Índice de Capítulo

    A névoa os engoliu sem aviso. Em um momento, o veleiro cortava as águas escuras sob um céu estrelado; no seguinte, estava envolto em um silêncio branco e leitoso. Não era uma névoa marítima comum. 

    Espessa, com uma umidade que se agarrava à pele e ao convés, abafando o som das ondas e o assobio do vento até que o mundo se resumisse ao rangido da madeira sob seus pés. A visibilidade caiu para poucos metros, transformando o vasto oceano em uma câmara claustrofóbica.

    Magno sacou suas adagas, os olhos varrendo o branco impenetrável que os cercava. A sua postura, normalmente relaxada e confiante, tornara-se tensa, atenta. Ao seu lado, a figura encapuzada de Sêneca permanecia imóvel, um pilar silencioso e indiferente.

    No leme, Hermes sentiu a mudança dentro de si. Não era, aquela, mera manifestação do clima. Algo naquele mundo esbranquiçado fazia os pelos de sua nuca se arrepiarem.

    Concentrado nos sons mais que na visão, encheu a mente com os rangidos da madeira velha do barco. Tenso, começou a notar como o intervalo entre esses barulhos causava-lhe estranhamento. Perdeu-se ouvindo, como num transe. 

    Sentiu o tempo perder a sua consistência, esticando-se e contraindo-se como a respiração de um titã adormecido. A madeira gritava a cada tantos minutos em um breu branco que o confundia.

    A sensação era vagamente familiar, um eco de histórias que ele preferia esquecer, e em sua forma mortal, era profundamente perturbadora. Seu corpo, agora limitado pela carne e pelo sangue, protestava contra a sensação de instabilidade, de incerteza sobre a realidade.

    — Que diabo é isso? — Magno sussurrou, a voz abafada pela névoa.

    Antes que Hermes pudesse formular uma resposta…

    — GRUAAAHHHH! — Um grasnado agudo e animalesco rompeu com o clima de quietude no barco.

    Duas formas irromperam da parede branca, rápidas e brutais. Asas abertas e barulhentas, suas gargantas finas e cobertas de penagens eram ainda mais. Os rostos femininos, velhos e animais. Seus corpos de mulher eram retorcidos, com asas de couro e garras de rapina que riscavam o ar.

    Hermes e Magno se viraram, surpreendidos, as armas em mãos erguidas para os céus.

    — As Harpias! — o jovem de cabelos brancos gritou.

    Uma das criaturas mergulhou em uma trajetória estranha. Hermes reagiu por instinto, a xiphos em sua mão. Ele se moveu com uma velocidade que ainda era impressionante para um mortal, mas era uma sombra de sua antiga glória. A lâmina encontrou as garras da Harpia com um som agudo de metal contra osso, mas a força do impacto o fez recuar, os músculos de seu braço gritando em protesto.

    A segunda criatura ignorou a luta. Com um guincho que parecia rasgar o ar, ela cravou suas garras na vela principal, rasgando o linho grosso como se fosse papel. Magno arremessou uma de suas adagas, a lâmina girando no ar antes de ricochetear inofensivamente contra as asas coriáceas da criatura.

    A primeira Harpia, livre do bloqueio de Hermes, juntou-se à sua irmã em seu trabalho de destruição. Juntas, elas se agarraram ao mastro de madeira. Houve um som nauseante de fibras se partindo, um estalo alto que ecoou na névoa silenciosa, e então, com um último e terrível rangido, o mastro se partiu, desabando sobre o convés em um emaranhado de cordas e lona rasgada.

    Com a sua missão cumprida, as criaturas soltaram um último guincho triunfante e recuaram para a brancura da névoa, desaparecendo tão subitamente quanto surgiram.

    O silêncio que se seguiu foi mais pesado do que qualquer som. O veleiro, agora aleijado e sem rumo, balançava suavemente nas águas invisíveis. Estavam à deriva, presos em um mar sem tempo e sem estrelas para guiá-los, completamente à mercê do que quer que se escondesse naquela névoa profana.


    O tempo se tornou um inimigo invisível, tão denso quanto a névoa que os aprisionava. O conforto de saber se o que os banhava era a luz do sol ou da lua foi substituído por uma claridade cinzenta e difusa que nunca se alterava, roubando-lhes qualquer noção de passagem. A fome era o único relógio confiável, e o de Magno parecia adiantado. Apoiado nos destroços do mastro, ele massageava a barriga com uma expressão de enfado.

    — Pelos deuses, eu comeria um ciclope inteiro agora. Há quantas horas estamos vagando neste purgatório branco? — A voz do gatuno era um lamento, a única que ousava quebrar a monotonia.

    Hermes, que estava sentado na proa, o queixo apoiado na mão enquanto perscrutava a névoa, virou a cabeça lentamente. Uma de suas sobrancelhas se ergueu.

    — Horas?

    A pergunta foi dita em um tom de curiosidade genuína, quase analítica, que fez Magno franzir o cenho.

    — Acredito que já se passaram dias. — Hermes continuou, um traço de seu antigo sorriso zombeteiro tocando os lábios. — Ao menos, é o que a sua fome me faz acreditar. Desde o ataque, você já fez quatro refeições com nossas parcas rações.

    Magno o encarou, a boca entreaberta, pronto para retrucar. A acusação velada de gula o irritou, mas a lógica por trás dela o deixou inquieto. Teria sido tanto tempo assim? Ele se lembrava de comer, mas os eventos pareciam comprimidos, embaralhados pela ausência do sol.

    — Ora, seu branquelo arrogante, você…

    Uma pancada violenta e um rangido ensurdecedor de madeira se partindo interromperam a discussão. O veleiro estremeceu, inclinando-se bruscamente para a proa antes de parar com um solavanco final que jogou todos contra o convés. O silêncio que se seguiu foi quebrado apenas pelo som suave da água batendo contra o que quer que os tivesse detido.

    Encalharam.

    Hermes foi o primeiro a se levantar. Com a xiphos em punho, ele caminhou com cautela até a amurada danificada. A névoa ainda era espessa, mas através dela ele podia ver uma massa escura e sólida. Terra.

    — Fiquem aqui. — Sua ordem foi curta. Com uma agilidade que desmentia seu cansaço, ele saltou do barco, a água fria batendo em suas coxas antes que seus pés encontrassem o solo firme.

    O solo, no entanto, não era o que esperava. Não era a areia macia de uma praia nem o cascalho de uma costa rochosa. Sob suas botas, a superfície era estranhamente firme, mas com uma leve elasticidade, como se caminhasse sobre uma lama úmida e perfeitamente coligada. Cada passo produzia um som surdo e abafado. 

    Magno, impaciente, desceu logo em seguida, a expressão de curiosidade se transformando em desconfiança ao sentir a textura incomum sob seus pés. Sêneca, quieto e misterioso, acompanhou, com movimentos lentos e sem vida, a saída do barco.

    Eles estavam em uma espécie de ilhota, mas a paisagem era hostil e antinatural. Do chão escuro, erguiam-se formações que pareciam rochas, mas eram pontiagudas e serrilhadas, dispostas em fileiras quase simétricas. Feitas de um material negro e quitinoso, assemelhavam-se mais a espinhos que a formações geológicas.

    Não havia árvores, apenas tufos de uma vegetação pálida e de aspecto oleoso que crescia nas frestas daquele solo estranho. Aquele lugar não oferecia refúgio; cada detalhe parecia projetado para repelir, para avisar que não eram bem-vindos.

    Magno deu uma volta lenta, o pé torcido protestando a cada passo manco sobre o solo bizarro. Ele cutucou uma das formações rochosas pontiagudas com a ponta da adaga. O som foi oco, como bater em quitina ou osso.

    — Que lugar adorável — ele resmungou, a voz desprovida de seu humor habitual.

    Hermes não respondeu. Ele estava imóvel, a cabeça ligeiramente inclinada, o olhar fixo não na ilha, mas na água escura e enevoada que a rodeava. 

    O som suave das ondas quebrou, uma ondulação anormal se formando na superfície calma, um movimento que ia contra a lógica da maré. Ele ergueu a mão, um gesto rápido para silenciar o gatuno.

    Magno calou-se, seguindo o olhar de Hermes. Por um instante, não viu nada além da dança lenta da névoa sobre a água. Então, uma forma escura moveu-se sob a superfície. Depois outra, e mais outra. Eram grandes, sinuosas, e se aproximavam com uma velocidade silenciosa e predatória.

    A primeira figura emergiu com um rompimento sonoro da superfície do mar. A água escorreu por uma cabeça lisa e bulbosa, revelando dois olhos imensos, redondos e sem pálpebras, que piscavam lentamente com uma inteligência fria e alienígena. A pele tinha um brilho liso e pálido, como a de um peixe abissal arrancado das profundezas.

    Logo em seguida, outros começaram a surgir, cercando a pequena ilha, cada um uma variação grotesca do mesmo pesadelo. Um possuía uma barbatana dorsal serrilhada que se estendia do crânio até a base das costas, os braços longos terminando em garras de caranguejo. 

    Outro, mais corpulento, tinha a cabeça de um peixe-gato, com barbilhões que se contorciam lentamente no ar, e segurava uma lança rudimentar feita de coral afiado. Ergueram-se das águas em silêncio, uma legião de pesadelos aquáticos, seus corpos humanoides retorcidos em formas que a natureza nunca pretendeu criar.

    Eles não fizeram nenhum som de batalha, nenhum grito de guerra. Apenas se posicionaram, um círculo de morte silenciosa se fechando ao redor dos náufragos. Suas armas, arpões de osso, maças de pedra e obsidiana, foram erguidas em uma sincronia mortal.

    Hermes e Magno puseram-se de costas um para o outro, as armas em punho. Sêneca ao lado dos dois permanecia sem reação. O coração do deus caído martelava em seu peito, um ritmo de guerra contra o silêncio opressivo. Ele olhou para o mar de olhos frios e sem piscar que os encaravam da névoa. Estavam presos. Encurralados entre um barco partido e um exército silencioso que acabara de emergir do abismo.

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