Capítulo 18 | Vistam-se e Lutem (2)
A discussão caótica foi interrompida por um som de alarme vindo de fora do salão. As grandes portas de coral se abriram com um estrondo, e dois batedores, feridos e ofegantes, tropeçaram para dentro, apoiando-se um no outro.
— Meu príncipe! — um deles engasgou, o sangue escorrendo de um corte em sua guelra. — Uma frota… Uma frota massiva se aproxima do portão oeste. A maior que já vimos.
General Kymos se virou com um rugido enfurecido, seus pequenos olhos se estreitaram ainda mais no rosto de tubarão-martelo tornando-o ainda mais ameaçador. Sem dizer uma única palavra, ele agarrou seu elmo ossuoso que repousava sobre a mesa e marchou para fora do salão
A reunião do conselho se desfez. Nobres Tritões, cujos rostos antes exibiam arrogância e desdém, agora mostravam uma urgência apavorada. Alguns gritavam ordens para seus servos, outros corriam para seus próprios postos de comando.
Em meio à confusão, Tritão permaneceu imóvel por um instante, o peso do ataque iminente preso nas linhas de seu rosto. Ele se virou para Hermes e Magno, a formalidade da corte desapareceu.
— A hora da conversa acabou — disse ele, a voz grave. — A fúria de Proteu está sobre nós. Vocês lutarão ao nosso lado?
— Viemos até aqui, não foi? — Magno respondeu, um sorriso tenso e perigoso em seu rosto. — Não vou embora sem antes molhar minhas velhas lâminas no sangue de alguns monstros.
Hermes apenas assentiu, seus olhos dourados fixos na saída do salão, a mente já no campo de batalha.
“Velhas lâminas.” Refletiu o príncipe encarando as adagas que pendiam ao lado do corpo de Magno. Depois de ‘pentear’ seus tentáculos, ele acenou pesadamente.
— Então venham. Precisam estar equipados — Tritão ordenou, guiando-os para fora do salão, não em direção aos seus aposentos, mas por um corredor escuro que parecia descer às entranhas do palácio.
O arsenal real era uma câmara vasta e fria, as paredes de pedra bruta repletas de armas que contavam a história de milênios de soberania sobre os mares. Lanças de coral farpado, espadas forjadas com dentes de megalodontes e escudos feitos das carapaças de tartarugas colossais repousavam em seus suportes, cada peça emanava uma energia ancestral e poderosa.
Tritão os levou adiante no corredor até uma seção mais obscura, com ares de mistério.
— A força de vocês é inegável, mas suas armas da superfície não resistirão à pressão e à violência que virá.
Ele abriu um baú de obsidiana. De dentro, retirou uma couraça negra, lisa e sem adornos, feita de um metal que parecia absorver a luz. Ao lado dela, uma xiphos de lâmina igualmente escura.
— Para você, Hermes. Forjada no fogo de um respiradouro vulcânico. É leve, mas mais resistente que qualquer aço que possa encontrar acima do mar.
Em seguida, ele se virou para Magno, apresentando duas adagas esculpidas em um único pedaço de obsidiana, afiadas a ponto de parecerem imateriais, e uma malha fina, tecida de um metal flexível e escuro.
— Para que sua agilidade não seja comprometida. Tente não escorregar dessa vez.
Seria possível jurar que um sorriso curto se formou abaixo dos tentáculos na face do príncipe Tritão.
Enquanto Magno testava o peso das adagas com um aceno de aprovação, encantado e indiferente à piada do regente, seus olhos de ladrão, sempre em busca de algo valioso ou incomum, varreram a sala. Foi então que ele as viu, penduradas em um suporte de coral, quase esquecidas. Eram um par de sandálias de couro tratado, mas presas aos calcanhares de cada uma havia conchas com um formato estranho, em espiral e com um brilho iridescente.
— Ei, Príncipe — Magno chamou, apontando com o queixo. — E aquelas ali? Servem para alguma coisa ou são só para enfeitar os pés dos nobres mortos?
Tritão seguiu seu olhar e um raro sorriso de diversão apontou nos cantos de seu rosto octópode.
— Relíquias da Primeira Guerra. Diz a lenda que imitam o impulso de um… bem, de um golfinho, eu acho. Permitem que o usuário salte através da água em curtas e rápidas propulsões. — Ele coçou o topo da cabeça de forma desconfiada — Ninguém as usa há séculos. Acha que consegue lidar com elas, humano?
Magno sorriu de volta, o desafio aceito.
— Se me der um empurrãozinho, acho que consigo fazer um estrago.
Enquanto Magno se apressava para calçar as sandálias, Tritão abriu um compartimento menor, revelando dois artefatos estranhos: máscaras delicadas, feitas de um metal dourado e cristal, com membranas finas que cobriam a boca e o nariz.
— Artefatos antigos. Da última vez que recebemos visitantes… terrestres. Elas permitirão que respirem nas águas abertas, onde a batalha será travada.
Magno e Tritão discutiam o encaixe das máscaras. Os olhos de Hermes, por sua vez, haviam encontrado outro objeto. Jogado em um canto escuro, quase esquecido, havia um arpão. Era longo, negro, feito do mesmo metal que não refletia a luz, mas sua ponta era diferente, farpada em padrões estranhos e com um brilho sutil e doentio. Havia algo nele, uma energia que o incomodava.

— Príncipe — disse Hermes, a voz baixa, interrompendo a conversa. — Aquilo. Eu o quero.
Tritão seguiu seu olhar, a confusão em seu rosto.
— O arpão? — Ele semicerrou os olhos, reflexivo. — Ninguém sabe sua origem ou propósito. Alguns dizem que está amaldiçoado.
— Mesmo assim. Eu o levarei — Hermes insistiu.
Tritão hesitou por um instante, mas a urgência da batalha iminente superou sua cautela.
— Que seja. Mas tenha cuidado. Nem mesmo meu pai conhecia os segredos dessa arma.
O som profundo e ressonante das conchas colossais de alarme ecoou pelo palácio, uma vibração que parecia abalar a própria fundação de Atlântida. A invasão havia começado.
Eles correram para os estábulos submarinos, vastas cavernas inundadas onde as montarias de guerra de Atlântida eram mantidas. Eram criaturas magníficas e aterrorizantes: tubarões com couraças de obsidiana, arraias gigantes com caudas farpadas e peixes-pescadores colossais cujas iscas bioluminescentes serviam como faróis na escuridão. Tritão, estranhamente, chegou logo atrás deles já sem o peitoral de Poseidon. Hermes franziu o cenho quando o avistou, mas não pensou ser boa hora para questioná-lo sobre isso.
Hermes e Magno, agora com suas máscaras ativadas, montaram duas das bestas, a sensação da água envolvendo-os estranha, mas respirável. Ao lado deles, Tritão montava um imenso cavalo-marinho de guerra, sua armadura de Poseidon brilhando na penumbra. Eles se juntaram à frota de Kymos, um exército de Tritões montados que se formava nos portões do palácio, suas armas erguidas, os rostos uma mistura de medo e determinação.
Com um grito de guerra gutural de seu general, a frota avançou, uma avalanche silenciosa e mortal que se lançou para a escuridão das águas abertas, em direção à luz bruxuleante que se aproximava dos portões de Atlântida.


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