Índice de Capítulo

    Hermes se levantou, limpando o sangue do canto da boca.

    Endimião, vendo seus guardiões formados, virou as costas e correu para dentro das ruínas, mancando e segurando o peito ferido.

    — Peguem ele! — gritou o feiticeiro enquanto fugia.

    Os três clones avançaram ao mesmo tempo.

    Eram silenciosos. O clone de Sêneca veio pela esquerda, com os braços estendidos. O clone de Magno desapareceu nas sombras à direita. O clone de Hermes atacou pelo centro, brandindo uma cópia negra da xiphos original.

    A moeda de Tânatos gritava em sua mente, exigindo sangue.

    Ele girou a espada, bloqueando o golpe descendente de sua própria cópia. O impacto fez seus ossos vibrarem. Aquela sombra tinha a mesma força divina que ele possuía com a moeda. Era forte demais.

    Pelo canto do olho, ele viu o clone de Sêneca tentar agarrar suas pernas. Hermes chutou. A bota acertou o peito da sombra. Houve um som de tecido rasgando. O clone de Sêneca foi lançado contra uma parede e se desfez em fumaça roxa imediatamente. Era fraco. Uma distração.

    O clone de Magno atacou pela direita, buscando os tendões da perna de Hermes. O clone de Hermes veio pela esquerda, visando o pescoço.

    Hermes bloqueou a espada de sua cópia com a sua própria lâmina, soltando faíscas. Ao mesmo tempo, teve que pular para trás para evitar as adagas do segundo atacante.

    Era dois contra um. E eles eram rápidos.

    Hermes aparou um golpe que visava sua cabeça e chutou o estômago de sua cópia. A carne era sólida. O clone recuou, mas o falso Magno já estava lá, cortando o braço de Hermes com a ponta da adaga.

    Hermes rosnou. Ele não tinha tempo para isso. Endimião estava fugindo.

    Mas o clone de Hermes não parou. Ele desferiu uma sequência de estocadas rápidas. Hermes aparou a primeira, desviou da segunda e recebeu a terceira no ombro. A lâmina de sombra cortou sua pele. O sangue quente escorreu.

    A dor clareou a mente de Hermes.

    Ele rugiu, ignorou o ferimento enquanto as veias negras em seu pescoço pulsavam. Olhou para o corredor de ruínas por onde o feiticeiro havia escapado.

    Hermes tomou uma decisão. Ele ignorou a defesa. Ele virou as costas para os clones e correu na direção de Endimião.

    A cópia divina era rápida. Ela alcançou Hermes em segundos, levantando a espada para cravá-la nas costas do original.

    Era o que Hermes esperava.

    No último instante, Hermes parou bruscamente e girou sobre o calcanhar.

    O clone, pego no meio do impulso, não conseguiu parar. Ele correu direto para o contra-ataque. O falso tentou corrigir a trajetória, mas Hermes foi mais rápido. Ele soltou a espada e envolveu o pescoço da sombra com as mãos nuas, usando sua própria velocidade contra ela.

    Com um urro de esforço, Hermes girou o tronco e puxou.

    A pele do pescoço rasgou. A coluna se separou. Hermes arrancou a cabeça de sua cópia.

    O corpo decapitado deu mais dois passos e caiu. Onde deveria haver carne, a substância derreteu em uma cera roxa e quente, borbulhando no chão de pedra. A cabeça na mão de Hermes se desfez em gosma e escorreu por entre seus dedos.

    O brilho verde da moeda de Tânatos começou a falhar. As veias negras em seus braços diminuíram. O poder estava acabando. Ele precisava se apressar.

    Hermes ofegava, mas voltou a correr. Atravessou os corredores de pedra, seguindo o rastro de sangue de Endimião, até chegar ao Pátio do Cavalo. Onde antes ficava a grande praça de Tróia, agora restavam apenas os ossos queimados da estrutura de madeira lendária.

    Endimião estava lá, no centro. Ele estava curvado, apoiando as mãos nos joelhos, exausto. O feiticeiro não tinha físico de guerreiro, nem mais a energia para usar a magia da moeda. Ele olhou para o céu escuro com a expressão desfeita em pânico.

    — Mestre! — gritou Endimião. — Ajude-me! Eu não consigo contê-lo!

    Hermes avançou para o pátio.

    — Acabou, Endimião!

    O feiticeiro se virou assustado e ergueu o cajado mais uma vez, dessa vez na direção do inimigo. Uma luz fraca brilho em sua ponta. Roxa, frágil, mas certamente letal. O corpo de Endimião parecia fragilizado, a moeda estava tomando sua própria energia vital para si.

    Mas o caminho foi bloqueado.

    O clone de Magno surgiu de trás de uma coluna caída. Ele estava sozinho agora, mas não parecia intimidado. Endimião parou de canalizar sua força, um curto sorriso esperançoso surgiu em seu rosto.

    Hermes tentou passar pelo clone usando sua velocidade, mas ele previu o movimento. Ele chutou um monte de areia e cinzas na cara de Hermes.

    Hermes praguejou, piscando para limpar a visão.

    O clone de Magno atacou. Primeiro ergueu o braço para um golpe descendente com ambas as adagas, Hermes ergueu sua lâmina para bloquear, mas o golpe nunca veio. No lugar, o clone o atingiu com um chute na canela. Hermes urrou e traçou um arco com sua espada da posição de guarda, mas o clone já havia pulado para trás.

    Usava cotoveladas, tentava pisar no pé de Hermes, fintava com uma adaga e atacava com a outra. Os gritos dos mortos já haviam se tornado insuportáveis. Hermes tinha pouco do poder de Tânatos em si, e muito do tormento.

    Hermes bloqueou uma estocada com o antebraço, sentindo a lâmina rasgar a pele. Tentou contra-atacar com a espada, mas o clone era sagaz, esquivo como fumaça, como se prevesse seus movimentos. Como se o conhecesse.

    Hermes estava cansado. Seus membros pareciam pesar toneladas. Ele bloqueava os golpes com dificuldade, recuando passo a passo.

    Endimião, vendo que Hermes estava encurralado e perdendo a força, começou a rir. Uma risada histérica, aliviada.

    — Desista, Hermes! — gritou Endimião, rindo nervosamente, escondido atrás da perna do cavalo de madeira. — Olhe pra você. O seu poder está acabando.

    Os sussurros aumentavam, e a velocidade diminuía. Hermes defendeu um golpe que visava seu olho. Suas pernas tremeram. Ele caiu de joelhos.

    Neste instante, em um grito final, Hermes sentiu seus timpanos estourarem. Um zunido incessante abafou seus pensamentos e embranqueceu sua visão. Ele viu o clone de Magno se aproximar.

    O clone de Magno parou à sua frente. Ele levantou as duas adagas para o golpe final.

    Hermes olhou para cima, preparando-se para tentar um último movimento desesperado e encontrou o sorriso do clone. O sorriso de raposa.

    O falso Magno piscou para Hermes.

    O “clone” girou o corpo, saindo da frente de Hermes.

    As sandálias em seus pés brilharam com uma luz azul intensa — o presente dos tritões.

    Num estalo seco, a figura desapareceu.

    Endimião parou de rir. Ele piscou, confuso com o desaparecimento do seu servo.

    — O qu…

    O ar na frente de Endimião se deslocou.

    Magno reapareceu a centímetros do feiticeiro, vindo do nada com o impulso da velocidade mágica.

    Endimião olhou para baixo, chocado.

    Duas lâminas negras atravessaram seu tórax.

    Magno segurava os cabos com força, o rosto colado ao do inimigo.

    — Surpresa — disse Magno.

    Ele torceu as adagas.

    Endimião engasgou. O sangue espirrou de sua boca. Seus olhos reviraram. As mãos do feiticeiro se abriram, e o pedaço do cajado com a moeda negra caiu na areia.

    O corpo de Endimião amoleceu. Magno puxou as lâminas e deixou o homem cair de costas no chão.

    Hermes, ainda ajoelhado, olhava a cena de boca aberta.

    Magno se agachou e limpou o sangue das adagas na roupa do inimigo caído. Depois, olhou para Hermes e abriu aquele sorriso irritante e confiante.

    Hermes se levantou com dificuldade, e caminhou até eles.

    — Você… — Hermes apontou para o corpo derretido do clone verdadeiro de Magno, visível agora na entrada do pátio, e depois para o amigo. — Você trocou de lugar.

    — Claro — disse Magno, empinando o queixo. — Quando a poeira subiu lá atrás. Matei a cópia feia e tomei o lugar dela. E olha que eu ainda tive que dar um jeito na maluca que grita antes…

    — Você quase arrancou minha cabeça naquela luta — reclamou Hermes, ainda sentindo a adrenalina.

    — Tinha que parecer real — retrucou Magno. — Aquele cara parecia ter mais alguma carta guardada na manga…

    — Vo-você me enganou… — Hermes tinha um tom de voz misto, em parte surpreso, em parte irritado, e em parte orgulhoso.

    Magno semicerrou os olhos e sorriu maliciosamente.

    — É claro.

    Ele girou uma adaga no dedo e a guardou na bainha.

    — Eu sou o Rei dos Ratos, afinal de contas. Essa é a minha especialidade.

    Hermes franziu o cenho.

    — Rei dos o que?

    — Deixa pra lá — disse Magno, dando um tapa nas costas de Hermes. — Vencemos. Agora cadê aquele velhote?

    O clima de vitória durou exatamente três segundos.

    Uma brisa fria soprou pelo pátio. O mundo ficou cinza.

    Passos arrastados ecoaram naquele pedaço das ruínas. Hermes e Magno se viraram na direção de que vinham. Era o velho Sêneca mancando.

    Hermes sentiu os pelos da nuca se arrepiarem. Ele olhou para o lugar onde deveria estar o corpo de Endimião. Apenas uma mancha de sangue estava lá.

    — O quê… — começou Magno, girando no lugar.

    — Olhem — sussurrou Sêneca com a voz rouca.

    Eles olharam para o céu.

    As nuvens roxas se abriram para revelar uma lua cheia gigantesca, irreal. E flutuando contra a luz da lua, havia uma figura.

    Estava completamente coberta por um manto negro que parecia feito de tecido vivo, absorvendo a pouca luz que tocava sua superfície. Um capuz profundo escondia o rosto. Hermes já sabia de quem se tratava.

    O Usurpador.

    Ele já estava lá. Como se sempre estivesse.

    Sob seu braço direito, ele segurava o corpo flácido de Endimião. Sob o braço esquerdo, Eco pendia, relaxada e ainda com as amarras que Magno havia colocado. Ele os segurava com a indiferença de quem carrega sacos de lixo.

    A presença dele parecia causar uma pressão própria sobre todos, um peso que forçava seus ombros para baixo, e que apertava o peito para dificultar a respiração.

    Hermes engoliu em seco, ele precisava romper o silêncio, precisava de respostas.

    — Ei! — gritou Hermes, dando um passo à frente. — Quem é você?

    O Usurpador virou a cabeça encapuzada em sua direção, mas não disse uma palavra sequer. Então, ele virou as costas para o grupo e começou a subir em direção à lua, flutando graciosamente.

    O ar atrás dele se rasgou. Uma fissura vertical se abriu, revelando um vazio de estática e escuridão absoluta.

    O grupo assistia boquiaberto e de olhos arregalados.

    O Usurpador entrou na fenda, levando seus servos derrotados.

    A fissura se fechou com um som de vácuo, engolindo a entidade e deixando o céu noturno normal, estrelado e frio.

    O silêncio voltou a Tróia.

    Hermes correu até o local onde Endimião tinha caído. Ele se jogou na areia, tateando freneticamente. Encontrou o pedaço de madeira quebrada do cajado.

    Mas o buraco no centro estava vazio.

    — A moeda — disse Hermes numa voz cheia de frustração. — Ele levou a moeda. Perdemos. Todo esse esforço e ele levou a maldita moeda!

    Magno se aproximou, limpando as unhas com a ponta de uma adaga.

    — É uma pena mesmo — disse o gatuno, com um tom de voz estranhamente leve. — Perder um tesouro desses… seria trágico.

    Hermes levantou a cabeça, pronto para gritar com o amigo pela insensibilidade.

    Mas Magno estava sorrindo. Aquele sorriso de raposa que acabara de roubar o galinheiro inteiro.

    — Mas sabe como é, chefe — continuou Magno. — Eu sou o Rei dos Ratos.

    Com um movimento rápido de prestidigitador, ele tirou a mão de trás das costas.

    Entre seus dedos sujos de sangue e poeira, brilhava um metal negro. A efígie de um olho entreaberto capturou a luz da lua.

    — Aqui está — disse Magno, piscando. — Acho que o Usurpador esqueceu de checar os bolsos do Endimião antes de levá-lo.

    Hermes estava boquiaberto.

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