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    Com um gesto lento e pesado, ele fez algo que chocou o conselho. Ele retirou a coroa de coral claro de sua cabeça e a depositou sobre a mesa de osso. O som suave do coral tocando a superfície polida foi a única coisa ouvida no salão subitamente silencioso.

    — Eu não uso esta coroa por desejo — disse ele, a voz desprovida da formalidade de um príncipe, soando agora apenas como a de um filho sobrecarregado. — Eu a uso porque meu pai desapareceu e seu trono não podia ficar vazio e nem poderia ser entregue a um louco. 

    E então, como um general, ele se levantou de seu trono, seu peito finalmente se estufou e a couraça de poseidon pareceu crescer com sua figura forte.

    — Kymos, você fala da força de Atlântida, e eu concordo. Mas nossa força está sangrando, dia após dia, contra um inimigo que usa veneno e sombras onde nós usamos lanças e honra.

    Ele então se virou para Hermes e Magno, seu olhar não mais o de um rei para seus súditos, mas o de um soldado para possíveis camaradas.

    — Estes… homens… — ele disse, incerto, com um olhar rápido para Hermes que o recebeu com surpresa — …enfrentaram as criaturas de Proteu e sobreviveram. Eles viram as Harpias, sentiram a névoa e parecem entender sua natureza. Eles conhecem uma faceta desta guerra que nós, em nossa fortaleza, apenas imaginamos.

    Seu olhar varreu o conselho, parando em cada nobre, em Neria, em Kymos, em Theron.

    — Eu não lhes peço que confiem neles. — Sua voz era um apelo, humilde e cru. — Peço que confiem em mim. No meu julgamento. Apenas desta vez. Deixem-me usar todas as armas que os mares me trouxeram, mesmo as mais inesperadas.

    O silêncio que se seguiu foi diferente. Não era hostil. Era pensativo. Lady Neria foi a primeira a quebrar o feitiço. Ela olhou para Tritão, para a vulnerabilidade e a determinação em seu rosto, e um leve aceno de cabeça selou sua decisão.

    — O apelo de nosso príncipe é justo — ela disse, a voz clara. — Que seja feita a sua vontade.

    Theron sorriu, um gesto de triunfo discreto. — Eu sempre estive ao seu lado, meu príncipe.

    Kymos, o último bastião da oposição, soltou um longo e ruidoso suspiro pelas guelras. Ele olhou para a coroa sobre a mesa e depois para o rosto nu de seu príncipe.

    — Que os deuses do mar nos perdoem se esta for a maré que nos afogará — ele resmungou, mas em seu tom havia uma resignação.

    A aliança estava selada.


    A centenas de léguas de distância, em uma fenda abissal onde a luz de Atlântida era apenas uma lenda, a escuridão imperava soberana. Ali, um templo antigo e esquecido, dedicado a uma deidade do mar há muito morta, havia sido reclamado. As colunatas outrora grandiosas estavam quebradas, cobertas por uma flora abissal pálida e fantasmagórica que emitia um brilho fraco e doentio. O silêncio, pesado e absoluto, subjugava até mesmo os sons do pensamento.

    No centro do santuário profanado, sobre um trono improvisado feito dos ossos de uma baleia, estava sentado Proteu. Seu corpo, semelhante ao de seu irmão em poder, era mais esguio, com uma pele quase translúcida que revelava veias escuras pulsando por baixo. Seus tentáculos faciais eram mais finos, mais agitados, e seus dois olhos, de um azul gélido, percorriam as figuras à sua frente com uma impaciência predatória. Sem uma coroa, sua postura era a de um tirano entediado. Ao lado do trono, um tridente negro repousava em pé, forjado de um metal desconhecido que parecia devorar a pouca luz do ambiente.

    Abaixo da curta escadaria que levava ao seu trono, dezenas de nobres Tritões estavam ajoelhados. Não havia mesa de conselho, nem debate. Apenas a subserviência silenciosa de cabeças baixas e costas curvadas. Eram os exilados, as casas nobres que haviam se recusado a jurar lealdade a Tritão, agora reduzidos a suplicantes na corte sombria do Usurpador.

    Um deles, um Tritão mais velho com a pele pálida e manchada, ousou erguer o olhar por uma fração de segundo. Seus pensamentos eram um veneno silencioso.

    “Fraco”, ele pensou, não sobre Proteu, mas sobre o irmão que deixara para trás. “Tritão, com sua honra e seus conselhos… ele afogaria Atlântida em sua própria indecisão.”

    Ele baixou a cabeça novamente, o chão de pedra fria contra sua testa. “Este… este ao menos tem a força para tomar o que quer. Mesmo que seu caminho seja pavimentado com monstros e escuridão… é o caminho do poder. É o único caminho que resta.”

    Proteu se levantou, o movimento súbito fazendo com que todos os nobres ajoelhados se encolhessem instintivamente. Ele desceu os degraus lentamente, sua sombra se alongando sobre seus seguidores.

    — Falharam — disse ele, a voz um silvo frio que cortou o silêncio. Ele parou diante da primeira fileira de seus seguidores. — Meu irmão ainda vive. Os servos da superfície que o acompanham ainda respiram. Enviei uma frota, Harpias, Sereias… e mesmo assim, eles escaparam.

    Ele começou a caminhar lentamente em frente aos nobres ajoelhados, o tridente negro arrastando-se levemente no chão de pedra produzindo um ruído gasturante.

    À frente do ancião que há pouco refletia sobre seu irmão, Proteu parou.

    — Lorde Lykon. — o Usurpador chamou o servo à frente, cujas feições de enguia, de pele pálida, brilhavam de suor frio. — Não eram as suas Sereias que deveriam garantir que nenhum deles escapasse com vida? Seu canto não era… infalível?

    — Meu… meu senhor… — o nobre gaguejou trêmulo, erguendo a cabeça lentamente, o terror evidente em seus olhos.

    O tridente negro subiu e desceu em um arco brutal. A ponta da arma atravessou o rosto de Lykon com uma força esmagadora, perfurando o crânio como se fosse um favo de mel e cravando sua cabeça no chão de pedra.

    Um som úmido e final ecoou pelo templo, os engasgos do lorde em seu próprio sangue nobre. Os outros nobres se encolheram ainda mais, o medo tão palpável que parecia sufocá-los, mas nenhum ousou emitir um som.

    Proteu arrancou o tridente com um puxão indiferente, o sangue escuro de Lykon escorrendo pelas pontas negras da arma. Ele olhou para o corpo sem vida e depois para o resto de seus seguidores, os olhos azuis gélidos desprovidos de qualquer emoção.

    — Meu irmão trouxe cães da superfície para dentro de nossos salões — disse ele num silvo frio e ruidoso. — Ele busca a ajuda de seres do ar, imundos e frágeis, para lutar uma guerra que pertence ao mar.

    Ele parou em meio aos nobres, que tremiam sob o peso de cada palavra.

    — Ele nos mostra sua fraqueza. Sua desesperança. — Proteu sorriu, um gesto desprovido de qualquer calor. — E nós lhe daremos o golpe final. A era de meu pai, a era de meu irmão… acabou. Uma nova maré está subindo. E ela lavará toda a fraqueza de Atlântida.


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