Capítulo 3 | Correntes (2)
O subalterno de Gérion encarava a cena paralisado. Não queria acertar o chefe por engano.
Os escravos estavam divididos, alguns assustados, outros riam e torciam.
Íxion estalou a língua e se aproximou.
Gérion tentava socar Hermes no lado de sua cabeça, mas seus braços gordos e falta de mobilidade o impediam de acertá-lo.
Num instante, Íxion chutou o calcanhar de Gérion, que tombou para trás desequilibrado e esmagou Hermes contra o chão com seu peso. O ar saiu de Hermes com um guincho. O impacto no chão de pedra foi devastador.
Gérion rolou para o lado, tossindo e massageando o pescoço vermelho. Quando se levantou, seu rosto estava roxo de fúria.
— MALDITO!
PUMP. PUMP. THUMP.
A surra foi brutal. Gérion descarregou sua raiva em chutes e pisões. Hermes se encolheu, protegendo a cabeça, sentindo costelas estalarem e a pele se abrir novamente. Ele não tinha como revidar.
— Chega — a voz de Íxion cortou o som dos golpes. Ele segurou o ombro de Gérion. — Tem que me pagar antes.
Gérion ofegou escandalosamente, seu peito inflava e esvaziava como um odre furado. Ele olhou para Hermes, uma massa de hematomas e sangue na lama, e cuspiu em cima dele.
— Eu levo — Gérion rosnou, jogando um saco de moedas para Íxion. — Mas ele vai desejar ter morrido naquela queda.
Íxion pegou o dinheiro, conferiu o peso e deu de ombros.
— É todo seu. Tire esse lixo daqui.
Dois guardas de Gérion levantaram Hermes pelos braços. Ele não tinha forças para ficar em pé. Sua cabeça pendia, mas seus olhos, inchados e quase fechados, encontraram os de Íxion uma última vez. Um brilho dourado surgiu, fraco, mas furioso.
O capitão sentiu um arrepio percorrer sua espinha.
— Levem-no para o buraco
Encarando as costas feridas de Hermes, e vendo aquele sangue escorrendo de cada ferida, sentiu como se, cada cicatriz daquela, fosse um espaço na cela de um monstro prestes a escapar.
Afastou o devaneio sem sentido com um balanço de cabeça. Voltou à ponta da caravana. Queria sair logo daquele lugar.
Hermes estava encolhido no canto da cela. O chão era frio e pegajoso. O cheiro de urina e sangue seco impregnava o ar, embrulhando seu estômago. Abraçava os próprios joelhos, tentando conservar o pouco calor que lhe restava. Seus cabelos brancos estavam opacos e grudados na testa pelo suor e pela lama.

Quando chegou arrastado, percebeu que se tratava de um complexo de mineração. No entanto, não entendera o motivo de todos os outros escravos recém comprados terem sido transportados para os andares inferiores enquanto ele foi jogado aqui.
Hermes encarava os guardas com fúria e ameaça, mas a resposta que recebia era em forma de sorriso e zombaria.
Não sabia quanto tempo havia passado. A única marcação de tempo era a luz fraca da lua que entrava pela pequena grade no teto. Ele estava exausto, ferido e humilhado.
Quase nu, sentia ainda a ardência dos golpes e a friagem do anoitecer arrepiar o seu corpo. Vestia apenas uma clâmide rasgada acima da cintura, dada por seus captores, que malmente cobria as suas partes.
Passos pesados ecoaram no corredor ao lado da cela. Hermes ergueu a cabeça.
Quatro guardas chegaram e se colocaram de frente às grades, aos lados do portão. Hermes os encarou com um olhar vingativo.
Eles sorriram e abriram caminho. Gérion.
Ele sorriu ao ver o estado do prisioneiro.
Gérion destrancou a porta. O metal rangeu. Ele teve que se curvar para passar pelo batente, preenchendo o pequeno espaço da cela com sua presença massiva e o odor forte de suor rançoso e sujeira. Os guardas entraram logo atrás, fechando o cerco.
Hermes tentou se levantar. Suas pernas tremiam. Ele se apoiou na parede de pedra, respirando com dificuldade. Gérion sorriu.
— Não se esforce — a voz grossa reverberou no cubículo. — Você vai voltar para o chão em breve.
Os guardas riram em reforço.
O ogro desenrolou o chicote da cintura.
Hermes firmou os pés no chão. Ele não desviou o olhar. Gérion percebeu a falta de medo e seu sorriso se alargou na forma de dentes amarelos e podres.
Hermes tinha a plena certeza que este homem não tomava banho há eras.
— Eu não pude terminar o serviço antes. Íxion sempre foi um estraga prazeres. — disse Gérion, enrolando o couro do chicote na mão.
O braço do gigante se moveu rápido.
Hermes tentou erguer a mão para se proteger, mas seu corpo mortal era lento demais. A ponta do chicote estalou contra seu antebraço, abrindo a pele. Hermes grunhiu, recuando um passo.
— Lento — zombou Gérion.
Antes que Hermes pudesse se recuperar, Gérion avançou e desferiu um chute brutal em seu estômago.
O ar saiu dos pulmões de Hermes. Ele foi arremessado contra a parede de fundo e desabou. A dor explodiu em seu abdômen e irradiou para as costelas já fraturadas. Ele tossiu, sentindo o gosto metálico de sangue na boca.
Tentou se erguer novamente, mas uma bota pesada pressionou seu peito, prendendo-o no chão.
O ogro passava a língua nos lábios, o suor escorrendo por sua testa oleosa. Ele olhou para o corpo seminu de Hermes, percorrendo os ferimentos e a pele exposta com seu único olho saudável.
Ele retirou o pé do peito de Hermes e fez um sinal para os guardas.
— Segurem ele. De bruços.
Os homens hesitaram por um segundo, intimidados pelo olhar furioso de Hermes, mas o medo de Gérion falou mais alto. Eles avançaram.
Hermes tentou chutar, tentou morder, mas estava fraco demais. Quatro homens contra um ferido. Eles o viraram com violência. Pressionaram seu rosto contra o chão imundo. Puxaram seus braços para as costas e travaram seus pulsos com algemas de ferro frio.
Hermes estava imobilizado. O cheiro de detritos do chão invadiu seu nariz.
Gérion riu baixo. O som era úmido e desagradável. Ele se ajoelhou sobre as pernas de Hermes, imobilizando-o completamente com seu peso.
O rapaz sentiu o pânico real pela primeira vez.
Gérion agarrou um punhado do cabelo de Hermes e puxou sua cabeça para trás com força, forçando seu pescoço.
— Eu até estava planejando usar aquela vadiazinha de mais cedo hoje… — sussurrou Gérion perto de seu ouvido. O hálito era fétido. — Mas você fez por merecer.
Ele bateu a testa de Hermes contra o chão. O impacto atordoou o rapaz. A visão de Hermes escureceu por um instante em que o mundo girou.
Hermes olhou para os homens de lado, mesmo em meio ao seu desespero, e os encarou com um olhar assassino. Eles olharam de volta e não vacilaram.
Ele ouviu o som de tecido sendo desamarrado. Gérion soltou o cinto de sua túnica.
Hermes fechou os olhos, trincando os dentes com força suficiente para doer.
Gérion desamarrou o pano em sua cintura, deixando sua clâmide cair. A escuridão da cela parecia ter se fechado sobre ele.

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