Capítulo 37 | Caminho Tortuoso.
A manhã havia chegado a Therma e com ela vinha o barulho no cais e nas feiras que aos poucos iam tomando as ruas sem dar qualquer esperança para quem planejasse descansar um pouco mais.
Uma carroça se movia lentamente em meio às ruas ainda se preenchendo. Na frente, um rapaz de cabelos brancos brilhosos conduzia os cavalos com um rosto sério.
— Tem certeza de que podemos confiar nesse homem Hermes? — Uma voz vinda da parte de traz da carroça, coberta pela lona, surgiu abafando um pouco do ruído dos comerciantes.
— Não. — A resposta seca e abrupta de Hermes por pouco não se perdeu no labirinto de sons das ruas comerciais de Therma.
O garoto sentado na parte de trás da carroça fez uma expressão de irritação.
— Então por que-
— Porque ele é nossa melhor chance, Teseu. — Hermes respondeu bruscamente.
Também não se sentia bem em ter que confiar num batedor de carteiras líder de uma gangue de pirralhos melequentos. No entanto, de todos os caras que ele encontrou na noite anterior, Magno havia sido o único a ter alguma resposta, mesmo que fosse falsa. Eles tinham que tentar.
— Ele tem razão Teseu. Nós temos que tentar tudo o que tiver ao nosso alcance. — A voz de Ágatha ressoou de dentro da carroça, sensível.
Teseu se virou para ela, pronto para repreendê-la, mas ao ver seu olhar preocupado e choroso para o pobre Sêneca, desistiu.
Para o garoto era um absurdo que eles estivessem em conluio com o ‘ladrão da cidade’ que inclusive os havia furtado. Talvez ele realmente pudesse dar uma direção ou algo do tipo, mas acompanhá-los?
A conversa não pôde se estender muito já que eles já estavam chegando no portão leste. O ponto de encontro delimitado por Magno na noite anterior.
Próximo dos grandes portões de madeira, Hermes avistou a figura esguia e um tanto sórdida cercada de crianças barulhentas e avisou aos seus amigos. Teseu pulou para a frente da carroça, tentando obter uma boa visão daquele que os iria ‘ajudar’ com a cura de seu amigo. Ágatha se apoiou no batente da passagem de frente da carroça.
— Você vai voltar logo Magno? — Uma das crianças perguntou com um rosto preocupado.
— Você não vai fugir e deixar a gente pra trás vai? — Outra perguntou.
— Ele finalmente encontrou o amor e vai nos largar pra viver com uma mulher no meio do mato. — Outra das crianças afirmou esfregando os olhos com um dos braços, como se estivesse chorando.
— Ora, calem-se todos, vocês fazem barulho demais! — Magno respondeu com uma voz irritada. — Amanhã eu já devo estar de volta.
— Ora, esqueçam o velhote! — Outra das crianças falou após um estalo de língua, um pequeno sorriso sacana surgindo em seu rosto. — Sem ele aqui tudo que a gente roubar vai ficar pra gente!
Ouvindo isso, as crianças que pareciam tristes logo se alegraram e começaram a rir. As que fingiam enxugar lágrimas agora já comemoravam. Magno avistou a carroça que se aproximava e começou a empurrar as crianças de maneira irritada. Elas sorriam e faziam caretas enquanto se afastavam dele.
— Malditos! Tomem cuidado hoje, a guarda está mais atenta esses dias.
— Opaaa– eai desbotado. — A voz de Magno soou amigável quando ele se aproximou pela lateral da carroça e deixando as crianças que o cercavam para trás.
Hermes não compartilhou de seu entusiasmo na resposta. Seus olhos varreram os arredores tentando encontrar o tal guia do qual Magno havia falado.
Foi quando o gatuno chamou sua atenção mais uma vez, estalando os dedos. Hermes se virou para ele.
— Aqui. Conheçam Neo. Seu guia. — Ele disse com um sorriso largo enquanto apontava para algo ao lado de sua cintura.
Hermes franziu o cenho e se inclinou por sobre o banco, tentando ver para o que ele estava apontando. A visão o fez fechar os olhos e soltar um suspiro profundo, como alguém que pede paciência aos céus.
Teseu se inclinou também e Ágatha fez o mesmo. Ambos arregalaram os olhos de surpresa.
— Vo-você! — Eles exclamaram em uníssono.
Uma criança de mais ou menos dez anos vestindo uns trapos velhos e uma bandana vermelha sorria para eles com uma maçã mordida em uma das mãos.
— É um prazer! — Neo disse, dando mais uma mordida em sua maçã.
— Este é o seu guia confiável? — Hermes perguntou, seu rosto se tornando uma máscara de irritação.
— Ei ei ei, eu nunca disse que ele era confiável, só que era um guia. Não ponha palavras na minha boca! — Magno disse com um olhar cerrado de alguém que se sentia ofendido por algo.
— Como é que é Magno? — A criança disse com sua voz estridente, parecendo irritada. — Eu não sou confiável não é?
Os dedos de Hermes pressionaram as rédeas com força. Seu maxilar cerrado transmitia irritação. Teseu o olhou com uma expressão que dizia, “Eu te avisei”.
Ágatha sorriu inocentemente com a visão do garoto que a lembrava de seu irmão.
— Calma, calma, vamos todos nos acalmar. — Magno disse, sua voz assumindo um tom conciliador. — Eu tava brincando pivete. — Ele diz bagunçando o cabelo do menino.
Neo resmungou algo em voz baixa antes de voltar a comer sua maçã.
— Ele se perdeu na floresta umas semanas atrás- — Magno começou a falar, sua atenção voltando para Hermes que disfarçava sua irritação apertando as rédeas dos cavalos. — E aí acabou encontrando a casa da bruxa. Ela mesma o trouxe de volta até a entrada da cidade.
Após um momento de silêncio, Hermes afrouxou um pouco as rédeas, a raiva aliviando momentaneamente. Ele respirou fundo.
— Certo. — A palavra saiu de seus lábios com um peso de resignação. — Subam. Todos vocês. Não temos o dia todo.
Magno sorriu, dando um tapinha nas costas de Neo. O garoto, com uma agilidade surpreendente, escalou a lateral da carroça e se sentou na parte de trás com Ágatha e Teseu, oferecendo a ela um pedaço de sua maçã com um sorriso sapeca. Ágatha, ainda um pouco intimidada, aceitou com um aceno de cabeça tímido. Magno subiu e sentou-se ao lado de Hermes no banco da frente.
— Então… — Magno começou, acomodando-se de forma folgada. — Em busca da vovó não é desbotado?
Hermes apenas o fuzilou com o olhar antes de estalar as rédeas e colocar os cavalos em movimento, deixando os portões de Therma para trás.
A jornada começou. A transição da cidade caótica para a quietude da natureza foi abrupta. O barulho da multidão foi substituído pelo som suave do vento nas árvores e pelo canto distante dos pássaros.
A estrada de terra se afunilava, sendo engolida por uma floresta antiga e densa, cujas árvores altas formavam um teto de folhas que mal permitia a passagem da luz do sol.
Neo, o guia improvável, dava as direções com uma confiança que beirava a arrogância. “Vire à esquerda naquela rocha que parece um sapo”, “Siga reto até o carvalho de três galhos”. Magno parecia se divertir com a situação, tratando a viagem como um passeio, fazendo piadas que apenas ele e Neo pareciam entender.
Hermes, por sua vez, permanecia em um silêncio tenso. Cada sombra entre as árvores, cada som de um galho se quebrando, o deixava alerta. A ameaça daquela noite de dias atrás, os olhos vermelhos na escuridão, ainda era uma presença vívida em sua mente. Ele sentia o peso da responsabilidade por aquelas almas em sua carroça, e a companhia barulhenta do gatuno e seu pirralho não ajudava a acalmar seus nervos.
Teseu e Ágatha observavam a nova dinâmica em silêncio, ocasionalmente respondendo a uma ou outra pergunta feita pelo pivete ou pelo próprio Magno.
Teseu, com o queixo apoiado na mão, olhava para Magno com uma desconfiança velada. Não conseguia entender como Hermes, tão sério e focado, podia tolerar a presença daquele homem que os havia roubado. Ágatha, por outro lado, parecia mais relaxada. Cuidava de Sêneca, que continuava em seu sono febril, e ocasionalmente sorria das travessuras de Neo.
O silêncio que reinava entre os três amigos na carroça foi abalado quando Teseu suspirou.
— Então, Magno… — Ele começou, interrompendo mais uma das provocações que o gatuno fazia com Neo. — Todas aquelas crianças são suas?
O silêncio reinou por um momento na carroça, quebrado apenas pelo ruído da roda contra a estrada de terra. Todos pareciam curiosos pela resposta.
O olhar de Teseu era uma máscara analítica, seu queixo ainda apoiado na planta da mão sobre o joelho.
Magno se virou para o garoto com o sorriso de sempre.
— Não, garoto. Aquelas não são os meus maninhos.
A sobrancelha de Teseu se ergueu com dúvida. “Maninhos?”
— Como?
— São os amigos dos meus pivetes. — Magno voltou a falar, se virando pro lado de fora da carroça por um momento. — Eles não tem bem o perfil pra fazer parte da minha trupe.
O olhar de Teseu se fixou em Neo por um momento antes de se voltar para Magno, uma ponta de raiva transparecendo nos seus olhos semicerrados.
— Então você tem critérios pra saber quais crianças da cidade vai ou não aliciar? — O garoto perguntou irritado. Magno parecia alheio a isso olhando para as árvores da floresta. — Que hilário.
Um sorriso irônico e irritado surgiu no rosto do menino.
“Ele envolve essas crianças em crimes e ainda as chama de irmãos?” Uma chama de ódio se tornava mais abrasiva no peito de Teseu.
Lembrou-se da imagem de seu próprio irmão. Imaginou-o como uma daquelas pobres crianças e sua raiva só aumento.
— Escute garoto- Erm, qual o seu nome mesmo? — Magno perguntou se virando novamente para Teseu com um rosto franzido, como se tentasse se lembrar.
Teseu o encarou em silêncio por um momento, antes de responder.
— Teseu.
— Escute Teseu. — Magno prosseguiu. — Aqueles moleques não servem pra esse trabalho. Elas estão melhores fazendo outras coisas.
— E porque você acha isso? — Teseu perguntou, ainda irritado. Magno estava falando como se fosse um contratante.
O gatuno suspirou, impaciente e afagou a cabeça de Neo que seguia focado em devorar sua maçã.
— Por que elas têm pais.
A expressão de Teseu mostrou surpresa. Seu queixo caiu levemente.
— Moleque curioso da por-
TRUNK
De repente, a carroça deu um solavanco violento e parou, inclinando-se perigosamente para a esquerda. Um som de madeira estalando e lama sendo sugada ecoou no silêncio.
— Ótimo. — Magno disse, com um sarcasmo evidente. — O guia nos trouxe para um atoleiro. Que começo promissor.
— Não é minha culpa seu embuste! O chão parecia firme! — Neo retrucou irritado, a voz defensiva, mas não parou de mordiscar sua maçã.
— Ô molequinho da boca suja ein. — Magno disse com um sorriso divertido.
Hermes desceu da carroça sem uma palavra, a mandíbula cerrada em frustração. A roda esquerda dianteira havia afundado quase até o eixo em uma poça de lama espessa, escondida sob uma camada de folhas secas. Os cavalos relinchavam, incapazes de puxar o peso.
— Vamos, desçam. Precisamos empurrar. — A voz de Hermes era um comando frio, impessoal.
Teseu e Magno desceram, seguidos por Ágatha, que lançou um olhar preocupado para Sêneca, imóvel sob o cobertor. Neo pulou pela frente de maneira travessa.
Hermes se posicionou na traseira da carroça, seus músculos se flexionando com a prontidão para o esforço físico. Teseu se juntou a ele, ansioso para provar seu valor.
— Força! — Hermes gritou.
Os dois empurraram, Hermes com uma força que fazia a carroça inteira gemer, e Teseu com toda a energia que seu corpo adolescente conseguia reunir. A carroça moveu-se um centímetro, mas a roda permaneceu firmemente presa na lama.
— Mais uma vez! — Hermes grunhiu, a frustração começando a aparecer em sua voz.
Eles tentaram novamente. E de novo. Era inútil.
Magno, que até então estava apenas observando com os braços cruzados e um sorriso divertido, estalou a língua.
— Empurrar não vai adiantar, desbotado. Você está lutando contra a lama. E a lama sempre vence, não importa o quão forte você seja.
Hermes o fuzilou com o olhar, a irritação clara em seu rosto. — E qual é a sua brilhante sugestão?
Em vez de responder, Magno olhou ao redor, seus olhos espertos analisando a floresta. Ele apontou para um tronco de árvore grosso e caído a alguns metros de distância.
— Teseu, garoto. Venha comigo. Seja útil. — Magno disse em um tom casual chamando o nome que conhecera a menos de trinta minutos.
Surpreso com a ordem, mas querendo ajudar, Teseu seguiu Magno. Juntos, eles arrastaram o tronco pesado até a carroça. Sob as instruções do ladrão, eles o posicionaram como uma alavanca, com a ponta enfiada sob o eixo da roda presa e uma pedra grande como ponto de apoio.
— Certo, fortão. — Magno disse para Hermes. — Quando eu disser, você levanta a ponta do tronco com toda essa sua força aí. Ágatha, jogue esses galhos secos no buraco quando a roda sair. Teseu, você e eu empurramos a carroça de lado no mesmo instante. Entenderam?
Hermes o encarou por um momento, uma ponta de admiração relutante surgindo em meio à sua irritação. A solução era simples, inteligente e totalmente prática. Ele acenou com a cabeça.
— Agora! — Magno gritou.
Hermes usou sua força para pressionar a alavanca improvisada. A madeira gemeu, e lentamente, a roda começou a se erguer da lama com um som de sucção nojento. No exato momento em que saiu, Ágatha jogou os galhos no buraco, e Teseu e Magno empurraram a lateral da carroça, deslocando-a para o chão firme.
Eles conseguiram. A carroça estava livre.
Hermes estava ofegante, mais pela frustração do que pelo esforço. Magno, por sua vez, limpava a lama das mãos com um ar de superioridade.
— Viu? — Ele disse, com um sorriso vitorioso para Hermes. — Às vezes, pensar é mais útil do que apenas empurrar.
Hermes não respondeu. Apenas lançou a ele um último olhar que era uma mistura de irritação e um respeito recém-descoberto, antes de subir de volta ao assento do condutor. A tensão entre o grupo havia se dissipado um pouco.
…………
Após o que pareceram ser mais duas horas de viagem, a floresta começou a mudar. O ar tornou-se mais denso, mais úmido. Os sons dos pássaros cessaram, e um silêncio estranho e pesado desceu sobre eles. As árvores, antes majestosas, agora pareciam retorcidas, seus galhos se curvando sobre a estrada como garras.
— Tem certeza de que é por aqui, pivete? — Magno perguntou, seu tom divertido finalmente dando lugar a uma ponta de incerteza.
— Claro que tenho! — Neo retrucou, ofendido. — Eu lembro direitinho. A casa da bruxa fica logo depois dessa parte esquisita.
Eles continuaram por mais algum tempo. A estrada parecia se repetir, cada curva revelando uma paisagem de árvores idênticas à anterior.
Foi Teseu quem percebeu primeiro. Seus olhos, acostumados a procurar por detalhes na escuridão, notaram algo.
— Hermes… — ele disse, sua voz baixa. — Aquela rocha… não é a mesma que passamos há quase uma hora? A que parece um sapo?
Hermes parou a carroça. O silêncio que se seguiu foi quebrado apenas pela respiração pesada dos cavalos. Ele olhou para a rocha. Era inconfundível. Eles haviam andado em círculos.
— O que foi que eu disse sobre ser confiável, Magno? — Hermes disse, sua voz perigosamente calma, virando-se para o gatuno.
— Ei, a culpa não é minha! O pivete disse que era por aqui! — Magno se defendeu, olhando com raiva para Neo.
— Eu juro! É o caminho certo! — O menino insistiu, seus olhos agora arregalados de medo e confusão. — As árvores… elas parecem diferentes.
Não eram as árvores que estavam diferentes. Eram as mesmas. Mas estavam em lugares diferentes. Hermes desceu da carroça, seus olhos dourados varrendo a floresta ao redor. Ele sentiu. Uma energia sutil, mas poderosa, permeando o ar. Era como se o ar se tornasse mais úmido, pesado. Uma magia antiga, tecida na própria essência daquele bosque. Uma barreira.
— Isso não é uma floresta. — Hermes declarou, sua voz ecoando na quietude. — É um labirinto.
Ele se virou para o grupo, que agora o olhava com uma mistura de medo e expectativa.

— Estas são as proteções de Circe. Ela não quer visitantes. E a julgar pela força dessa ilusão, a mulher que procuramos é ainda mais poderosa do que eu imaginava.
…………
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