Capítulo 17 | A Corte (1)
As palavras de Hermes caíram no silêncio do pináculo como pedras em um poço. “Estamos há um ano na névoa.” Magno o encarou, a confusão inicial em seu rosto dando lugar lentamente à descrença.
— Um ano? — ele repetiu, a voz pouco mais que um sussurro. Ele tentou rir, um som seco e sem humor que morreu em sua garganta. — Não seja ridículo, desbotado. Estivemos naquele barco por… alguns dias. Uma semana, no máximo.
Ele parou, esperando que Hermes admitisse a piada de mau gosto. Mas o deus caído apenas o encarava, a agonia em seus olhos dourados era uma confirmação silenciosa e terrível. A mente de Magno, rápida e analítica, começou a conectar os pontos: a fome desregulada, a claridade cinzenta e interminável, as palavras de Tritão sobre um “ano” de guerra. As coisas que vira nos últimos dias já não permitiam que duvidasse de nada, nem mesmo do improvável e sobrenatural.
O chão da torre de obsidiana pareceu oscilar sob seus pés.
O último sussurro de Neo. O horror, tão fresco e visceral em sua mente como se tivesse acontecido ontem, era agora uma cicatriz de um ano no mundo. Um ano.
Um ano em que ele esteve ausente, preso, enquanto os corpos de sua família eram… o quê? Limpos das ruas? Esquecidos? Seu choque não era de incerteza, mas de profanação. Roubaram-lhe não apenas sua família, mas o próprio tempo de seu luto. Teria ainda alguma chance de encontrar os culpados na superfície?
Tamanho era o tempo perdido. E se os rastros da feiticeira já tivessem sido apagados pelo tempo?
Rangeu os dentes.
— Nós precisamos sair daqui. Agora — ele rosnou, dando um passo em direção à saída, a mão já no cabo de uma de suas adagas.
— E ir para onde, Magno? — A voz de Hermes era calma, mas pesada como uma âncora. — Nadar até a superfície? Estamos no fundo do oceano, à mercê de um príncipe em guerra. Nossa única saída, por enquanto, é através deles.
A lógica implacável de Hermes o deteve. Magno parou, os ombros caindo em derrota, o corpo tremendo com uma raiva impotente. Ele socou a parede de coral, o som surdo ecoando na quietude da torre, antes de se virar, o rosto desfeito em dor e numa resignação impotente.
Foram interrompidos por um guarda Tritão, que os aguardava na entrada da câmara. Ele os informou que o Príncipe Tritão os convocava ao Grande Salão do Conselho para a reunião estratégica que havia sido requisitada pela corte no dia anterior.
Encontraram-no no centro do corredor que levava ao salão. Pouco restava do guerreiro selvagem da ilhota.
Sobre seu torso cinzento e musculoso, ele vestia uma couraça cerimonial de obsidiana polida. No centro do peitoral, um tridente azul brilhante, forjado de um metal desconhecido, pulsava com uma luz interna.
Hermes reconheceu a peça de imediato. Era a armadura de guerra de seu tio, Poseidon, cujas histórias de seu uso na titanomaquia ainda ressoavam em sua mente. “Então ele a tinha o tempo todo”, pensou, “Por que não a usou na batalha?”. A pergunta pairou em sua mente, sugerindo uma cautela ou uma relutância por parte de Tritão que o intrigava.
Seus tentáculos faciais estavam adornados com anéis de ouro afundado, e sobre sua cabeça repousava uma coroa de coral claro, quase branco, com uma única e grande pérola negra cravada no centro. Sua postura, no entanto, não parecia com a de um rei, mas a de alguém fantasiado de um.
— Sigam-me — disse ele, a voz desprovida de sua fúria anterior, substituída por um peso formal. — O Conselho nos aguarda.
Hermes pareceu se dar conta de algo, finalmente, como se lembrando-se de súbito de uma informação com a fala de Tritão.
— Um parlamento? — Hermes sussurrou para o prícipe enquanto entravam, a surpresa genuína em sua voz. — Desde quando o Trono do Mar precisa de um conselho para governar?
A pergunta, que revelava um conhecimento íntimo da política absoluta de Poseidon, fez com que Tritão o encarasse com uma curiosidade renovada, mas ele não teve tempo de responder, os olhares pesaram sobre os três de maneira quase material.
O Grande Salão do Conselho era uma vasta caverna natural, adaptada para se tornar o coração do poder de Atlântida. O teto, a dezenas de metros de altura, era coberto por cristais que emitiam uma luz azulada e suave.
No centro, uma imensa mesa circular, esculpida no osso fossilizado de algum leviatã ancestral, era cercada por tronos de coral. Vários nobres Tritões já estavam sentados, suas formas imponentes e variadas em sua monstruosidade. Ao ver seu príncipe, todos se levantaram em um gesto de respeito que pareceu relutante, não por ele, mas pelos seus acompanhantes. A atenção deles imediatamente se voltou para os forasteiros, e a hostilidade no ar era palpável.

Tritão tomou seu lugar à cabeceira da mesa de osso, seu trono de coral sendo o maior e mais ornamentado. Ele não se sentou de imediato. Permaneceu de pé, seus dois olhos percorrendo os rostos dos nobres ali reunidos. Hermes e Magno foram posicionados ligeiramente atrás dele, não como membros do conselho, mas como peças em exibição, o centro de todo o debate.
— Convoquei este conselho — começou Tritão, a voz ressoando na câmara silenciosa — para apresentar nossos novos… aliados. Eles vêm da superfície. Suas habilidades e seu conhecimento sobre as forças que servem a Proteu podem ser a chave para virar esta guerra.
A declaração foi recebida com um silêncio pesado. Então, um dos nobres, uma figura maciça e brutal, bateu o punho fechado na mesa de osso, o som um baque surdo e ameaçador. Sua cabeça, larga e achatada, com olhos posicionados nas laterais, era inconfundivelmente a de um tubarão-martelo. Cicatrizes antigas, brancas contra sua pele cinzenta e áspera, contavam histórias de inúmeras batalhas.
— Aliados? — ele rosnou, a voz grossa que parecia arranhar a garganta até mesmo de quem a ouvia — O que estes… seres da superfície… podem nos oferecer que a força de Atlântida já não possua? São frágeis. Lentos na água. Trazê-los para o coração de nosso reino é uma imprudência.
Tritão virou-se para o orador, seus tentáculos faciais tremiam às pontas, estava irritado.
— General Kymos, sua bravura é conhecida e não duvido de suas capacidades analíticas — A voz calma do regente contrastava com sua expressão tensa — Mas o inimigo que enfrentamos não é um exército comum. Eles tem mais números, artifícios profanos e poderes de origens desconhecidas.
Antes que Kymos pudesse retrucar, outra voz, suave e eloquente, cortou a tensão.
— O General fala com a honra de um guerreiro, e isso é louvável. — O orador era Lorde Theron. Seus traços eram finos, quase humanos, e sua pele de um azul profundo parecia absorver a luz ambiente.
Ele se levantou, um sorriso diplomático no rosto, dirigindo-se não a Kymos, mas a todo o conselho.
— No entanto, a sabedoria de nosso príncipe reside precisamente em reconhecer a natureza do inimigo. — seu braços se levantaram, gesticulando como um professor — Se Proteu busca alianças em domínios profanos, por que nós, defensores da ordem, nos limitaríamos apenas às nossas próprias fronteiras? A prudência não está em rejeitar o inesperado, mas em saber usá-lo a nosso favor.
Hermes observou Theron em silêncio. Havia uma lógica impecável em suas palavras, uma astúcia que desarmava a agressão direta de Kymos. Magno, ao seu lado, cruzou os braços, o olhar estreito, avaliando a conversa dos nobres do mar que os tratava como bestas em exposição, como se não pudessem ouví-los.
Uma terceira voz, mais suave e hesitante, juntou-se ao debate. Era Lady Neria. Suas longas barbatanas iridescentes, que fluíam de sua cabeça e costas como um véu de seda, ondulavam suavemente enquanto ela falava.
— Lorde Theron tem razão em sua lógica — ela disse, a voz melodiosa. — Mas o General também levanta uma questão válida.
Então, a lady se levantou também de seu trono num movimento gracioso e fluido, a pose era nobre, mais que qualquer outro no recinto, e não apenas em um sentido aristocrático.
— Qual o preço desta aliança? O que estes forasteiros desejam em troca? — os olhos dela se voltaram, finalmente, para Magno e Hermes, como se fosse a primeira a notá-los — A lealdade comprada é uma moeda volátil, e em tempos de guerra, não podemos nos dar ao luxo de investir em incógnitas.
A pergunta pairou no ar, ecoando a desconfiança de toda a corte. O conselho estava claramente dividido. A força da tradição e do orgulho de Kymos de um lado, a lógica pragmática de Theron do outro, e a cautela de Neria no centro. Hermes viu o peso da decisão recair sobre Tritão, que parecia desconfortável em sua armadura real, um guerreiro forçado a se tornar um político.
O silêncio era uma pressão, uma demanda por uma resposta que pudesse acalmar os medos de um reino em guerra.
Limpando a garganta, Hermes estava prestes a falar, quando uma voz grave rompeu o silêncio do salão como uma onda de arrebentação.
— É esta a sua ideia, Príncipe? — Ele rosnou, o corpo maciço inclinado para a frente sobre a mesa de osso, a cabeça de tubarão-martelo virada na direção de Tritão. — Eles não oferecem nada além de silêncio às nossas dúvidas, e o senhor nos pede para lhes aceitar prontamente? Poseidon jamais permitiria tal fraqueza!
A acusação de fraqueza e a menção a seu pai fizeram Tritão enrijecer. A couraça de Poseidon em seu peito pareceu pesar uma tonelada. Ele abriu a boca para responder, a fúria de um guerreiro insultado começando a queimar em seus olhos, mas foi novamente a voz suave de Lorde Theron que se interpôs.
— General, a prudência de nosso príncipe não é indecisão — disse Theron, com uma calma que desarmava a agressão de Kymos. Ele se levantou, a postura elegante, a pele azulada brilhando sob a luz dos cristais. — Ele nos trouxe os forasteiros para deliberação, não para impor sua vontade. Isso não é fraqueza, é a força de um líder que respeita seu conselho.
Kymos bufou, mas se recostou em seu trono, momentaneamente apaziguado pela lógica lisonjeira.
Tritão olhou de um nobre para o outro, o cansaço visível em seu rosto. Ele não era seu pai. Não era um tirano nascido para governar com punho de ferro. Era um filho tentando honrar um legado em meio a uma tempestade.
Com um gesto lento e pesado, ele fez algo que chocou o conselho. Ele retirou a coroa de coral claro de sua cabeça e a depositou sobre a mesa de osso. O som suave do coral tocando a superfície polida foi a única coisa ouvida no salão subitamente silencioso.
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