Capítulo 26 | O Conto de uma Flor que Desabrochou no Inferno das Minas (2)
Uma tosse seca tirou Sêneca de seu torpor noturno.
Era tarde da noite. Ágatha, com a garganta seca, esgueirou-se para fora para pegar água. O velho se forçou a permanecer deitado. Não devia fazer nada. O próximo dia logo chegaria e tudo se resolveria.
Foi quando viu uma sombra passar em frente ao túnel. Uma sombra conhecida.
Seus olhos se arregalaram e antes que sua mente pudesse protestar, já estava de pé.
Esgueirou-se entre as vigas de madeira nas paredes de pedra, seguindo na direção que Ágatha havia seguido. Um ruído estranho o fez sobressaltar, seus passos se tornaram mais leves.
Ágata enchia seu odre com a água de um balde sujo, Sêneca estava prestes a se aproximar para puxá-la de volta para o túnel, quando ele viu Lyco, o guarda, surgindo das sombras de uma das vigas de madeira com um sorriso predatório.
— O que uma ratinha como você faz acordada a essa hora? — Sua voz frígida e sorridente.
Ágatha se virou assustada, derrubando o balde no chão.
Ela não teve tempo de gritar. Lyco pulou e tapou sua boca com a mão. Os grandes olhos assustados da garota o encararam com pavor.
— Shhhhh- Não acorde os outros. — Ele sussurrou.
A pobre menina ficou paralisada de medo.
Lyco sorriu com perversidade e apertou o braço da garota com força. — Que tal fazermos uma visitinha aos mortos essa noite?
A frase acompanhou um puxão. Ele a conduziu forçadamente até o túnel fétido. O poço. O lugar onde os mortos dessa temporada de crueldade fria e sem sentido da história das minas estavam sendo descartados.
O silêncio retornou ao terreiro das minas. A noite voltou a chilrear com seus ventos inconstantes que assobiaram ao entrar por cima, pelo topo da mina.
A cabeça de Sêneca latejava. Sua mão forçava com violência um aperto contra o próprio peito. Um oco se expandia em seu espírito a cada segundo que se passava.
“Não chore pelo que não pode ser mudado.” Ele pensou.
“O homem que sofre antes de ser necessário, sofre mais que o necessário.” Ele afirmou.
Os mantras ecoavam em sua mente, esvaziando-o não dos sentimentos que ele queria se recusar a sentir, mas sim da crença que tinha naqueles ensinamentos.
Sua respiração se tornou irregular, até o momento em que parou.
— Muitas vezes erra não apenas quem faz, mas também quem deixa de fazer alguma coisa.
…
Do fundo do túnel dos mortos, o mundo era uma moldura retangular de escuridão, a única fresta de luz do luar que ousava adentrar o poço, se perdia em sua primeira curva.
Lyco arrastou a garota por aquele chão imundo e rançoso que fedia a lama de sangue. Agatha tentou gritar mas tinha sua boca coberta.
O ar aqui era parado, pesado, espesso com o cheiro adocicado e rançoso da decomposição.
Quando se deu por si, Ágatha estava sendo jogada no chão. A violência a fez escapar do choque do rapto.
Quando abriu os olhos, sua visão foi obstruída por uma parede grotesca, uma barricada de corpos empilhados uns sobre os outros. Membros rígidos e silhuetas de cabeças se projetavam na escuridão, criando frestas macabras através das quais apenas os vermes da terra se aventuravam.
Lyco andou até a garota que estava jogada no chão, e com um movimento violento, puxou a túnica da garota pelo ombro.
O ruído que ela fez rasgando pareceu alto demais no silêncio do túmulo de escravos. A menina chorou em pânico com sua parte superior agora desnuda. Um gemido de puro pavor ecoou fracamente entre os corpos empilhados.
Com um sorriso perverso e diabólico, o predador afrouxou sua cinta, prestes a consumar sua crueldade na entrada daquela cova.
— Agora você pode gritar bastante, ratinha. — Sua voz repleta de sádica satisfação. — Ou melhor, eu quero que você grite-
Foi quando percebeu na penumbra a mudança de expressão no rosto da garota, o pavor direcionado a ele, sendo substituído pelo susto.
Um rugido. Extremamente humano, brutal. Não o de uma fúria bestial, mas o grunhido que pareceu vir das próprias entranhas da montanha, contido por décadas. Não continha raiva, nem desespero. Continha força, certeza.
Lyco não teve tempo de se virar completamente, sua cabeça parou no meio do caminho quando uma picareta desceu com o furor de um trovão, cravando-se na parte de trás de sua cabeça.
— Kuhghgkhhh- — Os olhos do guarda reviraram, sua cabeça se tornando uma pintura mórbida de sangue.
Seu corpo tremeu e seus joelhos despencaram na hora, e ele ficou pendurado pela ferramenta que ainda jazia presa em sua cabeça.
Outro grunhido acompanhou o golpe que soltou o corpo do guarda da ponta da picareta.
Acima do predador, a silhueta de Sêneca ficou parada, o peito subindo e descendo, a picareta ainda em suas mãos. Ele olhou para o corpo em sua frente, agora parte da montanha que ele havia ajudado a criar.
Ele então se virou para a figura trêmula de Ágatha.
Sêneca largou o instrumento no mesmo instante. O som metálico no chão de pedra foi agudo e final.
Ele se aproximou da menina, ajudando-a a se levantar e a cobrir os ombros com os restos de sua túnica. Pegou a espada caída do guarda morto. Do fundo do túnel, o que se via era apenas o contorno de um homem protegendo uma criança na soleira de uma tumba.

Ele a tranquilizou, disse que tudo ficaria bem.
e as duas silhuetas desapareceram no pátio iluminado pela lua, deixando o túnel dos mortos para sua paz profana. Só que agora, havia um corpo a mais na escuridão. Um corpo que não morrera de fome ou exaustão, mas de uma justiça terrível e necessária.
— Volte para o túnel, pequena. — Sua voz era suave, mas firme. — Descanse. Vai ficar tudo bem.
Ela o fitou com os olhos marejados, antes de fungar. Havia aprendido a confiar em sua palavra. Enxugou as lágrimas e se levantou, segurando o tecido rasgado contra seu seio nu, e apressou-se para a saída do poço.
O velho a observou virar a esquina do túnel e desaparecer para a noite. Então, ele se levantou, com a espada na mão, e olhou para a escuridão da mina. Sua filosofia não o havia abandonado. Ela apenas havia mudado.
Pensando no que se seguiria ao amanhecer, ele ponderou com a espada em mãos, não queria correr o risco de deixar a garota para trás. E então, ajoelhou-se, usando sua perna de apoio para o braço, a mão apenas um pouco à frente do joelho. Uma guilhotina improvisada.
Ele ergue a espada no alto e sorri satisfeito. O homem que erra não é apenas quem faz, mas também quem deixa de fazer. Naquela noite, Sêneca havia escolhido não errar.
…

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