Índice de Capítulo

    O som profundo das conchas de alarme ainda vibrava na água quando a frota defensiva de Atlântida emergiu dos portões principais. 

    General Kymos ia à frente, montado em seu colossal tubarão-martelo blindado, a lança de osso firmemente segura. Dezenas de guerreiros Tritões o seguiam, uma formação silenciosa e letal sobre arraias de guerra, enguias couraçadas e outras bestas adaptadas às profundezas. As luzes bioluminescentes de suas armaduras de obsidiana eram pontos frios na escuridão aquática.

    Hermes e Magno estavam entre eles, deslocados.

    A máscara dourada pressionava o rosto de Hermes, sua respiração se fazia forçosa e estranhamente audível dentro dela. A sensação da água envolvendo seu corpo, a pressão em seus ouvidos, a forma como a luz se refratava e distorcia as distâncias. Era um mundo estranho em que se encontrava. 

    Tentava controlar seu tubarão blindado, uma montaria poderosa, mas estranha aos seus instintos. O arpão negro preso às suas costas incomodava, a xiphos escura em sua mão, quase inútil contra a resistência da água.

    Magno, inicialmente, agarrou-se à sua arraia gigante, usando a velocidade natural da criatura para flanquear os primeiros vultos inimigos que surgiam da escuridão. 

    Suas adagas de obsidiana eram rápidas, encontrando carne pálida, mas os golpes pareciam absorvidos pela água, sem a força letal que possuíam em terra. A arraia girava sob seu comando, mas ele se sentia limitado, uma faca tentando lutar dentro de um barril de óleo espesso.

    À frente, Tritão, sem a couraça brilhante de seu pai, lutava ao lado de Kymos. Seu cavalo-marinho de guerra era ágil, o tridente real um borrão anil de morte, mas a ausência da armadura ancestral era notável, uma vulnerabilidade autoimposta.

    Um pouco de luz emergiu no fundo do mar, e com ela, aos olhos o inimigo surgiu. Uma maré de horrores. 

    Tritões renegados, a pele pálida e doente, olhos vazios, montados em lulas-vampiro que pulsavam com uma luz interna vermelha. Serpentes marinhas de múltiplas cabeças retorciam-se entre eles. E as Sereias. Corpos esqueléticos envoltos em algas podres, rostos contorcidos de ódio, olhos vermelhos fixos nos guerreiros de Atlântida.

    O choque foi imediato. O som abafado de metal batendo em osso, o gorgolejo de Tritões morrendo, a água tingindo-se lentamente de um icor escuro e oleoso. 

    Kymos rugiu, um som quase inaudível na água, e investiu contra a vanguarda, sua lança estilhaçando a carapaça de uma lula. 

    Hermes tentou seguir, proteger o flanco de Tritão, mas seus movimentos eram lentos. Aparou um tridente enferrujado, o impacto reverberando por seu braço, quase o arrancando do tubarão que montava.

    Do outro lado, Magno estalou a língua. Acostumado à liberdade e malandragem das lutas na superfície, uma batalha montado era nobre demais para seus costumes. 

    Vendo uma Sereia corrompida se aproximar, a boca se abrindo para liberar seu canto, ele agiu. Sinalizou para a arraia recuar e se impulsionou da sela. Flexionou os tornozelos e arqueou os dedos dos pés, assim como príncipe o havia orientado a fazer. Foi um caos.

    Um pulso de luz azul irrompeu das conchas em seus calcanhares, lançando-o pela água com uma força inesperada. Ele girou descontroladamente por um instante, quase colidindo com um Tritão aliado, antes de conseguir estabilizar. 

    Tentou um segundo impulso, mirando a Sereia, mas calculou mal a força e passou zunindo por cima dela, quase se chocando contra uma parede de coral. Os inimigos próximos viraram suas cabeças bulbosas em sua direção, confusos com aquele projétil humano errático.

    — Droga! — ele praguejou dentro da máscara.

    Ao mesmo tempo em que Magno tentava dominar suas novas e erráticas sandálias, Hermes enfrentava sua própria batalha contra a física submarina. Seus golpes eram lentos, cada aparada exigia um esforço desproporcional contra a resistência da água. 

    Com muito esforço e sendo ajudado por seus aliados, conseguiu abater um Tritão renegado com um golpe de sorte no pescoço desprotegido, mas foi imediatamente cercado por outros dois. Ele recuou, usando seu tubarão como um escudo vivo, sentindo a frustração crescer.

    Foi então que, ao desviar de um arpão de osso e contra-atacar com um corte rápido que abriu o flanco de um homem-peixe de corpo serpentino, ele sentiu algo. Um pulso fraco, frio, vindo da Moeda de Tânatos escondida em sua túnica. Uma pequena quantidade de energia escura pareceu fluir da ferida do monstro moribundo e ser absorvida pelo metal.

    Um brilho estranho surgiu em seu olhar.

    Outro Tritão avançou, um ser com feições de peixe-pescador e uma maça de pedra. Uma sensação gélida percorreu o braço direito do deus caído, uma queimação fria que pareceu anular a resistência da água por um instante. A xiphos subiu em um rastro esverdeado e necrótico, não apenas aparando o golpe da maça, mas desviando-o com força suficiente para desequilibrar o atacante. 

    Antes que o inimigo pudesse se recuperar, a lâmina escura de Hermes retornou descendente em um arco preciso, cortando-lhe a cabeça.

    Mais energia fluiu para a moeda. O frio em seu braço se intensificou, mas a velocidade permaneceu. Com um grito abafado pela máscara, ele se lançou contra os inimigos mais próximos. Seus olhos brilhavam em verde.

    Do outro lado do campo de batalha improvisado, Magno ainda estava em apuros. Ele conseguia dar impulsos curtos e rápidos com as sandálias, o suficiente para desviar dos ataques mais lentos, mas ainda não tinha controle preciso. Era como tentar dançar em gelo fino. 

    Ele conseguiu se esquivar de uma estocada de lança, mas o impulso o jogou diretamente no caminho de um guerreiro Tritão-Tubarão, uma massa de músculos cinzentos e dentes afiados que avançava com os braços abertos para um abraço esmagador.

    Magno tentou saltar para trás, mas seus tornozelos se torceram de forma errada. Arregalou os olhos, exposto. O tubarão sorriu, um esgar horrível de dentes pontiagudos, e preparou-se para fechar suas mandíbulas em torno do ladrão.

    Um vulto passou por Magno. General Kymos, com uma velocidade surpreendente para seu tamanho, interceptou o ataque. Sua lança de osso, impulsionada por uma fúria fria, atravessou o peito do Tritão-Tubarão com um som surdo e final. O atacante congelou, o choque em seus olhos negros, antes de seu corpo pesado afundar lentamente na escuridão abaixo.

    Kymos parou por um instante, olhando para o guerreiro caído. Havia um olhar estranho em seu rosto, algo que Magno não conseguiu decifrar nas feições de um tubarão martelo. Sem uma palavra, o general se virou e voltou para o coração da batalha, deixando Magno sozinho, ofegante e confuso.

    E então, das fileiras traseiras do exército de Proteu, as Sereias corrompidas ergueram suas cabeças esqueléticas e abriram suas bocas em uníssono. Um grito agudo, dissonante, uma onda sônica que atingiu a frota de Atlântida como uma muralha invisível.

    A confusão foi instantânea. Guerreiros Tritões pararam no meio de um golpe, as mãos indo instintivamente para as laterais de suas cabeças. Montarias entraram em pânico, girando descontroladamente. A formação defensiva de Kymos se desfez em caos. O som penetrava a água, a armadura, a própria mente.

    Vibrava os tímpanos e contaminava a mente com uma dor pontiaguda no topo da cabeça, como uma enxaqueca. Insuportável.

    Hermes sentiu o ataque psíquico como agulhas em seu cérebro. Sua natureza divina oferecia alguma resistência, mas a cacofonia era nauseante, dificultando a concentração. Ele viu Magno cambalear, quase perdendo o controle de seus impulsos aquáticos. Viu Tritão rugir de dor, tentando reunir seus homens dispersos. E viu as sereias ao fundo.

    Ignorando a dor de cabeça latejante, ele puxou o arpão negro das costas. Sentiu a Moeda de Tânatos pulsar friamente contra sua pele. Concentrou-se naquela sensação, naquela fome fria, e desejou que ela fluísse para a arma. O metal negro do arpão pareceu escurecer ainda mais, e a ponta farpada começou a emitir um brilho verde-escuro quase imperceptível.

    Ele ergueu o arpão, mirando a Sereia mais próxima, cujo grito parecia particularmente potente. O poder fluiu de seu corpo para a arma, um esforço que o deixou momentaneamente tonto. Ele lançou.

    O arpão negro cortou a água densa, deixando um rastro de energia verde-escura quase imperceptível. Em meio segundo, a ponta farpada a atingiu no centro do peito esquelético.

    O corpo da Sereia convulsionou violentamente. Sua pele pálida e coberta de algas secou e se desfez em pó cinzento, a carne desmanchando-se dos ossos em segundos, como se consumida por uma podridão acelerada. A luz vermelha em seus olhos se apagou. A energia vital da criatura pareceu ser sugada pelo arpão, e Hermes sentiu um pulso frio e satisfatório vindo da Moeda de Tânatos. Uma das vozes na cacofonia havia se calado.

    Magno, vendo o sucesso de Hermes e sentindo a pressão do canto diminuir ligeiramente, encontrou seu foco. Ele viu outra Sereia, mais distante, protegida por dois Tritões renegados.

    Rangendo os dentes, flexionou os joelhos.

    O primeiro impulso das sandálias o lançou para a frente como uma flecha subaquática. Ele ziguezagueou entre os combatentes, os jatos de luz azul de seus calcanhares duravam instantes na escuridão abismal.

    Os dois Tritões que guardavam a Sereia se viraram, surpresos pela aproximação veloz, mas Magno já estava entre eles. Um salto curto para cima, impulsionado pelas sandálias, o colocou acima de suas cabeças. Ele girou no ar, as adagas de obsidiana descendo em arcos precisos. Uma lâmina encontrou a nuca desprotegida de um, a outra, a guelra exposta do segundo. Os dois caíram antes mesmo de poderem erguer suas armas.

    A Sereia, agora sem sua guarda, virou-se, a boca se abrindo para liberar seu grito. Ele não lhe deu chance de cantar. Ambas as adagas encontraram seu alvo no peito da criatura, silenciando-a para sempre.

    Com a morte de duas das Sereias, o canto psíquico vacilou e tornou em um leve zunido na mente dos guerreiros, incômodo, mas não paralisante. A confusão que atordoava a frota de Atlântida começou a se dissipar. Os guerreiros de Tritão, libertos do ataque mental, rugiram em fúria e avançaram com ímpeto renovado.

    A luta, no entanto, ainda não parecia perto de acabar, as forças de Proteu surgiam das trevas do abismo como gotas de chuva em uma tempestade.

    Então, tão subitamente quanto haviam surgido, começaram a recuar, desaparecendo de volta na escuridão abissal de onde vieram.

    Um silêncio tenso, quebrado apenas pelo gorgolejo distante dos feridos e pelo som da água se acalmando, desceu sobre o campo de batalha. Guerreiros de Atlântida se reagruparam, contando suas perdas, um misto de alívio e exaustão em seus rostos monstruosos. Eles haviam repelido o ataque. Por ora.

    Hermes recuperou seu arpão, que agora parecia estranhamente mais frio em sua mão. Magno flutuou até ele, um sorriso exausto, mas triunfante, perceptível pela curvatura de seus olhos mesmo através da máscara dourada.

    — Te deixei pra trás branquelo! — Magno ofegou, dando um tapinha no ombro de Hermes.

    Antes que Hermes pudesse responder, um som profundo e ressonante vibrou através da água, mais forte que o alarme anterior. Vinha da cidade.


    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 0% (0 votos)

    Nota