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    A transição da escuridão abissal para a luz foi súbita e desorientadora. Num instante, estavam envoltos pela pressão esmagadora e pelo negrume do oceano profundo, no seguinte, a água recuou, substituída por um ar frio e respirável.

    Cetus os depositou com uma suavidade que desmentia seu tamanho colossal em uma vasta plataforma de pedra polida.

    Uma das fendas no casco rochoso da criatura, a mesma que havia engolido Sêneca, abriu-se novamente com um som úmido. E de dentro, coberto por um muco translúcido e espesso, o corpo do andarilho foi expelido, deslizando pela superfície coriácea até parar, inerte, na plataforma. O buraco em seu peito, causado pelo tridente, já não estava lá, uma mancha escura restava no lugar, mas seu corpo não mostrava sinais de decomposição ou dano adicional.

    Logo, a forma imensa pôs-se a se afastar e desaparecer de volta na escuridão de onde viera.

    O silêncio que os recebeu era diferente de tudo o que já haviam experienciado. Não era a ausência de som, mas um silêncio preenchido por uma ressonância profunda e constante, como o zumbido de uma concha colossal pressionada contra o ouvido do mundo.

    Estavam no fundo do mar, mas estavam secos. Acima deles, uma cúpula translúcida, vasta e quase invisível, arqueava-se, contendo o peso infinito do oceano. 

    No coração do reino, uma construção colossal de arcos monumentais de pedra negra se erguia como as costelas de um titânico monstro marinho. E flutuando no centro do arco mais alto, um imenso cristal triangular pulsava com uma luz violeta suave, mas constante. Era essa a luz pálida, distorcida e fantasmagórica, que banhava a cidade em um crepúsculo perpétuo.

    Atlântida.

    A cidade era uma obra de arquitetura impossível, um testemunho do poder de um deus, mesmo ausente, sobre o seu domínio. Torres de coral negro e obsidiana erguiam-se em espirais que pareciam desafiar a lógica, conectadas por pontes delicadas tecidas de luz bioluminescente.

    Edifícios grandiosos, com fachadas esculpidas para se assemelharem a lulas gigantes e serpentes ancestrais adormecidas, alinhavam-se em avenidas largas pavimentadas com madrepérola que brilhava suavemente. Jardins de anêmonas e algas de cores vibrantes ondulavam em correntes invisíveis, substituindo árvores e flores. 

    A cidade era majestosa, mas sua beleza era fria, opressiva. A visão constante do oceano escuro e esmagador para além da cúpula era um lembrete perpétuo de que aquilo não era um reino, mas uma prisão dourada no fundo do abismo.

    — Pelos deuses… — Magno sussurrou, a arrogância habitual completamente varrida de seu rosto, substituída por um assombro genuíno. Ele deu um passo à frente, tocando a superfície lisa de um obelisco de coral como se para confirmar que era real.

    Hermes não compartilhava de sua admiração. Ele sentia o peso da água acima deles, a pressão em seus ouvidos, a ausência do céu aberto.

    — Bem-vindos a Atlântida. O último refúgio — a voz de Tritão, agora livre do eco da névoa, era ainda mais profunda e ressonante.

    Assim que pisaram fora da plataforma de chegada, quatro guardas Tritões, cujas armaduras negras brilhavam como obsidiana polida com trechos da proteção que se assemelha a carapaças de caranguejos gigantes, emergiram das sombras de uma colunata. Seus movimentos eram rápidos e precisos, e a tensão em seus rostos era visível. Eles se curvaram brevemente perante seu príncipe.

    — Meu príncipe! — disse o líder da patrulha cuja cabeça, estranhamente humana, escondia guelras nas laterais do pescoço. Sua voz era um gorgolejo urgente. — Recebemos o sinal de Cetus. Estávamos preocupados. O que houve na superfície? Encontrou os batedores de Proteu?

    Tritão assentiu, o cansaço pesando em sua postura colossal.

    — As harpias estavam lá, como o esperado. A névoa está mais espessa do que nunca. — Seu olhar então se voltou para o trio de forasteiros. Os guardas seguiram seu olhar, e suas mãos foram instintivamente para os cabos de suas armas de osso, a desconfiança clara em seus rostos ao encararem os estranhos da superfície, especialmente a figura profana de Sêneca, o morto-vivo.

    Hermes e Magno engoliram em seco, inseguros. Resistiram em retribuir o gesto e aguardaram confiantes em seu novo aliado.

    — Estes… — Tritão hesitou por um instante, escolhendo as palavras. — São convidados. Levem-nos ao palácio. Eles estão sob minha proteção. Precisamos planejar nosso próximo movimento contra Proteu.

    Tritão guiou-os pelas vastas e silenciosas avenidas de Atlântida. O caminho para o palácio era uma demonstração de poder e riqueza que superava qualquer coisa que Magno já tivesse visto no mundo da superfície. Hermes se lembrava de coisas parecidas em suas viagens a outros cantos do mundo. Palácios do oriente, pirâmides nos desertos do sul, mas Atlântida, certamente, guardava um lugar especial dentre as arquiteturas nobres.

    Passaram por colunatas imensas, esculpidas em coral negro e polido, que sustentavam tetos de madrepérola iridescente. A luz bioluminescente, emanando de esferas de cristal que flutuavam no ar e de flora submarina que margeava as avenidas, lançava um brilho azul e verde sobre tudo, criando um ambiente de beleza etérea, mas estranhamente fria.

    Os Tritões que encontravam pelo caminho paravam e se curvavam perante seu príncipe, mas seus olhares se demoravam nos forasteiros com uma hostilidade mal disfarçada.

    O palácio erguia-se no centro da cidade, não como uma única estrutura, mas como um complexo de torres e salões interligados, esculpidos a partir de uma única e colossal montanha de obsidiana submarina. A sua forma imitava a de uma lula de escala colossal adormecida, com torres que se assemelhavam a tentáculos erguendo-se em direção à cúpula distante.

    A recepção no salão principal foi gélida. A corte de Atlântida estava reunida: Tritões nobres, cujas aparências variavam do quase-humano, com peles de tons azuis e verdes e feições delicadas, aos mais grotescos, com características de tubarões-martelo ou peixes-pescadores, adornados com joias de pérolas negras e ouro afundado. Todos os olhos plantares se viraram para eles, repletos de desconfiança nos invasores.

    Magno, sentindo a tensão, tentou fazer o que fazia de melhor: quebrar o gelo com seu charme de gatuno. Ele se adiantou com um sorriso largo.

    — Uma bela morada que vocês têm aqui, senhores. Um pouco úmida para o meu gosto, mas a decoração é de primeira.

    O silêncio foi a única resposta. Seu sorriso vacilou. Um nobre Tritão, com a pele pálida de um peixe das profundezas e olhos completamente negros, apenas ergueu o queixo, olhando-o de cima a baixo com puro desdém. Os costumes e o humor do mundo da superfície não tinham lugar naquele reino abissal. O elogio de Magno não foi só pouco apreciado, foi um insulto.

    Hermes permaneceu um passo atrás, um observador silencioso. Ele analisava a dinâmica de poder, a forma como os nobres se agrupavam, os sussurros trocados atrás de mãos com membranas. A corte não estava apenas desconfiada, estava apavorada. A guerra com Proteu havia envenenado a todos, e eles, os forasteiros, eram apenas mais um sintoma da doença, jamais a cura.

    — Chega — a voz forte de Tritão ressoou pelo salão, silenciando os poucos murmúrios. — Eles são meus convidados. Tratem-nos com o respeito. Preparem aposentos para eles. E tragam o curandeiro do palácio. O homem encapuzado precisa de cuidados.

    Ele se virou para Hermes, Magno e Sêneca, a formalidade da corte pesando em seus ombros.

    — Descansem. Teremos uma audiência privada ao amanhecer. Há muito o que discutir.

    O grupo assentiu.


    Os aposentos designados para eles eram de uma opulência estranha e sufocante. As paredes, feitas de obsidiana polida, refletiam a luz azulada de corais luminosos, criando a sensação de se estar dentro de uma joia. Não havia camas, mas nichos na parede forrados com um tipo de alga marinha incrivelmente macia. Uma pequena cascata interna fluía por uma parede de rocha, o som constante da água substituindo qualquer outro ruído do palácio.

    Magno inspecionou o cômodo com um olhar crítico, tocando a parede fria.

    — Sem janelas — ele observou, a voz ecoando levemente. — Odeio lugares sem janelas. Faz um homem se sentir enjaulado.

    — Ainda bem que você é uma raposa — rebateu Hermes com um sorriso de canto se aproximando de um dos nichos.

    Sua cabeça martelava informações. O palácio, com sua beleza fria e seus corredores silenciosos, parecia mais perigoso do que a ilhota infestada de monstros. Era o coração do império de Poseidon, seu tio, que havia ajudado a expulsá-lo do Olimpo.

    A espera pela audiência privada foi curta. Um guarda Tritão, cuja pele acinzentada e ressecada fazia parecer uma estátua animada, veio buscá-los, informando que o curandeiro já estava cuidando de Sêneca em outro aposento, sem muito sucesso, dizia ele. Eles foram conduzidos por corredores ainda mais opulentos até uma câmara menor, um conselho de guerra particular.

    No centro da sala, havia uma grande mesa circular feita de uma única e colossal pérola negra, sobre a qual um mapa do leito oceânico estava gravado com veios de prata e ouro. Tritão estava de pé, de costas para eles, observando o mapa. A postura régia que ele mantinha no salão principal havia desaparecido, substituída por um cansaço que curvava seus ombros maciços.

    — Meus nobres desconfiam de tudo o que vem da superfície — disse Tritão, sem se virar. — A guerra os tornou paranoicos. Não os culpo.

    Ele finalmente se virou, e seus dois olhos fixaram-se em Hermes.

    — Proteu tem sido metódico. Desde que meu pai desapareceu, os ataques têm se tornado mais audaciosos. Este último solstício… foi um cerco constante.

    “Solstício?”

    A menção do tempo fez Hermes enrijecer sutilmente. Sua mente, instantaneamente, voltou à névoa, à fome de Magno, à claridade cinzenta e interminável.

    Tritão, alheio à reação interna do deus caído, moveu-se para o mapa, apontando com a ponta de seu tridente para diferentes locais.

    — Ele ataca nossas rotas de patrulha aqui, e nossas colônias de cultivo de algas aqui. Pequenos golpes, destinados a sangrar nossos recursos, a nos isolar. Tudo nos últimos meses. É uma guerra de atrito, Hermes, e ao longo do último ano, perdemos mais território do que no último século.

    Hermes permaneceu em silêncio, mas sua mente corria a uma velocidade vertiginosa.

    — Precisamos de ajuda — Tritão continuou, a voz carregada de um desespero que ele tentava esconder sob a fúria. — Meus exércitos são fortes, mas os monstros de Proteu são… profanos. Precisamos de alguém que entenda a natureza de seus novos mestres. O que você pode me oferecer?

    Hermes, arrancado de sua terrível revelação, demorou um instante para responder. Ele olhou para Tritão, depois para Magno, que parecia igualmente chocado com a escala do conflito.

    — Preciso… avaliar a situação — disse Hermes, a voz estranhamente distante. — Entender a natureza de seu inimigo. Preciso de um lugar alto. Um observatório, talvez. Algo com vista para o… céu.

    Tritão franziu os tentáculos, confuso.

    — Céu? Bem… há o Pináculo do Oráculo, a torre mais alta do palácio. Oferece a melhor visão da cúpula e das correntes astrais.

    — Leve-me até lá — Hermes ordenou, a urgência em sua voz mal contida.

    Seus olhos vagaram inquietos tentando afastar as hipóteses terríveis que formulava. Temia, com cada fibra de seu ser, que o céu submarino apenas confirmaria o pesadelo que já se formava em sua mente.


    O Pináculo do Oráculo era a agulha mais alta do palácio, uma torre solitária de obsidiana que tocava a cúpula protetora. A subida foi silenciosa, uma espiral de degraus de coral que parecia levar para fora do mundo. No topo, uma câmara aberta os recebeu. Não havia teto, apenas a visão direta da abóbada translúcida e, para além dela, a escuridão infinita e esmagadora do oceano.

    O “céu” de Atlântida não era salpicado de estrelas, mas atravessado por rios lentos de luz. Eram as correntes astrais, vastos fluxos de plâncton bioluminescente e energia marinha que se moviam em padrões previsíveis e milenares, as constelações dos deuses do mar.

    Tritão e Magno permaneceram perto da entrada, observando com uma curiosidade confusa enquanto Hermes caminhava até a borda da torre. O deus caído parou, ignorando o abismo abaixo, e ergueu o rosto para a escuridão acima. Sua respiração se acalmou, seu corpo adquiriu uma quietude concentrada.

    Por milênios, ele navegara os céus guiado por padrões imutáveis. Ali, nas profundezas do mundo, ele procurava pela mesma certeza.

    Seus olhos dourados encontraram o primeiro marcador: a Corrente da Serpente, um fluxo sinuoso de luz verde-pálida. Ele a seguiu com o olhar, medindo sua posição em relação ao palácio. Estava onde deveria estar. Ele sentiu um breve alívio. Então, procurou pelo segundo marcador, o Enxame de Nereidas, um aglomerado cintilante de luz azulada.

    E foi aí que o gelo começou a se formar em seu estômago.

    O Enxame estava ali, claro e distinto. Mas sua posição em relação à Serpente estava errada. Estava sutilmente adiantado em seu ciclo, deslocado para o leste. Na mente de Hermes, o mapa celestial dos mares gravado pela própria eternidade, registrou a anomalia. 

    Ele procurou um terceiro ponto de referência, a Lágrima de Tétis, e um quarto. Todos estavam lá. E todos estavam errados. Consistentemente, implacavelmente, errados.

    Ele começou a traçar as trajetórias em sua mente, os padrões se sobrepondo, a velocidade das correntes, a rotação do mundo. Os cálculos eram instantâneos, instintivos, a matemática do cosmos que ele conhecia como a sua própria respiração. Cada resultado apontava para a mesma conclusão impossível.

    — O que foi? O que você viu? — Magno perguntou, a tensão em sua voz quebrando o silêncio.

    Hermes não respondeu. Ele baixou o olhar do céu abissal para suas próprias mãos. Estavam tremendo. Ele olhou para Tritão, o príncipe que falara sobre o último ano de guerra. Olhou para Magno, o ladrão que perdera seus amigos há poucos dias na superfície, ou assim eles pensavam.

    A névoa estranha não os havia retido. Havia os arremessado para frente.

    A boca de Hermes se abriu, mas o som que saiu foi apenas um sopro de ar, um sussurro rouco e quebrado, carregado de um horror absoluto.

    — Um ano.

    Magno franziu o cenho. 

    — Um ano o quê?

    Hermes o encarou, e a agonia em seus olhos dourados fez o gatuno se inquietar.

    — Estamos há um ano dentro da névoa.


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