Capítulo 21 | A Coroa, o Coração e a Colheita (1)
Um silêncio pesado desceu sobre o Santuário. O zumbido psíquico que paralisara a sala cessou no instante em que a xiphos de Hermes perfurou as costas de Theron. O corpo do nobre traidor jazia em uma poça de seu próprio icor azulado, os olhos negros e arregalados de surpresa, fixos no pulsar rítmico do Coração de Caríbide. A única coisa que se movia era o sorriso frio e satisfeito no rosto de Hermes.
Magno foi o primeiro a se recuperar. Ele se levantou do chão, massageando as têmporas. Ele olhou para o corpo de Theron, depois para Hermes, que limpava metodicamente sua lâmina negra no manto do morto.
— Mentiroso… — Magno sorriu — Você não estava esgotado.
Hermes sorriu de volta, os dois se comunicavam em seus sorrisos sem precisar proferir quaisquer palavras. O brilho verde-escuro em seus olhos havia se dissipado, deixando para trás apenas uma exaustão genuína.
General Kymos se ergueu, o corpo maciço tremendo de raiva contida. Ele olhou para o cadáver de Theron, não com satisfação, mas com um profundo e amargo desprezo.
— Theron… — ele rosnou, a voz grave e pesarosa. — Não esperava dele um símbolo de coragem, mas esta… covardia. Nem mesmo eu poderia imaginar…
Tritão se ergueu sobre um joelho, o tridente servindo de apoio. Ele olhou para Theron, seu aliado mais eloquente, agora reduzido a um cadáver traidor. Sem raiva, seu rosto demonstrava profunda e sombria tristeza.
— Ele traiu a todos nós. E Neria… — A menção ao nome da nobre desaparecida o fez cerrar os punhos. — O que ele fez com ela?
Hermes não respondeu. Sua atenção estava voltada para o centro da câmara. Ele caminhou até o pedestal de coral branco, sua exaustão momentaneamente esquecida. O Coração de Caríbide pulsava diante dele, um cristal colossal multifacetado que emitia uma luz azul-esverdeada suave e constante. Ele podia sentir a energia vital que emanava dele, uma força ancestral que mantinha o peso de um oceano inteiro afastado. Ele observou como o cristal flutuava, ancorado ao pedestal por arcos de energia pura.
— Então é assim que funciona — Hermes murmurou para si mesmo, os olhos dourados analisando o mecanismo. — Uma fonte de energia. E um condutor. Frágil.
Antes que Tritão pudesse questionar o significado daquelas palavras, uma nova voz preencheu o santuário. Parecia vir de todos os lugares ao mesmo tempo, vibrando na própria água e ressoando dentro de seus ossos.
— Theron, seu tolo arrogante. Achou mesmo que poderia reivindicar o prêmio final para si mesmo?
Hermes e Magno se viraram, armas em punho, procurando a fonte da voz. Tritão se levantou cheio do mais puro ódio. Reconhecera a voz.
— Proteu! Mostre-se, covarde!
— Covarde? — A voz de Proteu ecoou, agora tingida com diversão. — Eu assisti seu pequeno conselho se desfazer, irmão. Vi você se esconder atrás de cães da superfície. Vi meu peão ser abatido por um invasor do reino. — A voz parou, e a pressão na câmara pareceu aumentar. — Chega de política…
Um silêncio pesado tomou conta de Atlântida. Então, a voz de Proteu soou novamente, desta vez não apenas no santuário, mas através de cada corredor do palácio, cada avenida da cidade, cada mente de cada cidadão de Atlântida.
— TRITÃO! Irmão! Acabe com este banho de sangue. Enfrente-me em duelo singular. O vencedor leva o trono. O perdedor… se junta ao nosso pai.
A voz fez uma pausa, deixando o desafio pairar sobre a cidade paralisada.
— Recuse… e minha frota, que agora aguarda pacientemente, irá rasgar esta sua cúpula frágil e purgar cada nobre covarde que se escondeu atrás de você. A escolha é sua.
O silêncio que se seguiu foi absoluto. No santuário, Magno olhou para Hermes e em um sussurro disse:
— Ele não vai aceitar, vai? É uma armadilha.
General Kymos, que havia se recuperado em silêncio, deu um passo à frente, o rosto de tubarão-martelo marcado pela dor da traição de seu irmão. Ele bateu o punho fechado em sua couraça de carapaça.
— Meu Príncipe. Você está ferido. A traição de Theron o abalou. Permita-me ser seu campeão. Eu lutarei em seu nome.
Tritão olhou para o general, depois para o corpo de Theron, e por fim para o Coração pulsante de seu reino. Ele caminhou até a coroa de coral claro, que havia caído de sua cabeça durante o ataque psíquico, e a pegou.
— Não, General — disse ele, a voz calma, mas cheia de uma resolução fria que Hermes não ouvira antes. — Sangue suficiente já foi derramado por minha causa. O sangue de seu irmão. O sangue de meus soldados. O sangue de Theron. — Ele colocou a coroa firmemente sobre a cabeça. — Esta é uma dívida minha.
Ele se virou para a saída do santuário, em direção à origem da voz. E então, seus olhos brilharam em um azul forte.
— Eu aceito.
A resposta ecoou por Atlântida na forma da voz forte e decidida do regente.
Um curto período de tempo se passou. O Santuário foi selado novamente, e o corpo de Theron foi removido para servir como um lembrete sombrio da traição. O palácio estava em um estado de calma tensa; a batalha externa havia cessado com o desafio de Proteu, mas a cidade prendia a respiração, aguardando o duelo que selaria seu destino.
No grande salão de armas, a atmosfera era pesada. General Kymos, incapaz de ficar parado, gritava ordens para seus batedores, organizando buscas frenéticas pela desaparecida Lady Neria.
Afastado da confusão, Tritão estava sozinho. Vestia uma couraça de batalha comum, uma peça funcional de couro tratado e placas de osso. Ele verificava metodicamente seu tridente real, testando o equilíbrio, os olhos focados, a mente claramente distante.
Foi quando Hermes se aproximou a passos silenciosos. Ele carregava algo pesado, coberto por um pano.
— Ele espera que você vá assim — disse Hermes, a voz baixa.
Tritão ergueu o olhar, a irritação pela interrupção evidente.
— O duelo é meu, Hermes. A preparação é minha.
— Ele espera que você lute com honra reverência — Hermes continuou, ignorando o tom do outro e então puxou o pano, revelando o que carregava.
Era a couraça de Poseidon. O peitoral de obsidiana, com seu tridente azul brilhante, pulsava com uma luz suave e interna, parecendo vivo na penumbra do arsenal.
Os olhos de Tritão se arregalaram. Ele se aproximou, tocando o metal frio com uma mistura de reverência e choque.
— O Arsenal… Eu o selei pessoalmente. Como você…
Hermes deu um passo para o lado, olhando para um pilar distante no corredor.
— Eu não peguei.
Tritão seguiu seu olhar. Encostado na colunata, como se sempre estivesse ali, estava Magno. O gatuno polia distraidamente uma de suas novas adagas de obsidiana com um pedaço de pano. Ao sentir o olhar do príncipe, ele ergueu os olhos, encontrou os de Tritão e abriu um sorriso lento e insolente. Sem dizer uma palavra, ele deu de ombros, guardou a adaga e desapareceu nas sombras do corredor, deixando Tritão sozinho com sua fúria impotente e sua admiração relutante pela audácia do ladrão.
O príncipe se virou para Hermes, seus pensamentos foram da confusão à recusa.
— Eu não vou usar isso — disse ele, a voz firme, afastando-se da armadura.
— Por quê? — Hermes perguntou, simplesmente.
— Eu não sou digno. — A confissão de Tritão foi um murmúrio áspero. — Esta armadura… ela esteve na Titanomaquia. Ela viu meu pai subjugar oceanos. Eu… eu quase perdi esta cidade para meu próprio irmão. Eu não mereço vesti-la.
Hermes o encarou e seu cenho, então, se franziu violentamente. Ele empurrou a couraça contra o peito de Tritão, forçando-o a segurá-la.

— Seu povo, lá fora, não precisa de um príncipe indeciso e morto. Eles precisam de um Rei. Forte, vivo e vitorioso. — A voz de Hermes era acusadora, cada palavra um golpe. — Você acha que seu pai já era Poseidon, o Rei dos Mares, quando vestiu isso pela primeira vez? Ele não havia vencido batalha alguma. A armadura não fez o rei, Tritão. Mas ela lembrou a todos, inclusive a ele mesmo, o que ele deveria se tornar.
Tritão olhou para a couraça em suas mãos, o tridente azul pulsando suavemente, como um coração esperando para bater. Ele olhou para a saída, onde podia ouvir os sons de seu povo se reunindo, apavorado.
Em silêncio, ele começou a desafivelar sua armadura simples.

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