Capítulo 15 | O Mergulho de Cetus
A lâmina fria da xiphos de Hermes estava pressionada contra a garganta lísa e octópode do líder deles, mas a verdadeira arma era o choque paralisante no rosto da criatura. Magno ainda estava imobilizado, a lança em seu pescoço, e os outros Tritões, congelados, aguardavam qualquer movimento, seus olhares písceos divididos entre o líder cativo e a figura impossível de Sêneca que tentava se levantar no chão. A névoa pairava, espessa e silenciosa, como uma testemunha indiferente.
Hermes manteve a pressão, seus olhos dourados fixos nos dois olhos surpresos e irritados do homem-peixe rendido. A voz do deus caído, embora baixa, cortou o silêncio com uma autoridade inquestionável, reverberando mais na mente do líder do que em seus ouvidos.
— Acalme-se, príncipe Tritão. — Hermes enunciou em voz calma — Meu barco foi atacado por suas… ‘aliadas’ Harpias e encalhou nesta ilha quando tentávamos seguir nosso caminho.
O choque de ser chamado pelo nome por um “mortal” misturado ao ultraje de ser dominado se mostrou na face monstruosa do tritão. Seus olhos, inicialmente fixos em Hermes, desviaram-se para o corpo de Sêneca que se movia, e então retornaram para o homem atrás dele. Havia uma fagulha de reconhecimento, uma dúvida inquietante em seu olhar que sobrepujava a fúria. Ele sentiu o poder na voz, uma ressonância estranha que lhe trazia memórias.
Lentamente, com um bufo de ar borbulhante, Tritão ergueu uma mão aberta. Um comando silencioso.
Os Tritões ao redor, embora claramente relutantes e confusos, obedeceram. O homem-peixe que segurava Magno recuou a lança, mas não a baixou completamente.
Magno, aproveitando a liberdade, rolou para o lado e se levantou rapidamente, as adagas ainda em punho. Seu rosto era uma máscara de ódio e confusão, mas a surpresa de ver Tritão parado e os outros recuando o fez hesitar. Ele mancava de leve, resquícios do escorregão na luta anterior.
Hermes afrouxou a pressão da lâmina, mas não a removeu. Seus olhos escanearam a área, avaliando a nova dinâmica. Magno, agora livre, trotou para se postar ao lado de Hermes, seus olhos arregalados de surpresa enquanto olhava para o príncipe massivo.
Hermes então, com um movimento suave e deliberado, retirou a xiphos da garganta de Tritão, guardando-a de volta em sua bainha na lateral da couraça. O príncipe não reagiu, mas seus olhos o seguiram, uma mistura de cautela e uma inteligência que ia além da simples ferocidade.
— Você me conhece… — a voz de Tritão era gutural, profunda como o oceano, suas palavras um gorgolejo estranhamente articulado. — Quem é você, mortal, que ousa me tomar de surpresa e me chamar pelo nome?
Hermes o encarou. A névoa densa fazia seu rosto parecer uma escultura pálida, e seus olhos dourados brilhavam com uma intensidade que fazia Tritão recuar ligeiramente.
— Meu nome é Hermes — ele respondeu, a voz clara e firme, carregada com um eco de eras passadas. — E você, Tritão, é o filho de Poseidon, herdeiro legítimo dos mares. Não somos estranhos, embora o tempo tenha sido cruel com alguns de nós.
Tritão fixou seus dois olhos enormes no deus caído, a surpresa em sua face tentacular se aprofundando. Ele inclinou a cabeça, processando as palavras.
— Herdeiro legítimo… — murmurou, a voz como o atrito de pedras submersas.
Ele fez um gesto com a mão poderosa para seus Tritões.
— Abaixem as armas. Recuem, mas mantenham-se alertas.
Os homens-peixe hesitaram por um momento, olhando para seu príncipe com desconfiança, mas a autoridade em sua voz não podia ser contestada. Eles baixaram suas armas rudimentares, mas a tensão permaneceu no ar, uma corda esticada prestes a romper. Formaram um semicírculo ao redor do grupo, mantendo uma distância cautelosa.
Magno, que até então observava tudo com a boca ligeiramente aberta, fechou-a com um estalo e se virou para Hermes, sussurrando:
— Como você…
— Mais tarde — Hermes o interrompeu suavemente, sem tirar os olhos de Tritão — Agora que nos entendemos, o que está realmente acontecendo aqui? E o que é essa névoa que cobre o mar e nos impede de sair?
Tritão virou-se completamente para Hermes, a figura colossal se impondo sobre o deus caído, mas sem a ameaça de antes. Ele olhou para o mar cinzento e sem fim, seu único olho visível refletindo a névoa densa. Havia uma tristeza profunda em seu gorgolejo enquanto ele começava a contar sua história, uma saga de intrigas e traições nas profundezas do oceano.
— Meu pai, Poseidon, desapareceu… há meses. Desde então, essa névoa… — Ele gesticulou para o vazio branco. — começou a surgir. É um véu, uma manifestação de algo profano que corrói a clareza sobre o mar e banha a mente de meus homens em caos. Muitos dos nossos enlouqueceram só de passar muito tempo nela.
Hermes ouvia com atenção, tentando ligar as informações em uma única resposta para o que enfrentavam.
— E as Harpias. Por que elas atacaram nosso barco e fizeram-nos encalhar nessa ilha se seu objetivo era nos enfrentar de qualquer modo?
Ele fez uma pausa, os tentáculos de seu rosto se contorcendo em frustração.
— Engana-se, mortal. Essas Harpias não são nossas aliadas. Elas trabalham para o usurpador.
— Quem? — A pergunta de Hermes foi direta, os olhos semicerrados lembravam de Brontes em Thasos e seus enigmas inquietantes.
Tritão, no entanto, parecia disposto a alongar a resposta. Hermes não interrompeu, mas certamente esperava por algo mais claro e conciso.
— Meu irmão, Proteu… ele viu a ausência de nosso pai como uma oportunidade. Alegou ter visões, premonições de que ele era o verdadeiro herdeiro, o escolhido para guiar Atlântida em uma nova era.
Magno resmungou, cético:
— Um traidor oportunista, então. Há um em cada esquina no mundo lá de cima.
Tritão lançou um olhar sombrio para Magno que não se abateu, e continuou, a voz carregada de ressentimento.
A voz de Tritão endureceu, um rosnado ameaçador escapando de sua garganta.
— Proteu voltou com aliados. Criaturas que não pertencem a este oceano. As mesmas Harpias que atacaram seu barco… Elas servem a ele.
Um dos Tritões que o acompanhava, um de pele verde-musgo e olhos pequenos numa cabeça de baiacu, agitou sua lança inquieto.
Magno estremeceu, lembrando-se da brutalidade do ataque.
— Harpias? Mas elas não deviam ser criaturas do céu? Como ele as controla?
Tritão balançou a cabeça, os tentáculos se contorcendo.
— Não sei. Mas não são apenas elas. Sereias corrompidas, cujos cantos não atraem, mas enlouquecem e paralisam. — Ele fez uma pausa, seus dois olhos percorrendo o mar envolto em névoa. — Outros monstros das profundezas abissais, que nunca antes se curvaram a um mero príncipe, agora o seguem.
A voz de Tritão endureceu, um rosnado ameaçador escapando de sua garganta enquanto ele batia levemente o punho em seu próprio peito maciço.
— Eles têm atacado nossas defesas, enfraquecendo Atlântida em ataques constantes.
Magno assobiou, uma nota de preocupação genuína em seu rosto normalmente sarcástico.
Hermes não tirou os olhos de Tritão. A verdade se encaixava como as peças de um quebra-cabeça sombrio. As Harpias, a névoa desorientadora, a horda de Tritões… tudo era parte de um conflito maior.
— Entendo — Hermes disse, sua voz calma e medida. — Parece que caímos no meio de uma guerra que não é nossa, Príncipe Tritão. Mas agora que nossos caminhos se cruzaram e que, pelo visto, temos um inimigo em comum, talvez possamos chegar a um acordo.
Tritão ergueu uma de suas mãos lisas como a pele de um polvo, os olhos examinando Hermes com uma inteligência que transcendia a ferocidade de sua espécie.
— Que tipo de acordo você propõe, mortal que se autodenomina Hermes? Seu navio está quebrado, sua tripulação é pequena, e você está em meu domínio, cercado pelos meus.
Hermes permitiu-se um meio sorriso amargo, um gesto que não alcançou seus olhos dourados.
— Eu sou Hermes, o Arauto dos deuses, sim. E embora o tempo tenha me tirado muito, o que me resta ainda pode ser útil. Meu companheiro aqui — ele gesticulou para Magno — é o rei dos ladrões de Therma. E Sêneca… — Hermes hesitou por um momento, olhando para o homem empalado que ainda não morrera. — Sêneca é… vocês viram do que ele é capaz.
Hermes sacudiu a mão no ar, tentando despistar o fato de que não sabia como definir bem a utilidade do velho.
— O que temos pode ser a diferença entre sua vitória e a queda de Atlântida.
Magno abriu a boca para protestar a descrição, mas um olhar de Hermes o silenciou.
— Nós o ajudaremos a manter seu trono e a subjugar Proteu e seus aliados profanos — Hermes continuou, a oferta soando mais como uma declaração de intenção do que uma barganha. — Em troca, você nos garantirá passagem segura por seus domínios e nos auxiliará em nossa própria jornada. Nosso objetivo não é Atlântida, mas um fim para a ameaça que consome não apenas seus domínios, mas toda a Hélade.
Tritão permaneceu em silêncio por um longo momento. Seus olhos percorreram Hermes, depois Magno, e finalmente Sêneca, que ainda estava sentado, emitindo seu murmúrio inaudível.
Ele se virou para seus Tritões.
— Prestem atenção. Este homem é Hermes, e ele e seus companheiros são nossos aliados. Por enquanto.
Um murmúrio de descontentamento percorreu as fileiras dos homens-peixe, mas nenhum ousou contestar. A palavra de seu príncipe era lei.
— O que você pede em sua jornada? — Tritão perguntou a Hermes, a voz ainda rouca, mas com um tom de aceitação. — Qual é o seu objetivo?
— Buscamos o paradeiro de um poder antigo — Hermes respondeu, escolhendo suas palavras com cuidado. — Algo que está distorcendo o tempo, corrompendo as criaturas e ameaçando toda a existência. Se seu pai, Poseidon, desapareceu… é provável que ele também esteja envolvido com isso.
O som de um guincho agudo e dissonante cortou o ar, mais penetrante que a névoa. Um canto distorcido, profano, que parecia arranhar a própria mente, fazendo os Tritões mais próximos cambalearem, as mãos nas orelhas. Os dois olhos de Tritão se arregalaram.
— O canto das Sereias — ele rosnou, o som carregado de pavor. — Proteu… ele está aqui. Eles nos encontraram.
Harpias, ainda mais numerosas do que as que atacaram o barco, mergulhavam das nuvens baixas de névoa, seus gritos agudos e garras afiadas prontas para a carnificina. Sereias, cujas formas ainda eram graciosas, mas cujos rostos eram distorcidos por uma malevolência insana, flutuavam na superfície, seus cantos agudos rasgando o ar.
— Para as armas! Lutem, meus irmãos! — Tritão berrou, erguendo seu tridente.
Mas era uma batalha perdida antes mesmo de começar. As forças de Proteu eram avassaladoras. Os homens-peixe de Tritão, já em menor número e alguns atordoados pelo canto das Sereias, foram massacrados. Harpias mergulhavam, rasgando carne com suas garras e bicos, enquanto os homens-peixe de Proteu, maiores e mais agressivos, avançavam impiedosamente, suas armas batendo com uma fome voraz.
Hermes e Magno lutaram com desespero. A xiphos do deus caído abriu um rastro superficial em uma Harpia, e Magno mergulhou, apunhalando um dos monstros corrompidos no joelho com uma adaga, fazendo-o cambalear. Mas era inútil. A ilhota estava sendo invadida por mais e mais criaturas. A derrota, desta vez, parecia absoluta.
Tritão, vendo seus homens caírem um a um, com um rugido que fez o chão vibrar, tomou uma decisão desesperada.
— Para o fundo! — ele berrou, sua voz gutural cortando o caos. — Segurem-se!
E então, um som estranho escapou de sua garganta. Um borbulho agudo com notas graves que se assemelhavam a palavras nos ouvidos de dementes. Um rugido animalesco e feérico que homem algum sonharia em escutar e se escutasse desejaria esquecer.
A terra sob seus pés tremeu. Não um tremor de batalha, mas um movimento profundo e orgânico. As rochas pontiagudas, que antes pareciam formações inanimadas, começaram a se flexionar, a se erguer e a retrair lentamente, como escamas ou apêndices em um despertar. O chão, com aquela textura estranhamente cárnea, agora pulsava. A névoa, que antes era apenas um véu, tornou-se um sopro quente e úmido vindo de aberturas recém-formadas.
Hermes sentiu a energia colossal sob seus pés. Seu rosto empalideceu. A verdade, tão óbvia agora, atingiu-o com a força de um raio.
— O que está acontecendo!? — Magno gritou em meio ao caos.
— Não é uma ilha! — Hermes respondeu, sua voz se misturando aos gritos das forças de Proteu — É um monstro!
Magno, que tinha acabado de desviar de uma Harpia, olhou para o chão que se contorcia, seu rosto se contorcendo em horror. E então, viu Sêneca, que ainda estava sentado, inabalável pelo caos. Apressou-se em sua direção para trazê-lo consigo. Foi quando viu o velho ser engolido por uma rachadura que se abriu sob ele, desaparecendo nas profundezas da criatura sob seus pés.
O gatuno gritou, mas Hermes o puxou pelo braço em direção aos outros homens de Tritão.

Com um urro final, a ilhota inteira se ergueu da água. Era uma criatura marinha de proporções míticas, um leviatã primordial cujas costas formavam a “ilha” em que estavam. Sua pele, grossa e coberta por aquelas formações serrilhadas, era de um tom rochoso e cinzento, maciça o suficiente para carregar um pequeno ecossistema. Com um movimento lento e inexorável, Cetus, o monstro adormecido, começou a mergulhar.
A água do oceano rugiu sobre eles, uma parede imensa que os engoliu. Magno gritou enquanto Hermes, agarrando-se a uma das protuberâncias escorregadias da criatura, estendeu a mão e puxou-o com força. Os Tritões de Tritão, que ainda restavam, se agarraram às costas de seu guardião primordial, alguns sendo arrastados para o mar revolto pela força do mergulho.
O som da batalha na superfície foi abafado, depois silenciado, enquanto a escuridão abissal os engolia por completo. A pressão da água aumentava, mas uma bolha de ar estranhamente estável os envolvia. Eles estavam sendo levados para as profundezas, para um reino de escuridão e segredos, sobre as costas de uma besta colossal.
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