Capítulo 106 | Impasse das Moedas
Ainda sentindo o fogo da divindade queimando em suas veias, o Mensageiro avançou. Foi um movimento tão rápido que o ar estalou, um trovão rompendo a barreira do som. Ele fechou o punho direito, canalizando toda a força que aquele corpo divino possuía, mirando o rosto perfeito e preguiçoso à sua frente.
Ele gritou, um urro incandescido de alguém que foi enganado cruelmente.
Endimião sorria despreocupado, mesmo encarando a aniquilação iminente que se aproximava.
O punho conectou.
O mundo ao redor deles trincou como um espelho atingido por uma pedra. O céu azul, as muralhas, o sol, o rosto de Endimião… tudo se estilhaçou em fragmentos de luz.
BOOM.
A realidade voltou com um impacto brutal.
Hermes sentiu uma dor excruciante subir pelo seu braço direito.
Seu punho, agora mortal e coberto de pele humana frágil, havia atingido uma coluna de pedra calcária sólida nas ruínas verdadeiras de Tróia.
A coluna explodiu com a força residual do golpe, lançando pedras e poeira para todos os lados. Hermes foi jogado para trás, rolando na areia áspera e fria.
Ele parou de bruços, tossindo. O gosto de sangue encheu sua boca.
Hermes tentou se levantar, mas suas pernas tremeram. Ele olhou para suas mãos. Elas estavam sujas, calejadas e sangrando. A armadura divina sumira. As sandálias aladas não estavam lá. A túnica branca imaculada era agora o trapo negro de sempre sob a couraça presenteada pelos tritões.
Apenas um homem, de novo.
— Surpreendente — disse uma voz acima dele antes de bocejar.
Hermes levantou a cabeça.
Endimião estava sentado no topo de um arco de pedra intacto, a dez metros de altura e recortado contra a luz do sol num céu azul e repleto de nuvens. Ele balançava as pernas despreocupadamente. A moeda negra girava entre seus dedos.
— Você canalizou tanta vontade que o sonho transbordou para a carne — continuou Endimião, olhando para os destroços da coluna que Hermes destruíra. — O seu poder vazou para a realidade. Impressionante… e inacreditável.
Endimião levantou o cajado para o céu.
— Mas a realidade é fria demais, Hermes. Deixe-me torná-la mais… confortável.
A moeda na ponta do cajado pulsou com uma luz roxa escura.
As nuvens no céu começaram a se agitar, mudar, escurecer e se expandir. Em alguns instantes, tomaram por completo o céu e engoliram o Sol. O dia se tornara noite, e uma noite de absoluta escuridão, palpável, como se um cobertor de veludo tivesse sido jogado sobre o mundo. A única luz oscilante vinha do brilho roxo da moeda de Endimião e, agora, de um brilho verde doentio na mão de Hermes.
Hermes havia sacado a moeda de Tânatos. A efígie da asa invertida brilhava com um verde necrótico, e o som baixo de gritos distantes emanava do metal frio. Seus olhos começaram a adotar um brilho verde, um brilho que aos poucos tomava o lugar do seu dourado real e belo. Um brilho profano.
Da moeda, energia fluiu violentamente pelo seu braço. Em um instante, veias negras surgiram ascendendo na direção dos ombros, e então se perderam abaixo das vestes, reaparecendo pouco depois em veloz expansão no pescoço de Hermes. Então, pararam.
Ele estava controlando. Seus braços pareciam inchados, seus músculos alimentados por algo que não seu próprio sangue mortal, algo caótico e doloroso. E sua mente, atormentada por gritos que se faziam insuportáveis a cada movimento, gritos de agonia e aflição.
Hermes flexionou os joelhos, sentindo como se areia quente percorresse a musculatura de suas pernas, e saltou.
Endimião apenas sorriu e deu um passo para trás, caindo no vazio. No ar, seu corpo se dissolveu em uma névoa roxa e reapareceu instantaneamente em cima de outra parede, a vinte metros de distância.
Hermes cortou a estrutura de pedra antiga como se fosse um naco de pão, um trovão ecoou com o impacto da xiphos e outro de novo com a queda dos destroços.
Hermes aterrissou num fragmento quebrado da muralha à frente, quase escorregando.
— Covarde! — gritou Hermes. Sua voz saiu rasgada e duplicada, misturada ao coro de lamentos que escapava da moeda. — Desça e lute!
Endimião riu. O som ecoou por todas as direções nas ruínas escuras, ricocheteando nas pedras mortas.
— Você acha que insultos funcionam comigo? — A voz dele era calma, irritante. — Eu sou um pouco melhor que os brutos com quem você tem lutado até então, Men-sa-gei-ro…
A forma como ele enunciou a palavra pareceu acender um fogo de fúria ainda maior em Hermes.
Endimião começou a caminhar. Quando pareceu que cairia da pilastra em que estava, seu pé pousou sobre o ar. Nuvens sólidas de um roxo profundo se formavam sob seus pés descalços a cada passo. Ele subia, apoiado nessa névoa, completamente alheio à lâmina que tanto anseava pelo seu pescoço.
— Por que lutar? — perguntou Endimião, girando o cajado. — Olhe para você. Sangrando, sujo, cansado. O sonho era melhor. Lá você era rei.
Hermes rosnou. As vozes em sua cabeça gritavam para matar, para destruir. Ele obedeceu.
Ele correu pela extensão da muralha quebrada onde havia pousado. A cada passo, a pedra rachava sob a pressão sobrenatural de suas pernas infundidas com a energia de Tânatos, acelerando como uma flecha. Ele chegou à borda e saltou.
O corpo mortal de Hermes cruzou o abismo como um projétil. Ele brandiu a xiphos num arco descendente, visando as pernas do feiticeiro dos sonhos.
Endimião nem olhou para baixo. Seu corpo simplesmente se desfez em fumaça violeta. A espada de Hermes cortou o ar vazio, e o impulso o fez colidir com o topo de um arco triunfal. Ele rolou, cravando os dedos na pedra para não cair de uma altura de quinze metros. Suas unhas sangraram, mas ele não sentiu. A adrenalina necrótica anestesiava a dor física, substituindo-a pela agonia mental das almas que sentiam cada movimento fortificado alimentado pelos seus espíritos.
Hermes se ergueu, ofegante. O suor frio escorria por suas costas.
— Você é melhor que isso, arauto… — um eco soou nas ruínas invadindo a mente de Hermes como um sussurro.
Hermes saltou da queda livre, pousou no chão e parou. Seus olhos varreram os arredores enquanto sentia o arfar de seu peito.
— E você? Não é melhor que um mero capacho do Usurpador? — Hermes gritou para o vazio, girando, procurando o brilho roxo na escuridão artificial. — Usando um poder que não te pertence em nome de outro que atende pela alcunha de um ladrão.
Uma luz pulsou à sua esquerda. Endimião reapareceu sentado na beira de uma coluna dórica, a trinta metros de distância.
— Tsk — Endimião estalou a língua, balançando a cabeça. — Esqueça o Usurpador. Ele quer destruir tudo. Eu quero preservar.
— Preservar o quê? — Hermes apertou o cabo da espada. As veias negras em seu pescoço pulsavam ritmicamente.
— A existência — respondeu Endimião.
Ele se levantou na coluna estreita, de braços abertos para a cidade morta.
— Meus planos são muito mais prolíficos para todos. Imagine um mundo onde o sonho e a carne são um só. Um mundo onde ninguém sente fome. Ninguém sente dor. Onde cada desejo é atendido instantaneamente pela mente.
Ele começou a desaparecer novamente, a névoa roxa subia pelos seus tornozelos.
— Eu vou criar um mundo de sonâmbulos felizes, Hermes. Onde sentir é ter prazer. Onde todos têm controle sobre sua própria realidade, sem as correntes cruéis do destino ou dos deuses.
Hermes observou. Seus olhos verdes, brilhando com a luz dos mortos, focaram na movimentação da névoa. Hermes sorriu. Os dentes estavam manchados de sangue.
— Controle… — Hermes sussurrou. — Você fala de controle, mas é previsível.
Endimião desapareceu completamente da coluna.
Hermes não saltou para onde o inimigo estava. Ele girou o corpo e correu na direção oposta, pegando impulso. Ele usou uma parede caída como rampa e se lançou com uma força explosiva em direção à torre vazia.
Endimião sempre olhava para cima antes de sumir. Ele sempre buscava o terreno alto. Era um padrão. Um tique de vaidade. Ele queria ser visto de baixo, queria ser adorado como uma divindade intocável.
Havia uma torre de vigia semidestruída a quarenta metros dali. Era o ponto mais alto das ruínas próximas. O único lugar de onde ele poderia continuar seu discurso olhando Hermes de cima.
O ar assobiou em seus ouvidos. As almas na moeda gritaram em protesto pelo gasto súbito de energia.
Hermes passou voando pelo espaço vazio entre as ruínas. Sua mira estava no ar logo acima da torre.
No exato instante em que Hermes atingiu o ponto mais alto de sua trajetória, a névoa roxa começou a se condensar na plataforma da torre.
Endimião materializou-se, de costas para o abismo, pronto para continuar seu monólogo.
Mas Hermes já estava lá.
A gravidade puxou Hermes para baixo. Ele caiu sobre a plataforma no momento em que Endimião se tornava sólido.
O feiticeiro virou-se, e pela primeira vez, o sorriso sonolento desapareceu. Seus olhos negros se arregalaram.
— Te peguei — rosnou Hermes com um sorriso vermelho e maníaco.
Ele não usou a espada. Ele largou a xiphos e avançou com a mão livre, os dedos garras prontos para esmagar a garganta do falso deus. Endimião tentou levantar o cajado, mas era lento demais.
A mão de Hermes estava a centímetros da pele pálida do pescoço de Endimião. Ele podia ver o medo real na íris escura do inimigo.
— PARE!
O grito não veio de Endimião.
Veio de baixo. E não foi um pedido. Foi uma sentença. A voz, Sêneca.
Hermes travou. Seu corpo inteiro retesou, lutando contra a inércia. A mão parou, tremendo, a milímetros da traqueia do oponente.
Lentamente, sem baixar a guarda, Hermes desviou o olhar para a base da torre.
Saindo das sombras profundas das ruínas, uma mulher caminhava para a luz roxa da moeda. Seus cabelos eram cor de púrpura, e uma cicatriz horrível deformava seu pescoço.
Eco.
Mas ela não estava sozinha.
Ela arrastava Sêneca. O braço dela estava esticado, segurando o ex-escravo pelo pescoço com uma facilidade grotesca, mantendo-o suspenso no ar. Sêneca batia as pernas inutilmente, as mãos tentavam arranhar o braço da mulher. Seu rosto estava inchado, os olhos revirando, a boca aberta buscando ar que não entrava.
Eco olhou para cima. Seus olhos encontraram os de Hermes. Ela sorriu, e a cicatriz em seu pescoço se repuxou.
— Mais um passo, Mensageiro — sua voz reverberou nas ruínas, amplificada por sua magia. — Mais um movimento, e eu quebro o brinquedo.
O som do pescoço de Sêneca estalando levemente sob a pressão dos dedos dela foi audível no silêncio da noite artificial.
Hermes olhou para Endimião, que estava congelado à sua frente, e depois para Sêneca, preso lá embaixo.
O brilho verde nos olhos de Hermes oscilou. As veias negras em seus braços pareceram diminuir em volume.
Endimião, percebendo que a lâmina da morte não desceria, soltou o ar que prendia. O sorriso preguiçoso voltou aos seus lábios, embora trêmulo. Ele deu um passo para o lado, saindo do alcance de Hermes, e ajeitou o manto.

— O momento passou, meu amigo — disse Endimião, limpando uma poeira imaginária do ombro. — Parece que temos um impasse.

Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.