A declaração de Hermes pairou no ar, mais pesada e fria que a umidade da floresta. “É um labirinto.” A palavra sugou a pouca esperança que o grupo ainda possuía, substituindo-a por uma apreensão palpável.

    — Labirinto? — Magno repetiu, seu tom zombeteiro habitual substituído por uma incredulidade genuína. Ele varreu o entorno com o olhar, a floresta que antes era apenas densa, agora parecia zombar dele com suas sombras retorcidas e silenciosas. — Você quer dizer que estamos perdidos de propósito? Que gracinha da vovó.

    Teseu, por outro lado, sentia um calafrio que nada tinha a ver com a temperatura. A ideia de uma magia tão poderosa, capaz de dobrar a própria realidade, era ao mesmo tempo aterrorizante e fascinante. Seus olhos percorriam os troncos que pareciam se curvar como garras sobre a estrada, compreendendo agora que não era sua imaginação.

    — Ela não quer visitantes — disse Ágatha em um sussurro, sua mão apertando a manta que cobria Sêneca, como se o gesto pudesse protegê-lo daquela força invisível.

    Hermes não perdeu tempo com debates. A lógica de um labirinto exigia uma visão superior. Com a agilidade de um predador, ele se aproximou do tronco de um carvalho antigo, cujos galhos mais baixos eram grossos como as coxas de um homem. Ignorando o olhar surpreso de seus companheiros, ele começou a escalar. Seus movimentos eram fluidos e precisos, uma memória muscular de um corpo que, mesmo mortal, não esquecera a arte de se mover.

    Em instantes, ele estava acima da maior parte da folhagem, empoleirado em um galho alto. O que viu, no entanto, não trouxe clareza, mas uma frustração gélida. A copa das árvores era um teto quase impenetrável, um mar verde e escuro que mal permitia a passagem da luz do sol. Pior ainda, a paisagem abaixo parecia viva, instável. A rocha em formato de sapo, que eles haviam visto há minutos, não estava mais lá. A trilha de terra que haviam seguido parecia ter sido apagada, engolida pela vegetação. Era como olhar para um mapa que se redesenhava a cada piscar de olhos.

    Ele desceu, aterrissando no chão com um baque surdo, a poeira subindo em seus pés.

    — Não adianta. A floresta se move. Ou nos move junto com ela. — Sua voz era fria, analítica. — Não há um “norte” ou “sul” aqui dentro. Apenas o que ela quer que vejamos.

    Magno estalou a língua, a frustração devolvendo-lhe um pouco de sua postura arrogante. — Besteira. Todo truque tem um segredo. Se não podemos ir por cima, vamos pela lógica.

    Ele se aproximou de uma árvore de casca pálida e, com a ponta de sua faca, entalhou um símbolo nela: um círculo com uma flecha apontando para fora. — Simples. Vamos andar em linha reta naquela direção. — Apontou para um ponto aleatório. — Se voltarmos a este mesmo símbolo, saberemos que estamos em um círculo. Se não, encontramos uma saída.

    O plano era rudimentar, mas era um plano. Sob a liderança relutante do gatuno, eles avançaram. A caminhada era tensa. Cada som de galho se quebrando fazia Hermes levar a mão à espada, a ameaça dos olhos vermelhos ainda uma presença vívida em sua mente.

    Foi em meio a essa caminhada tensa que eles encontraram algo. Algo que não pertencia àquele lugar. Enfiado entre as raízes grossas de uma das árvores estava um pequeno sapato de couro gasto, do tamanho que serviria a uma criança de não mais que oito anos.

    O silêncio que caiu sobre o grupo foi imediato e pesado. Magno, que praguejava contra a feitiçaria da floresta, se calou. Ele se aproximou lentamente e pegou o sapatinho. A energia nervosa e a astúcia haviam desaparecido de seu rosto, substituídas por uma expressão sombria e preocupada que Hermes nunca vira antes. Ele virou o pequeno objeto nas mãos, seus dedos traçando as costuras gastas.

    — O que foi? — Ágatha perguntou, sua voz baixa.

    Magno não respondeu de imediato. Ele guardou o sapato em um bolso de sua túnica com um cuidado quase reverente. — Crianças têm desaparecido em Therma. — Ele disse, a voz desprovida de sua sagacidade habitual. — Achei que era coisa de traficantes de escravos… mas aqui? Tão fundo na floresta?

    A descoberta adicionou uma nova camada de pavor à sua situação. Aquela floresta não era apenas um labirinto; era um lugar de segredos sombrios. 

    Estaria a bruxa dando sumiço nas crianças da cidade? E para quê?

    O rosto do gatuno se tornou sisudo.

    Eles começaram a andar, abrindo caminho através dos arbustos. O ambiente ficava cada vez menos visível à medida em que avançavam. 

    Uma névoa úmida, comum em pântanos, passou a se fazer presente, irritando os viajantes e atrapalhando ainda mais sua visualização.

    A floresta parecia protestar.

    Os sussurros que antes roçavam seus ouvidos agora se tornavam mais claros, mais pessoais, como se a magia do lugar tivesse encontrado a frequência exata de suas almas para atormentá-los.

    Começou com Ágatha. O cheiro de carvão e umidade foi sendo lentamente substituído pelo aroma quente de pão recém-assado e ensopado de cordeiro. Ela piscou, confusa. 

    À sua esquerda, através de uma abertura nas árvores que ela não notara antes, um caminho de pedras lisas parecia se formar, levando a uma clareira ensolarada. A voz de um menino soou de forma convidativa, um eco distante. “Ágatha, venha! Achei amoras!” Ela, sem perceber, começou a desviar seu curso, um passo, depois outro, em direção ao caminho de pedras, o rosto transfigurado por uma saudade dolorosa. Uma lágrima desceu por sua bochecha.

    Ao mesmo tempo, Magno parou, a cabeça virada, os olhos fixos em um emaranhado de samambaias. Um riso infantil, claro e inconfundível, dançou no ar. Ele conhecia aquele riso. Era o de Lira, uma das mais novas de sua trupe. “Chefe, pega a gente!”, a voz dela soou, seguida por mais risadas e pelo som de pés pequenos correndo. 

    Uma trilha de flores azuis, as favoritas da menina, começou a brotar no chão da floresta, formando um caminho que se aprofundava na mata. O rosto de Magno se suavizou, a esperança e a preocupação nublando seu julgamento. Ele se esqueceu do grupo, da missão, e começou a seguir a trilha de flores, seu coração apertado guiando-o.

    Hermes também sentiu algo mudar.

    Não uma visão ou um som, mas uma sensação avassaladora de leveza. O peso de seu corpo mortal, a dor latejante em seu ombro, a fadiga que corroía sua mente… tudo começou a se dissolver. Ele sentiu o poder formigar em seus calcanhares, a promessa de liberdade. 

    O céu, através da copa das árvores, parecia se abrir, chamando-o para longe daquele mundo de dor. Estava prestes a ceder, a dar o primeiro salto para o esquecimento, quando sua mão roçou na túnica. No bolso, a moeda de Tânatos pulsou com um frio anormal, uma pontada de gelo necrótico que queimou a pele de Hermes através do tecido, rompendo a ilusão como uma faca. 

    A sensação era tão real e tão profana que o ancorou instantaneamente de volta à sua miserável realidade. O céu se fechou. A dor retornou. E com ela, a clareza. Seus olhos recuperaram o brilho, seu pescoço coçava. Tateou com a mão e agarrou algo. Um cipó, enrolado ao redor de sua garganta.

    À sua frente, no lugar para onde ele a pouco quase saltara crente na sua habilidade de voo, estava uma queda livre.

    Ele estava prestes a se enforcar.

    Ele tirou o cipó com uma expressão tensa, olhou em volta e viu seus amigos.

    …………

    Enquanto Ágatha se afastava, atraída pela visão de seu lar, e Magno seguia o riso fantasma de uma criança, Teseu sentiu uma onda de pânico e responsabilidade. Seus amigos estavam sendo enganados, levados para o perigo, e cabia a ele, o portador do nome de um herói, protegê-los.

    Ele se moveu para seguir Ágatha, mas no momento em que deu o primeiro passo, a floresta à sua frente se transformou. As árvores retorcidas se endireitaram, tornando-se os pilares de mármore de um grande salão de guerra. Estandartes com brasões que ele não reconhecia pendiam das paredes, e o ar cheirava a couro polido e aço.

    No centro do salão, uma figura imponente o aguardava. Era um guerreiro de armadura dourada, com um elmo que obscurecia seu rosto, mas cuja postura irradiava uma autoridade nobre e uma força incomensurável.

    — Finalmente, jovem Teseu. — A voz do guerreiro era como o trovão distante, cheia de poder e sabedoria. — Nós o observamos. Vemos a centelha de um verdadeiro herói em você. Mas o heroísmo exige sacrifícios.

    O guerreiro apontou para a figura de Ágatha, que continuava a se afastar. Quando Teseu olhou, a imagem da garota tremulou. Por um instante, ele não a viu como sua amiga, mas como uma criatura sombria, uma serva da escuridão com um sorriso cruel, guiando-os para a morte.

    — A escuridão plantou um espião entre vocês. — A voz do guerreiro ecoou no salão fantasma. — Uma isca para levar os fortes à ruína. Você a vê. Sabe em seu coração que ela não é quem aparenta ser. Um verdadeiro herói faz o que é necessário. Ele corta o membro infectado para salvar o corpo. Seja forte. Elimine a ameaça antes que ela destrua a todos.

    Teseu sentiu o coração pesar. A visão era tão convincente, a voz do guerreiro tão nobre. Era seu dever. Ele olhou para as costas de Ágatha, agora a silhueta de uma inimiga. 

    Com o rosto contraído em uma máscara de determinação trágica, ele ergueu sua xiphos. O aço pareceu pesado em suas mãos. Era o fardo do herói.

    Ele avançou, silencioso, a lâmina erguida, pronto para desferir o golpe necessário. Estava a apenas alguns passos dela. Sua mente gritava que era o certo a fazer.

    Mas seu coração gritou mais alto.

    A imagem de seu irmão morrendo em seus braços adoentado, preso em uma cama, surgiu em sua mente. A promessa que fizera sobre o túmulo improvisado dele. 

    Protegeria seus amigos. Ágatha, Sêneca, Hermes. Eram sua família agora. Um herói protege sua família. Um herói não ataca uma garota indefesa pelas costas, não importa o quão nobre seja a justificativa.

    — Faça. — A voz do soldado ecoou atrás dele, firme.

    “Não… assim”, ele pensou, a agonia do conflito rasgando sua alma. “Este não é o caminho de um herói. É o caminho de um monstro.”

    — Faça AGORA! — O grito veio de trás em um grasnido assustador, como um corvo que imita a voz humana.

    A percepção o atingiu como um golpe físico. A ilusão, construída sobre seu desejo de heroísmo, desmoronou ao se chocar contra a fundação de sua própria bússola moral.

    Teseu olhou por cima de seu ombro, uma sombra profana espreitava suas costas.

    O salão de guerra se dissolveu. O nobre guerreiro desapareceu e a sombra se foi com ele. O que ele viu agora era a realidade nua e crua: Ágatha, sua amiga, a um passo de cair em uma ravina mortal. E ele, com a espada erguida, prestes a empurrá-la.

    O horror do que quase fizera o libertou.

    — ÁGATHA! — Seu grito rasgou o silêncio da floresta, cheio de pânico enquanto ele corria para segurá-la. — CUIDADO!

     Ele correu e a agarrou pelo braço, a poucos passos da queda. Ela gritou, assustada, e a visão de seu lar desapareceu.

    — Magno, pare! É uma armadilha! — Hermes berrou, agora livre de sua própria ilusão.

    Magno parou com o pé no ar, a um centímetro da lama que ceifaria sua vida. Ele piscou, e as flores azuis murcharam, tornando-se galhos secos e podres. O riso das crianças foi substituído pelo coaxar de sapos. Ele olhou para o homem de cabelos brancos, o rosto uma mistura de gratidão e terror.

    Com o grupo agora desperto e alerta, só faltava um. Eles se viraram e viram Neo. O menino não estava seguindo um caminho, estava parado em frente a um galho baixo, os olhos fixos, hipnotizados. Pendurada no galho, na altura de seu rosto, havia uma única e perfeita maçã dourada, que brilhava com uma luz própria e convidativa.

    — Pivete, saia daí! — Magno gritou, correndo em sua direção.

    A mão de Neo se estendia lentamente, os dedos quase tocando a fruta lustrosa. Ele não ouvia nada, completamente absorto pela visão do prêmio perfeito. No instante em que os dedos do menino estavam prestes a tocar a casca dourada, Magno o alcançou. Com um movimento brusco, ele agarrou o garoto pela túnica e o puxou para trás com força.

    No mesmo segundo, a “maçã” se moveu. A luz dourada se desfez, revelando a cabeça triangular de uma víbora de escamas verde-esmeralda. A boca da cobra se abriu em um bote rápido e silencioso, suas presas gotejando veneno no exato lugar onde o braço de Neo estivera um momento antes. A criatura, tendo errado o alvo, sibilou furiosamente e deslizou para a escuridão da vegetação.

    Magno segurava Neo, que parecia confuso, com o rosto pálido de quem acabara de encarar a morte. O gatuno olhou de Hermes para Teseu, o último resquício de dúvida varrido de seu rosto. Aquela floresta não queria apenas confundi-los. Queria matá-los.

    …………

    Eles saíram daquele trecho da floresta com pressa. Magno carregava o pequeno Neo nos braços enquanto corria. Após algum tempo correndo, a neblina começou a se dissipar e eles, pressentindo que o perigo havia ficado para trás, pararam para respirar.

    Foi então que Teseu falou.

    — Magno… — Ele apontou. — É aquela árvore.

    Todos se viraram. Era inconfundivelmente a mesma árvore de casca pálida. Mas o símbolo entalhado por Magno não estava mais lá. A casca estava lisa, intocada, como se a lâmina jamais a tivesse ferido.

    — Impossível! — O gatuno correu até a árvore, passando os dedos pela superfície, procurando por qualquer vestígio de seu corte. — Eu marquei aqui! Eu vi!

    Eles andaram pelo que pareceram vinte minutos, e correram por mais alguns o caminho se contorcendo, mas Magno insistia que mantinham a direção geral.

    A floresta estava brincando com eles.

    Com todas as opções esgotadas, a atenção de todos se voltou para a única pessoa que já estivera ali e saíra para contar a história. Neo ainda mordiscava sua maçã, mas seus olhos, antes cheios de uma confiança arrogante, agora estavam arregalados de medo e confusão.

    — Pivete. — A voz de Hermes era afiada. — Da outra vez. Como você saiu?

    — Eu… eu não sei! — Neo gaguejou, encolhendo-se sob o olhar intenso de Hermes. — Não era assim! As árvores eram só árvores! Eu andei, andei, e então eu achei a casa dela! Eu juro!

    — Você não seguiu um caminho? Uma trilha? O sol? — Hermes pressionou, a paciência se esvaindo.

    Neo balançou a cabeça freneticamente, parecendo prestes a chorar. — Não! Eu segui o cheiro de maçãs! Era… era uma sensação! A floresta… da outra vez ela estava… feliz. Agora… — seus olhos varreram as árvores retorcidas que os cercavam. — Agora ela está zangada.

    Hermes o encarou por um longo momento, as palavras infantis do garoto ecoando em sua mente. Zangada. Feliz. Não era sobre lógica ou direção. Era sobre intenção. A floresta reagia a eles, aos seus medos, à sua pressa, à sua natureza.

    — É isso. — Hermes declarou, sua voz cortando a tensão. Ele se virou para os outros, seus olhos dourados brilhando com uma nova compreensão. — Parem de lutar contra ela. Parem de enxergar isso aqui como um desafio.

    Ele se ajoelhou na frente de Neo, sua expressão suavizando-se minimamente. — Garoto. Esqueça o caminho. Apenas sinta. Para qual direção… a floresta parece menos zangada? Onde está o cheiro de maçãs?

    Neo fechou os olhos, a maçã esquecida em sua mão. Ele respirou fundo, seu rosto pequeno se contorcendo em concentração. 

    — Está aqui! — Ele respondeu com um olhar focado e sério.

    Seu indicador apontando para a maçã que tinha em mãos.

    Hermes suspirou impaciente e fechou os olhos, rogando a si mesmo por paciência.

    Magno se aproximou, bagunçando os cabelos do menino, já não tinha no rosto o sorriso despreocupado de sempre.

    — Além dessa, Neo. — Ele falou, num tom fraternal e maduro.

    Neo fechou os olhos de novo.

    Após um longo minuto, ele abriu os olhos e apontou, não para uma trilha, mas para uma parede de vegetação densa e escura.

    — Para lá. — Ele disse, a voz um pouco mais confiante. — É mais quieto… lá.

    Hermes se levantou. — Então é para lá que vamos. Fiquem juntos. E não importa o que vejam ou ouçam, sigam o garoto.

    Eles começaram a andar, abrindo caminho através dos arbustos. A floresta ao redor deles parecia protestar. Sussurros roçavam seus ouvidos, soando como seus nomes ditos por vozes distantes. Sombras dançavam na periferia de suas visões, formando silhuetas de monstros e homens. Mas eles não pararam.

    Lentamente, quase imperceptivelmente, a atmosfera começou a mudar. Os galhos retorcidos pareciam se endireitar. A opressão no ar diminuiu, dando lugar a uma brisa suave e menos úmida. E então, eles sentiram. Um perfume delicado de jasmim e madressilva.

    Eles atravessaram uma última cortina de trepadeiras e a ilusão se quebrou.

    Estavam na borda de uma clareira circular, banhada por uma luz dourada e pacífica. O ar era quente e doce. No centro, rodeada por canteiros de ervas e flores de cores vibrantes, havia uma pequena casa de pedra e madeira, com uma fina coluna de fumaça subindo de sua chaminé. O som de uma fonte borbulhante era a única música naquele santuário escondido.

    Diante deles, o coração do labirinto. E também, a morada da bruxa.

    …………

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