim!

    Ele apontou a lança para os navios gregos.

    — A Grécia morre hoje! Voltem para suas casas ou morram nesta areia! — Ele riu, rouco e violento. — Chamem seus heróis! Chamem seus reis! Onde está Aquiles? Digam a ele que saia de seu buraco! Nem mesmo ele pode salvar vocês da minha lâmina agora!

    O exército troiano urrou em resposta. O som foi ensurdecedor. A moral estava elevadíssima, a dos gregos, no entanto…

    Foi então que aconteceu.

    O barulho de rodas de carruagem cortou o ar.

    O som vinha do acampamento grego.

    Os soldados gregos pararam de correr. Os troianos pararam de gritar. Todos viraram a cabeça para a direção dos navios.

    Uma nuvem de poeira se erguia. De dentro dela, surgiu uma carruagem puxada por dois cavalos imortais, Xanto e Bálio.

    E em cima da carruagem estava ele.

    A armadura dourada refletia o sol com tanta intensidade que doía olhar. O peitoral forjado por Hefesto, as grevas reluzentes, o capacete com a crista de cavalo. O guerreiro segurava uma lança longa e pesada com uma facilidade assustadora.

    Ele não gritou, não fez discurso. Apenas instigou os cavalos a correrem mais rápido em direção a Heitor.

    Hermes sentiu um peso sair de seus ombros. Um sorriso involuntário surgiu em seu rosto.

    Aquiles havia vindo.

    O orgulho havia cedido. O plano de Hermes funcionara. A presença de Aquiles ali significava o fim da moral troiana. A guerra acabaria. As mortes cessariam.

    Lá embaixo, o efeito foi imediato. Os troianos recuaram com terror estampado nos rostos. Eles sabiam quem era aquele homem. A lenda viva. O invencível.

    Apenas Heitor não recuou.

    O príncipe troiano empalideceu. Suas mãos tremeram por um segundo. Mas ele firmou os pés. O orgulho o impediu de correr. Ele recolocou o capacete e preparou sua lança.

    A carruagem dourada não parou. O guerreiro saltou dela com o veículo ainda em movimento, caindo de pé na areia afofada em um estrondo de sua pesada armadura.

    Os dois exércitos se afastaram, criando um círculo amplo ao redor dos dois campeões.

    Heitor e o guerreiro de armadura dourada avançaram um contra o outro.

    As lanças se chocaram. O som de metal contra metal foi agudo.

    Hermes estreitou os olhos. Algo estava errado.

    Aquiles colocava todo o peso do corpo em cada investida. Atacando com fúria, desferindo golpes rápidos e agressivos. Ele respirava pela boca, o peito subia e descia de forma descompassada. Parecia lutar com ódio ou despreparo, o que não poderia ser o caso em se tratando de Aquiles.

    A cada golpe defendido por Heitor, a recuperação da lança dourada demorava uma fração de segundo a mais do que deveria. Ele balançava a lança muito aberta. A guarda baixa. Os tropeços na areia irregular. Seria a falta de prática?

    O medo no rosto do troiano sumiu.

    O guerreiro de ouro gritou, um som rouco de esforço, e girou o corpo para um golpe lateral, buscando decapitar o oponente. Foi um movimento amplo demais. A guarda do lado direito se abriu completamente.

    Heitor não pensou. Seu corpo reagiu ao erro.

    Ele deu um passo curto para a esquerda, entrando no arco do golpe. Sua lança disparou de baixo para cima.

    A ponta de bronze encontrou a brecha entre o cinto e o peitoral dourado. O metal rasgou o linho e afundou na carne macia do ventre.

    O guerreiro de ouro engasgou. A lança caiu de sua mão e ele cambaleou para trás. Suas mãos foram para o cabo da arma que o empalava. Ele caiu de costas na poeira, levantando uma nuvem de terra vermelha.

    Um suspiro coletivo varreu o campo de batalha. Gregos e troianos olhavam incrédulos.

    Aquiles havia caído.

    Heitor olhou para o corpo no chão. Depois olhou para as próprias mãos. Ele começou a rir. Uma risada maníaca, descrente.

    — Eu matei um Deus! — Heitor gritou, erguendo os braços. — Eu matei Aquiles!

    Ele caminhou até o corpo caído. O guerreiro ainda se contorcia, engasgando com o próprio sangue.

    Heitor pisou no peito da armadura dourada. Ele se abaixou.

    — Deixe-me ver o seu rosto enquanto te mando para o Hades — zombou.

    Ele segurou a crista do capacete e puxou com força.

    O cabelo castanho e suado caiu sobre a testa parda. O rosto era jovem. Havia sardas nas bochechas pálidas, acima da curta barba. Os olhos estavam vidrados, cheios de dor e medo. Sangue escorria pelo canto da boca.

    O sorriso de Heitor desapareceu. Ele deu um passo para trás, soltando o capacete na areia.

    Hermes sentiu o mundo parar.

    Lá de cima, ele olhava para o rosto do menino morto.

    Pátroclo.

    O silêncio no campo de batalha era total. Ninguém comemorava. Ninguém gritava. A realidade do que acabara de acontecer pesava sobre todos como chumbo.

    Hermes fechou os olhos sentindo como se uma agulha perfurasse a sua cabeça. O que ele havia feito?

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