Índice de Capítulo

    O sol da tarde iluminava as ruínas de Tróia. A luz era real agora, quente e amarela, dissipando o frio sobrenatural da noite mágica que fora deixada por Endimião. Seus poderes, mesmo sem o domínio da moeda, demoraram a se dissipar, e banharam as ruínas por horas antes de finalmente abandoná-las.

    Hermes estava sentado em um bloco de pedra calcária, perto da praia. Em suas mãos, ele segurava a Moeda do Olho Entreaberto. O metal negro parecia absorver a claridade do dia. Ele girava o objeto entre os dedos e sentia o peso da magia dormente.

    A alguns metros dali, Magno e Sêneca desmontavam o pequeno acampamento improvisado que haviam feito antes de entrarem na cidade. Eles trabalhavam em silêncio. Magno enrolava cordas e checava os odres de água. Sêneca dobrava os mantos e movia-se devagar, ainda sentia as dores do aperto de Eco em seu pescoço.

    — Precisamos ir — disse Hermes, sem levantar os olhos da moeda. — O Usurpador levou Endimião e a Ninfa. Quando der falta, certamente vai tentar recuperar isso aqui.

    Ele fechou o punho sobre a moeda.

    Sêneca parou o que fazia. Ele olhou para o chão por um longo momento antes de caminhar na direção de Hermes. O ex-escravo mancava levemente. Magno percebeu o movimento, jogou a trouxa com seus pertences sobre o ombro e seguiu o companheiro, parando logo atrás dele.

    Os três formaram um círculo irregular sob o sol. Sêneca parecia doente. O rosto estava pálido e suava, apesar da brisa que vinha do mar.

    — Hermes… Eu… — Sêneca começou, mas a voz falhou. Ele olhou para as próprias mãos, depois tocou novamente as marcas no pescoço.

    Hermes suspirou, sentido pela dor do amigo. Ele viu o tremor nos dedos do velho.

    — Nós podemos descansar se quiser, Sêneca. — Sua voz soou serena e fraternal.

    Sêneca engoliu em seco.

    — Eu sonhei… — a voz dele saiu rouca.

    A frase pairou no ar. Magno, que estava prestes a fazer uma piada sobre a idade de Sêneca, fechou a boca. Ele deu um passo à frente, entrando de vez na conversa.

    — Sonhou? — Magno perguntou, sem o tom de escárnio habitual.

    Sêneca se endireitou, tentando se firmar para contar o que apertava sua garganta.

    — Sim — Sêneca olhou para o horizonte, mas seus olhos pareciam ver outra coisa. — Eu estava em casa. No quarto de mármore da casa do Eupátrida. Minha mãe estava lá. Eu podia sentir o cheiro de lavanda que ela usava. Era real. Eu sentia o calor, o cheiro, a segurança.

    — Está tudo bem, Sêneca. Estávamos sob o efeito da…

    Sêneca interrompeu o amigo com o erguer de sua mão.

    — Não é isso, Hermes… — Ele fez uma pausa e sua respiração acelerou. — Quando eu percebi que era uma ilusão, tudo sumiu, o chão, minha mãe, e de repente, eu me vi no meio do nada.

    Hermes e Magno arregalaram os olhos.

    — Eu estava em um lugar sem luz. Não havia nada. Eu gritava, mas minha voz não produzia som. Eu caminhei por eras na escuridão, até que comecei a ver coisas…

    — O que você viu? — perguntou Hermes.

    — Correntes. Eram colossais. Elas atravessavam o nada e se chocavam umas contra as outras. O som era ensurdecedor. — respondeu Sêneca. — e preso a um emaranhado de grilhões, vi um homem acorrentado na escuridão…

    Magno se sentou numa pedra ao lado com o cenho franzido. Seu saco de pertences foi ao chão lentamente.

    Hermes estreitou os olhos.

    — Hipnos — murmurou Sêneca. — O Deus do Sono.

    O deus caído levantou a sobrancelha. Magno franziu o cenho e abriu os braços.

    — Tá falando sério? — Perguntou numa sinceridade que não lhe era comum.

    — Sim. — Hermes suspirou. — Ele está.

    O rapaz ergueu a mão e mostrou a moeda que jazia em sua palma para os dois. Nela, um olho entreaberto estava gravado. Um brilho estranho ainda parecia tentar escapar dela, um brilho pulsante e roxo.

    — O Deus do Sono. Um dos primordiais. 

    Um instante silencioso se assentou entre os três, antes que Sêneca resolvesse continuar.

    — Ele conversou comigo. Parecia estar acompanhado, mas eu não conseguia ver os outros…

    Hermes levou os olhos à moeda, e então pegou a outra que carregava. Tânatos. Um pensamento sombrio perpassou em sua mente, mas ele o calou.

    — Continue. O que ele falou? — assentiu o mensageiro.

    Sêneca respirou fundo.

    — Ele disse que eu carregava a marca de um Totem Deôntico. Que eu havia conseguido chegar até ele por conta disso.

    — Totem Deôntico? — Magno coçou a cabeça. — Essa conversa tá ficando maluca demais pra mim.

    — Creio que ele esteja  falando da moeda. — Revelou Hermes. — Foram elas que nos mandaram pras ilusões, afinal. No entanto, ainda resta saber por que apenas você, Sêneca, conseguiu alcançar Hipnos.

    Sêneca balançou a cabeça.

    — Ele disse que também não sabia. Mas Hermes… — Seus olhos de repente pareceram mais alertas. — Ele disse que os dois nas ruínas eram apenas fantoches. Segundo Hipnos, o mestre deles deseja chegar a onde quer que ele esteja.

    Hermes franziu o cenho e apertou o punho contra as duas moedas.

    — E onde ele está?

    Sêneca apertou a própria garganta, como se estivesse prestes a proferir uma profanação.

    — No submundo…

    Hermes arregalou os olhos e se levantou.

    Magno se assustou com a ação repentina, Sêneca se afastou um passo.

    — Então é lá que eles estão… — sussurrou Hermes para si mesmo, olhando para o horizonte. — Entendo…

    Sêneca engoliu em seco, incerto sobre se devia ou não perguntar sua próxima dúvida.

    — E-ele também disse algo estranho, Hermes. — decidiu-se o velho.

    O rapaz o olhou com estranhamento. Havia algo mais estranho a ser dito?

    — O que?

    — Quando eu disse que estava com você, a reação dele foi de surpresa. — Sêneca explicou. — Hipnos me disse que fazia sentido que eu estivesse, já que somente assim seria capaz de ter chegado até ele…

    Magno ouvia com atenção, franzindo a testa mais a cada palavra.

    Hermes parecia impassível.

    — Diga-me, Hermes. — Os olhos do velho agora pareciam se encher de dúvida, mas a expressão estava resignada. — Quem é você?

    Uma brisa pesada soprou na planície praiana, assoviando entre os três e deixando para trás um silêncio desconfortável.

    Hermes olhou para a linha do horizonte, no mar, e falou.

    — Tenho certeza de que ele já te falou. — sua voz expunha uma resignação distante. — Eu sou Hermes, filho de Zeus e Maia…

    Os olhos dos dois ouvintes se abriam mais a cada palavra, o queixo caía.

    — E também, Deus dos Mensageiros, Mercadores, Trapaceiros e Ladrões. — Hermes sorriu.

    Sêneca abriu a boca, mas nenhum som saiu. Ele olhou para o céu, como se esperasse um raio, depois olhou de volta para o homem comum à sua frente.

    — Um Deus? — sussurrou Sêneca. — Aqui? Entre nós?

    — Um Deus caído — corrigiu Hermes. — Eu fui banido. Expulso do Olimpo.

    Ele olhou para as próprias mãos, lembrando-se do sangue que as manchou no passado.

    — Eu fui acusado de traição — continuou Hermes, a voz neutra, relatando os fatos como se lesse uma lista de compras. — Meu pai, Zeus, ficou paranoico. Ele achou que eu conspirava contra ele. Meus irmãos se viraram contra mim. Houve uma luta.

    Hermes fechou os olhos por um breve momento. A imagem de Apolo caindo, a vida se esvaindo dos olhos do Deus do Sol, passou por sua mente. Seus olhos ficaram úmidos por um instante, mas ele afastou a imagem.

    — Eu matei meu irmão — disse Hermes.

    O silêncio pesado imperou sobre o grupo frente à revelação era brutal e sem enfeites.

    — Eu matei um Deus — repetiu Hermes. — E por isso estou aqui. Preso a este corpo mortal e a todos os sofrimentos que a ele acometem.

    Sêneca recuou um passo. O medo estava lá, mas também havia reverência. Ele olhou para Magno, esperando ver choque no rosto do ladrão.

    Magno apenas deu de ombros.

    — Isso explica muita coisa — disse o gatuno. — A velocidade. A força. A mania de dar ordens.

    Hermes olhou para Magno com uma sobrancelha levantada.

    — Você não está surpreso?

    — Eu vi você arrancar a cabeça de uma cópia sua ontem à noite — disse Magno. — E vi você pular trinta metros de altura. Se você me dissesse que era um padeiro, eu ficaria surpreso. Ser um deus faz mais sentido.

    Hermes soltou um ar curto pelo nariz. Um quase riso.

    Ele se levantou e caminhou até Magno. Ele estendeu a Moeda do Olho Entreaberto.

    — Você recuperou isso — disse Hermes. — Por direito de conquista, ela é sua. Quer carregar?

    Magno olhou para a moeda negra com desconfiança. Ele balançou a cabeça negativamente e recuou as mãos.

    — Não — disse Magno, rápido. — Eu gosto de ouro, prata e joias. Coisas que compram vinho e comida. Essa coisa aí… essa coisa mexe com a cabeça. Eu prefiro minhas adagas. Fique com ela. Você entende dessas maldições melhor do que eu.

    Hermes guardou a moeda em uma bolsa de couro presa ao cinto, ao lado da moeda de Tânatos. Agora ele tinha duas. O peso na cintura era reconfortante e terrível ao mesmo tempo.

    Sêneca ainda estava abalado, mas seu rosto parecia mais próximo da calma agora. Seus anos de serenidade treinada não permitiam que se mantivesse inquieto por muito tempo. Ele respirou fundo, uma, duas, três vezes, e sua expressão usual voltou ao rosto.

    Hermes sorriu, lembrando-se da irritação de vê-lo com tanta calma depois de um dia suado de trabalho nas minas. Como se não acreditasse que o tinha de volta, avançou contra o amigo e o abraçou. Sêneca, surpreso, olhou com desconfiança. Magno deu de ombros.

    Em pouco, eles seguiram viagem. Hermes disse que não deveriam perder mais tempo que o necessário ali. O Usurpador voltaria, e voltaria a qualquer momento.


    Enquanto caminhavam sobre a planícia arenosa, Hermes mantinha-se à frente. Depois de alguns bons minutos de silêncio, chegaram ao topo de um aclive que dava uma bela vista para as ilhas de Lesbos. Hermes diminuiu o ritmo, permitindo que seus amigos o alcançassem.

    Lá em cima, enquanto admiravam a paisagem, Magno suspirou.

    — Magno — chamou Hermes.

    — Sim, chefe?

    — O que você viu na ilusão? — perguntou Hermes. — Endimião disse que o sonho prendia a pessoa em seu maior desejo ou medo. Sêneca viu o Tártaro. Eu vi a Guerra de Tróia e a chance de mudar o passado. E você?

    Hermes estudou o rosto do amigo.

    Magno desviou o olhar. Ele olhou para o horizonte, onde o barco deles balançava suavemente na maré. O sorriso de raposa apareceu em seu rosto, mas não alcançou os olhos.

    — Ah, besteira — disse Magno, abanando a mão. — Vi o passado. Coisas antigas. Um passado bem distante, de quando eu era moleque.

    Ele chutou uma pedra na areia.

    — Nada importante — mentiu Magno. — O tédio me acordou. Eu prefiro a emoção da vida real.

    Hermes sabia que era mentira pela tensão nos ombros do rapaz. Mas ele não pressionou. Todos tinham seus fantasmas. Ele tinha Apolo. Sêneca tinha sua mãe. Magno tinha o que quer que fosse que ele enterrou no fundo daquela cidade falsa.

    — Certo — disse Hermes. — Vamos embora.

    Sêneca subiu por último. Ele olhou para trás, para a praia e para as ruínas negras de Tróia.

    A cidade estava morta novamente. O sonho de Endimião havia acabado. Mas a guerra contra o Usurpador estava apenas começando.

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