Com Hermes, Magno e Teseu abrindo caminho com suas lâminas, o grupo atravessou a cortina de trepadeiras e adentrou a clareira. A transição foi como passar da noite para o dia, do pesadelo para um sonho. 

    O ar opressivo do labirinto deu lugar a uma brisa quente e perfumada. O som de uma fonte borbulhante era a única música naquele santuário escondido, um contraste absoluto com os sussurros e a tensão da floresta.

    No centro da clareira, diante de uma casa de pedra coberta de hera, estava a mulher. Ela se virou serenamente ao som dos passos e das rodas da carroça.

    Hermes sentiu-se incomodado. Magno, impressionado.

    Não havia nela a imagem grotesca das lendas. Era uma figura de beleza serena, madura e atemporal. 

    Seus longos cabelos escuros, com reflexos castanhos que brilhavam sob a luz da clareira, emolduravam um rosto de traços delicados e um sorriso genuinamente acolhedor. No entanto, eram seus olhos que continham seu verdadeiro poder; profundos e calmos, pareciam carregar o peso e a sabedoria de incontáveis estações. Um colar fino envolvia seu pescoço.

    Ela os observou se aproximarem, um a um, com uma calma que beirava a resignação.

    — Poucos encontram o caminho para este lugar. — A voz dela era calma, melodiosa como o som da fonte. Seus olhos passaram por Teseu, depois por Magno, e então se fixaram em Hermes. — Para terem superado as ilusões do bosque, vocês certamente são… especiais.

    — Cortemos a bajulice. — A voz de Hermes era direta, cortando a paz do lugar com sua urgência. Ele gesticulou para a carroça. — Viemos porque nosso amigo está morrendo. Disseram que aqui encontraríamos uma curandeira.

    — E encontraram… — Ela afirmou, um sorriso doce e acolhedor acompanhando as palavras.

    Magno tossiu, limpando a garganta. Ele deu um passo à frente, ficando lado a lado com Hermes.

    — Vo-você é Circe? — Sua voz, quase sempre repleta de um charme ladino e de certeza, mostrava traços de insegurança.

    Hermes esperou em silêncio. Essa era uma pergunta muito importante. Seria ela a verdadeira?

    A legítima feiticeira lendária com centenas de anos ou mais? Ou apenas uma imitadora barata?

    Sem rodeios, ela fitou Magno, o rosto ainda na direção de Hermes.

    — Sim. Eu sou.

    A resposta que não muito revelava em relação à sua desconfiança tirou Hermes de seu torpor investigativo.

    — E vocês são? — Ela perguntou, ajeitando a túnica com as mãos como se limpasse alguma sujeira invisível.

    — Eu sou Magno. — O gatuno respondeu de pronto.

    — Meu nome é Teseu, senhora. É um prazer. — O garoto disse mais atrás, o tom de voz amistoso.

    — Neo. — O pequeno garoto falou, sendo percebido pela primeira vez pela mulher.

    Estava um pouco atrás de Magno, ainda mordiscando sua maçã. Circe se inclinou um pouco por sobre a cerca da fronte do casebre, buscando vê-lo melhor, e então sorriu docemente.

    Ela então direcionou seu olhar para Hermes com curiosidade, em silêncio, esperando a boa vontade do rapaz em respondê-la.

    Hermes estranhou. Ela não se lembrava dele? Não o havia reconhecido?

    — Hermes. — A voz do jovem de cabelos brancos revelou, sem cerimônia.

    Circe não mostrou uma reação diferente da que ofereceu aos demais. Ela acenou com a cabeça em simpatia.

    A sobrancelha de Hermes se ergueu. Seria possível que ela realmente não se lembrasse dele?

    Mesmo com séculos tendo se passado desde o seu último encontro, a memória de seres tão longevos quanto eles não desacompanhava as outras capacidades.

    Percebendo como o silêncio humano e o canto dos pássaros dominara a clareira, Hermes se adiantou.

    — Precisamos da sua ajuda. O estado de nosso companheiro é grave. — Ele afirmou. A voz firme indicava uma requisição, não um pedido.

    A mulher não pareceu se ofender.

    O olhar de Circe se suavizou, a curiosidade dando lugar a uma expressão de compaixão profissional. Sem uma palavra, ela se aproximou da carroça. Ágatha, que estava ao lado de Sêneca, recuou um passo, intimidada pela presença da mulher. Circe a ignorou por um momento, seu foco totalmente no velho adormecido.

    Com uma delicadeza que surpreendeu a todos, ela pousou o dorso da mão na testa de Sêneca. Seu rosto se contraiu em uma expressão séria.

    — Febre… — ela murmurou para si mesma, antes de seu olhar descer para o braço enfaixado do homem. Ela não tocou nos panos sujos, mas seus olhos pareceram ver através deles. Um arrepio percorreu seu corpo e sua expressão se formou em choque. — Pelos deuses…

    — Você pode ajudá-lo? — A pergunta de Ágatha foi um sussurro trêmulo.

    Circe ergueu o olhar, e a compaixão em seus olhos era genuína, o que deixou Hermes ainda mais desconfiado.

    — Criança… — ela disse suavemente para Ágatha. — Sinto o toque gélido de Tânatos nele. É como se a própria Morte já o tivesse reclamado para si. A podridão que consome sua carne já não é mais deste mundo.

    Ao ouvir a menção a Tânatos, Hermes sentiu um gelo em seu próprio peito. Sua mão, de forma involuntária, foi para o bolso interno de sua túnica, onde a moeda fria e pesada repousava. Seria possível?

    A presença da moeda em sua posse estaria acelerando a morte de Sêneca? 

    A dúvida, venenosa e terrível, se instalou em sua mente. A desconfiança que sentia pela feiticeira agora se dividia com a suspeita sobre si mesmo.

    Circe pareceu notar a angústia de Ágatha. Ela olhou para a menina, seus olhos se estreitaram um pouco, um quê de interesse surgiu em seu semblante.

    — Você cuidou bem dele. É o seu pai? — Suas palavras eram gentis, mas seu olhar buscava algo, dentro da menina.

    A menina levou a mão ao peito, o rosto incerto e o coração também.

    — Não… É um amigo, um grande amigo… — O pesar em seu olhar era palpável.

    Circe suspirou, aquiescência. 

    Ela então se afastou da carroça em direção ao seu casebre.

    — Tragam-no para dentro. Farei o que puder para aliviar sua dor e retardar o avanço da maldição. Mas a cura… a cura exigirá muito mais do que minhas ervas e encantamentos.

    Sem tempo a perder, os ombros de Hermes pesaram com a decisão. Com um aceno quase imperceptível, ele e Magno ergueram o corpo febril de Sêneca, carregando-o com um cuidado que contrastava com a brutalidade de suas jornadas anteriores. Teseu se adiantou para abrir a porta da modesta casa.

    O interior não era o covil de uma bruxa, mas o laboratório de uma erudita. O ar cheirava a ervas secas, papiro antigo e ao ozônio sutil de magia contida. Prateleiras repletas de rolos, frascos de cerâmica e instrumentos de bronze polido cobriam as paredes. Em uma mesa central, um almofariz e um pilão de pedra repousavam ao lado de diagramas de anatomia e cartas celestes.

    — Que fedor! — Disse Neo fazendo uma careta enquanto entrava com sua maçã a centímetros do rosto.

    Eles deitaram Sêneca em um leito simples, mas impecavelmente limpo, em um canto do cômodo. Sem perder tempo, Circe começou a trabalhar. Seus movimentos eram precisos e eficientes. Ela moía folhas secas em um pó fino, misturava-o com um unguento translúcido e, para a surpresa de todos, começou a limpar a ferida necrosada com uma delicadeza e profissionalismo que nenhum deles jamais vira. Ágatha observava cada gesto, o coração dividido entre a esperança e o medo. 

    Teseu observava com curiosidade. E então, para sua surpresa, por alguns segundos, um brilho estranho pareceu escapar das mãos de Circe, fluindo para dentro das feridas de Sêneca. 

    O garoto arregalou os olhos, e então se virou para Hermes assustado. O homem de cabelos brancos o olhou de volta e com um aceno de cabeça, confirmou que também havia visto.

    Os olhares dos outros eram de encanto.

    Após aplicar o cataplasma e refazer as bandagens com linho limpo, Circe lavou as mãos em uma bacia d’água e se virou para eles. A expressão em seu rosto era grave.

    — Eu estabilizei a necrose. As ervas devem conter a febre por um tempo. — Ela fez uma pausa, seus olhos negros e piedosos encontrando os de Hermes. — Mas isso é como represar um rio com um muro de areia. A alma dele já tem um pé no outro lado, remédios não vão prendê-lo aqui por muito tempo.

    — Droga — exclamou Teseu, impaciente. — Então teremos que ficar aqui contando as horas e vendo-o morrer?

    O desânimo se apoderou do quarto.

    Circe suspirou, um som antigo e cansado. — A energia de Tânatos não pode ser simplesmente desfeita. Ela precisa ser… contrabalançada. Purificada por uma força de igual magnitude, mas de natureza oposta. Uma força de vida pura.

    Ela caminhou até uma de suas prateleiras e pegou um pequeno rolo de papiro amarelado pelo tempo.

    — Há lendas sobre uma flor, a Lótus de Perséfone. Dizem que ela floresce apenas uma vez a cada século, banhada pela luz do próprio Elísio, e que suas pétalas contêm a essência da vida, capazes de reverter a decadência e a morte.

    — Uma lenda? — Magno interveio, cético. — Estamos apostando a vida dele em um conto de fadas?

    — Contos de fadas são ecos de verdades que os mortais esqueceram, gatuno. — Circe retrucou, sem hostilidade. — E a verdade é que a última Lótus colhida de que se tem notícia existe. Ela está em Therma.

    A menção à cidade fez o grupo se entreolhar.

    — Ela pertence ao último Arconte de Therma. — Circe continuou, sua voz tingida de um leve desdém. — Um homem chamado Kyros. Um colecionador de raridades que a guarda como um mero tesouro, alheio ao poder de cura que possui.

    — O que você quer em troca? — A pergunta de Hermes foi direta, desconfiada.

    Circe o encarou, e por um instante, um sorriso triste tocou seus lábios. 

    — Ver um artefato lendário como esse e ainda salvar a vida deste pobre homem. Não desejo nada além disso. O que mais uma velha aposentada poderia querer além de uma dose de nostalgia? 

    Hermes ergueu uma sobrancelha, surpreso.

    “Até parece.” Ele sorriu para si mesmo.

    — No entanto, a maldição em Sêneca é volátil. Ele não pode ser movido novamente nesta condição. A energia deste bosque o protege e retarda o avanço do mal. Ele deve permanecer aqui, sob meus cuidados, até que vocês retornem. — Circe afirmou, seu olhar pesaroso sobre o homem deitado.

    Seu olhar então se moveu para Ágatha, que segurava a mão de Sêneca com uma devoção silenciosa.

    — E eu precisarei de ajuda. — Circe disse, sua voz suave. — A menina… ela tem uma empatia que acalma o espírito dele. Sua presença é um bálsamo tão poderoso quanto minhas ervas. Eu precisarei que ela fique, para me ajudar a mantê-lo estável.

    Ágatha ergueu o olhar, surpresa, mas antes que pudesse hesitar, a ideia de ser útil para salvar Sêneca a preencheu com um propósito.

    — Não. — A resposta de Hermes foi imediata e cortante como vidro. Todos se viraram para ele. — Ela vai conosco.

    Circe o encarou, a surpresa em seu rosto sendo rapidamente substituída por uma calma analítica. — Sua lealdade a seus amigos é admirável, Hermes. Mas isto não é sobre desejo, é sobre necessidade.

    — Não vou dividir o grupo. — Hermes insistiu, seus olhos dourados fixos nos dela.

    — O maior perigo é falhar. — Circe retrucou, dando um passo em direção a ele. Sua voz permaneceu suave, mas carregada de um peso inegável. — Pense nisto: acha que conseguirá adentrar as defesas do Arconte enquanto tiver que se preocupar com ela?

    Ela parou a poucos metros dele, seu olhar perscrutador parecendo ver além de sua aparência mortal.

    — Deixe que a menina cumpra o seu papel, para que você possa cumprir o seu.

    “Por que ela quer tanto que-” Sua desconfiança se aprofundou, mas a lógica dela era uma armadilha perfeita.

    — Hermes… — A voz de Ágatha, trêmula mas determinada, quebrou a tensão. — Eu quero ficar. Se eu puder ajudar Sêneca de verdade… eu preciso ficar. Por favor.

    Ele olhou do rosto suplicante de Ágatha para a expressão calma e enigmática de Circe. Estava encurralado. Sua desconfiança era um luxo. A vida de seu amigo não era.

    — Esperem um pouco aí. — A voz de Magno, afiada e desconfiada, cortou a atmosfera pesada. Todos se viraram para ele. Seus olhos estavam fixos em Circe, não com medo, mas com o cálculo frio de um investigador. — Tá um papo muito interessante e tudo o mais… Mas eu também tenho perguntas a fazer aqui!

    A mulher o olhou com curiosidade. E então assentiu, como se o pedisse para continuar.

    — Crianças estão sumindo em Therma, sem deixar qualquer rastro. Os guardas não sabem de nada e nem mesmo os moradores. — Ele falou, seu tom expositivo como o de alguém que se preparava para uma conclusão fatal.

    Circe o olhou, sua expressão impassível, mas com uma sombra de tristeza em seus olhos.

    — É mesmo? — Ela indagou.

    — Sim, velha, é mesmo! — Magno disse, irritadiço, mas um pouco irônico. — Eu andei pensando em quem seria capaz de fazer algo assim, sumir com gente tão barulhenta e sem deixar rastros. — Ele deu um passo à frente. — Alguém com habilidades estranhas, talvez.

    Circe estreitou os olhos e meneou a cabeça um pouco para trás, sentindo-se ofendida.

    — O que está insinuando, rapaz? — A mulher perguntou com a voz intrigada.

    — Exatamente o que parece, bruxa! — Neo declarou, indulgente, apontando acusadoramente para Circe enquanto segurava a maçã com a outra mão.

    Todos arregalaram os olhos, alarmados pela palavra indiscreta. O menino pareceu alheio a isso e seguiu na pose, comendo a maçã.

    Circe suspirou, e então sorriu compassivamente.

    — Você me culpa pelos medos de sua cidade, gatuno? Acha que uma mulher que busca o isolamento se ocuparia com a crueldade dos homens? Você se engana sobre mim.

    — É mesmo? — Magno retrucou, um brilho de desafio em seu rosto. Estava aguardando isso para declamar o golpe final.  — E como explica isso?

    Com um movimento confiante, ele enfiou a mão no bolso de sua túnica, buscando a prova que guardara com tanto cuidado. Ele puxou a mão para fora, pronto para revelar o pequeno sapato de couro.

    Mas em sua palma não havia um sapato. Havia apenas uma pedra comum, coberta de musgo, com um formato vagamente semelhante ao de um calçado.

    A confusão no rosto de Magno foi genuína. Ele olhou para a pedra, depois para o bolso vazio, o choque da realidade quebrando sua postura acusatória. A floresta o havia enganado.

    Circe sorriu, um sorriso que não era de triunfo, mas de uma sabedoria antiga.

    — A magia deste bosque, às vezes, reflete os medos mais profundos daqueles que o cruzam, tornando-os reais para quem os sente. — Ela disse suavemente. Então, seu olhar se intensificou. — Mas não se preocupe com pedras e ilusões, ladrão. O que você procura… a resposta para o desaparecimento de suas crianças… também está em Therma. Ajude seus novos amigos a recuperar a flor do Arconte, e eu lhe garanto que você encontrará o caminho para o que tanto deseja.

    O plano estava sobre a mesa. Perigoso, quase impossível, e dependente da palavra de uma feiticeira lendária. Hermes sentia o peso da decisão. 

    Voltar para a cidade que representava o poder que o esmagara, invadir a fortaleza de um Arconte… era uma loucura. Ele não confiava em Circe. Sentia que havia uma peça faltando, um interesse oculto por trás de sua fachada benevolente.

    Mas então ele olhou para o rosto pálido de Sêneca. Lembrou-se do homem que o tratara com dignidade quando ele não era nada além de um escravo quebrado. Lembrou-se da promessa silenciosa que fizera a si mesmo de protegê-los.

    Com o maxilar cerrado, ele deu um aceno quase imperceptível. A concessão foi uma pílula amarga.

    — Nós traremos a flor.

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