Capítulo 93 | O Mensageiro dos Tempos Antigos
Teseu piscou com confusão evidente em seu rosto sujo de poeira. As palavras antigas e a gramática rebuscada do gigante soaram para ele como um dialeto estrangeiro.
— Feneceu a virtude? Estirpe? — Teseu murmurou, olhando para Plutarco em busca de socorro. — O que ele está dizendo?
O escriba suspirou, guardando o estilete por um momento. Ele ajeitou a postura, assumindo o ar professoral que lhe era natural.
— Ele perguntou, meu jovem, por que você o atacou se ele não lhe ofereceu mal algum — traduziu Plutarco, o tom prático contrastando com a poesia do gigante. — E se a honra dos homens desapareceu ou se apenas ficamos cegos para ela.
A compreensão trouxe consigo uma nova onda de vergonha. Teseu olhou para o gigante caído, para os cortes profundos que ele mesmo havia infligido nos tendões da criatura, e embainhou a xiphos com um clique seco.
— Eu… — Teseu começou, a voz falhando. Ele olhou para Eudora, depois de volta para Argos. — Eu fui enganado. Um homem na cidade… ele disse que você era um monstro. Que a havia roubado. Eu achei que estava fazendo a coisa certa. Eu…
O olhar fixo de Argos não cotinha mágoa, mas também não era apaquentador. O jovem percebeu que estava se justificando e que, nesse momento, sua atitude não clamava por uma justificativa, na verdade, mas sim por arrependimento.
— Sinto muito.
Argos piscou seus muitos olhos lentamente, um movimento de onda que percorreu seu torso. Ele não respondeu, mas a tensão em seus ombros diminuiu. Eudora deslizava seus dedos finos pelos cachos cinzentos de Argos com um sorriso meigo.
Plutarco, no entanto, não estava satisfeito apenas com desculpas. Sua curiosidade acadêmica, aguçada pela presença de uma lenda viva, não podia mais ser contida. Ele deu um passo à frente, ignorando o perigo de se aproximar de um gigante ferido.
— Agora que estamos todos de bem, vamos a uma questão mais premente — disse o escriba, seus olhos varrendo a figura de Argos com fascinação. — Você é Argos Panoptes. As crônicas são claras. Você deveria estar morto.
Teseu franziu a testa.
— Morto?
— Morto há eras, para falar a verdade — arguiu Plutarco, virando-se para o garoto. — Executado por Hermes, a mando de Zeus.
— Hermes? — Teseu repetiu, o nome de seu amigo e mentor atingindo-o com surpresa.
— O próprio — Plutarco assentiu, e então, como se estivesse em uma sala de aula em Queronéia, começou a narrar.
— Reza a lenda que Zeus pediu a Hermes que resgatasse Hera, que supostamente havia sido enfeitiçada e aprisionada por um gigante de cem olhos que nunca dormia.
Plutarco gesticulou para Argos.
— Na verdade, esse gigante estava a serviço da própria Hera. Ela o criou ou o contratou para que vigiasse Ío, uma princesa de Argos adorada por Zeus. A função dele era impedir o Rei dos Deuses de ser infiel, vigiando a moça a todo momento, depois que Zeus fez uma promessa à esposa de que não mais a trairia.
O escriba fez uma pausa, garantindo que Teseu acompanhava a trama divina.
— Não sabendo disso, Hermes acatou o pedido do pai e desceu até a terra. Ele sabia que não seria páreo para a força física do gigante em um combate direto. Então, usou a astúcia. Ele tocou na lira de seu irmão Apolo, uma melodia tão doce e suave que fez com que o gigante, pela primeira e única vez, adormecesse, fechando todos os seus olhos.
Plutarco olhou para o pescoço largo de Argos, onde uma cicatriz antiga e pálida circundava a garganta.
— Então, ele arrancou a cabeça da criatura. Sem ter sido capaz de encontrar a “Hera aprisionada”, que nunca existiu, Hermes levou a cabeça de volta até o Olimpo, apenas para encontrar a rainha dos deuses furiosa e sem qualquer sinal de seu pai, que havia saído em uma “missão urgente”. Ao menos, é o que conta Hesíodo de Cime.
O silêncio preencheu a caverna novamente. Teseu tentava conciliar a imagem do Hermes que ele conhecia — o homem cansado, cínico, mas leal — com o assassino da lenda.
— Hesíodo conta a verdade, mas não toda ela — a voz de Argos retumbou novamente, grave e melancólica.
O gigante se ajeitou com uma careta de dor cruzando seu rosto de pedra enquanto movia as pernas feridas para se sentar. Eudora colocou a mão em seu braço para apoiá-lo, mais moralmente que fisicamente.

— O Mensageiro… — continuou Argos — …ele não era apenas um entregador de recados. Nos tempos antigos, onde o Caduceu tocava, a vida cessava. Ele era a morte rápida, o executor da vontade do Olimpo.
Argos olhou para o vazio, lembrando-se daquele dia distante.
— Mas ele não sentia prazer nisso. Antes de sua lâmina tocar minha carne, a música que ele tocou… não foi um truque vil. Foi uma melodia de pura tristeza. Um lamento por aquilo que ele era obrigado a fazer. Ele me deu o sono para que eu não sentisse o golpe. Foi uma morte… gentil.
Teseu baixou a cabeça. Aquilo soava como o Hermes que ele conhecia. O homem que carregava o peso do mundo e a culpa de milênios.
— E depois? — perguntou Plutarco, o estilete tremendo de ansiedade. — Como você retornou? O Tártaro não costuma devolver seus prisioneiros.
— O escuro… — Argos sussurrou, e dezenas de seus olhos se fecharam como se temessem a memória. — Anos, séculos, eras sem gozar de nada além do frio e de minhas próprias elucubrações.
Ele respirou fundo.
— Até que um dia, ouvi um som. Uma nota profana, rasgada, como o som de um véu de seda sendo partido ao meio por mãos brutais.
Teseu sentiu um arrepio repentino.
— Então, eu vi — disse Argos. — Uma luz esverdeada surgiu na escuridão eterna. Uma fenda. Eu não pensei. Eu rastejei. E, quando emergi, estava aqui, neste vale, sob a luz das estrelas novamente.
— Isso foi há quanto tempo? — perguntou Teseu.
— Alguns meses — respondeu Argos. — Pouco tempo depois, encontrei a pequena ave perdida nas montanhas.
Ele olhou para Eudora com uma devoção que suavizava suas feições monstruosas. A mulher sorriu, encostando a cabeça no ombro maciço do gigante, abraçando seu braço grosso com carinho.
— Ele me disse que, de todas as ninfas mais belas do mundo antigo… — Eudora disse, o rosto corando timidamente — …ele só tinha olhos para mim.
A declaração, doce e literal, pairou no ar. Plutarco teve a certeza de registrar cada palavra da conversa, Teseu, por outro lado, tinha as sobrancelhas tensas e um olhar pensativo.
— E o que aconteceu com a fenda depois que você saiu?
Argos se virou de novo para o rapaz, seus mil olhos semicerraram de repente.

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