Capítulo 4 | Servo (2)
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Hermes recobrou sua consciência com o estalar de uma crepitação e a sensação de algo tocando sua cabeça.
Pulou, apoiando as mãos no pano que estava abaixo dele, e então se desequilibrou no balanço daquilo em que ele havia se apoiado.
BLAM
Por sorte, estava a poucos centímetros do chão.
A dor do choque de sua cabeça contra o chão o fez levantar-se em estado de alerta.
Para sua surpresa, ao seu lado, uma garota estava sentada. Alguém que já havia visto antes. Tudo parecia escuro, a noite havia chegado, mas ainda assim a reconhecia.
Seus cabelos amarrados na altura do pescoço pareciam mais escuros do que aquele castanho de que Hermes se lembrava. Seu rosto fino e delicado com ares de ingenuidade, daquela que é própria à juventude. Ágatha era seu nome.
No colo de sua, agora suja, túnica azul escura, estava um pano encardido de vermelho.
Ela o encarava com dúvida e temor.
— Gulp- Que-quem é- — Hermes engoliu em seco, encarando-a com um rosto tenso.
— Á-Ágatha! — respondeu prontamente a garota, inquieta.
— Ajude-o a levantar, pequena. — outra voz veio, um pouco atrás da garota, serena.
Hermes se afastou em direção à parede, notando agora que estava numa caverna.
Chocando-se contra a parede, novamente, acometeu-se de uma pontada em seu tórax. A dor aguda de sua costela quebrada. Num ranger de dentes, suas mãos cobriram a região machucada.
— Kuhk-
Por trás da garota, uma figura surgiu, um homem, de peito nu e barba farta.
— Acalma-te rapaz — orientou numa voz serena — Assim como tu, somos servos, não há razões para nos temer.
Hermes fitou-lhe em meio à dor, respirando profusamente.
Seus olhos perscrutaram o ambiente. Uma espécie de gruta, apertada e de paredes obscuras. Algumas poucas vigas de madeira sustentavam o túnel nas laterais. Ao lado da garota, estavam redes de pano velho, cuja capacidade de sustentação era dúbia.
Hermes entendeu que foi onde acordara. Olhando para as mãos da garota, sujas de sangue, e suas roupas também. E o pano que ela carregava, encardido com algo vermelho, mas parecia ser originalmente bege. Marcada com seu sangue.
Seus olhos desceram ao próprio corpo, seu tronco estava coberto de faixas feitas de panos finos. Notou, então, que não sentia ardência nenhuma nas costas, os ferimentos secos pareciam já ter sido tratados. Atrás da garota, a figura de um homem estranho estava recortada contra a saída da caverna, à frente dele, uma pequena fogueira.
Forçar a mente para entender sua situação trouxe a imagem de Gérion veio à sua mente, e com ela, a noite anterior.
Tentou levantar-se, mas seu movimento forçou o abdômen, e sua costela quebrada, e novamente ele cai, acompanhado de um grunhido.
Ágatha suspirou, preocupada, e prontamente se aproximou para ajudar.
O toque dela foi leve, bondoso. Mas para Hermes, foi como se o peso esmagador da mão de Gérion estivesse sobre ele novamente. O cheiro de suor e podridão do ogro voltou a suas narinas, o som de sua risada repugnante ecoou em seus ouvidos, e a memória da dor e da humilhação inundou sua mente. Não era Ágatha quem o tocava. Era ele. O monstro.
— SAIA! — O grito de Hermes foi um som gutural, animal. Ele a empurrou rudemente em um pavor cego, instintivo.
Seus olhos se arregalaram como os de uma criatura encurralada se debatendo contra seu agressor.
Ágatha recuou imediatamente com um rosto assustado e confuso. Antes de falar algo, com uma expressão pesarosa, ela suspirou e voltou para se sentar ao pé da fogueira, ao lado do homem de antes.
Hermes respiraçava profusamente sentindo seu corpo tremer. A agonia do toque, a queimação, e agora, a vergonha.
— Deixe-o. — Disse o velho para a garota. — o tempo é a atadura para ferimentos da mente.
Depois disso, arremessou um pano aos pés do rapaz, que ainda tentava se recompor.
O silêncio tomou conta da caverna.
A garota encarava Hermes com incerteza. Num suspiro, ela se recosta à parede do túnel e observa o trepidar das chamas da fogueira.
…
Com o passar de alguns minutos, Hermes se acalmou, a dor em seu tórax se tornou mais branda a ponto de ele decidir se levantar, desta vez com maior cuidado.
Após pegar o pano jogado pelo homem aos seus pés, apoiou-se na parede, e com cuidado foi capaz de levantar sem mais uma carga de dor na costela. Com braços contra a parede, seguiu até a rede de onde despencara mais cedo.
Deitou-se e, depois de uma puxada profunda de ar, colocou o pano sobre a testa.
Em meio à dor, Hermes encarava os dois em volta da fogueira. O homem estava quieto. Uma perna cruzada à sua frente no chão enquanto a outra apoiava o seu braço com o joelho.
“Quem é este cara?” Pensou Hermes franzindo a sobrancelha em um rosto confuso.
Se virou para a garota que observava a parte exterior da caverna com um semblante distraído.
— Onde estamos?
A garota permaneceu em silêncio, observando a saída.
Claramente tinha tanto conhecimento quanto Hermes sobre a situação em que se encontravam.
“Ela chegou na mesma caravana que eu.” Constatou.
— Estamos ao norte da Tessália. — respondeu o velho — Mais precisamente em Calcídica.
Hermes franziu a sobrancelha.
“Na península?
Levou a mão ao peito, e percebeu um relevo estranho por baixo dos panos. Passou a ponta dos dedos entre os vãos dos panos, e sentiu a cicatriz no centro de seu peitoral. A marca.
Engoliu em seco.
— Como vieram parar aqui?
A garota pensou um pouco, o homem nem se moveu.
— Eu sou de Corínto… — Ágatha revela com um olhar pesaroso. — Papai acabou devendo dinheiro para as pessoas erradas… — Ela falou encarando a fogueira com uma expressão distante.
Hermes percebeu o pesar no rosto da garota.
Seus olhos brilhavam olhando para a fogueira enquanto ela parecia forçar os lábios a se manterem fechados. Uma lágrima escorreu pela bochecha, antes que ela se virasse para a saída da caverna.
Hermes encarava sem reação.
A sensação vívida em sua mente da violência que sofrera o deixou anestesiado para a dor dela. Desprezou a banalidade pela qual chorava a garota, e viu nela a encarnação da fragilidade da raça humana.
Apesar disso, algo ainda tocava Hermes. A garota, tão jovem, passava por dificuldades que alguns na Grécia, privilegiados, jamais sonhariam em conhecer. Suspirou.
— E você, velho? — Perguntou ao homem que nem por um momento vacilou de sua posição.
O silêncio tomou conta do ambiente, o que deixou Hermes um pouco irritado. E então, ele respirou profundamente, abrindo os olhos em direção à fogueira.
— Atenas. — Ele falou calmamente. — Nasci na casa de um Eupátrida, fruto da infidelidade e do abuso de um patrão com sua serva. Minha mãe adoeceu pouco depois de eu nascer, e foi abandonada para morrer.
Pausou, deixando sua fala se assentar na mente dos dois, e apanhou do chão uma pequena lasca de madeira. Sua expressão serena parecia inabalável.
— Quando meu progenitor morreu, fui vendido para o local mais longínquo para o qual conseguiram encontrar um mercante de escravos. — Ele prosseguiu, torcendo a lasca de madeira entre os dedos — Minha patroa tinha medo que eu exigisse algum direito sobre suas posses, mas não podia me matar por conta das leis.
Ágatha pareceu chocada com a tranquilidade com a qual contava sua história.
Hermes ouvia tudo atentamente. Ainda que não sentisse pena pela história, sentia-se incomodado com o tom impessoal em que ela era contada. Era como se ele nem se importasse com as próprias agruras.
— Ao fim, acabei aqui, aonde fazem vinte anos desde que cheguei. Nasci para servir e morrerei servindo.
A expressão de Hermes não se alterou, mas ele se percebeu curioso.
Ele conhecia bem a expectativa de vida de um escravo que trabalhava em minas e certamente não era comum que durassem tanto tempo nas condições em que estavam.
— E, se me permite, atendo por Sêneca, e não velho. — Revelou, no que poderia ser confundido por uma correção irritada, não fosse seu tom impessoal.

Após um suspiro, Hermes encarou o lado de fora da caverna, percebendo nada além da noite que tomava tudo para além de dois metros da saída do túnel.
— Hermes. — Seu tom era distante, seco, como se mesmo ele duvidasse dessa informação neste momento.
— Como o deus? — Ágatha levanta as sobrancelhas com curiosidade.
Os lábios de Hermes se contraíram. Ele olhou para o chão com uma expressão distante, e se recostou na rede.
— Sim. Como o deus. — Sua voz tingida de desânimo e melancolia.
Sêneca ergueu um pouco a sobrancelha franzindo o cenho, abandonando por um momento a sua expressão vazia.
— Entendo- Vim de uma família de mercadores. — Ágatha afirmou em um tom meio áspero — Seguidores de Hermes.
Ela desceu um pouco da gola do vestido para seu ombro direito e revelou, na região do trapézio, uma tatuagem pequena de uma sandália com pequenas asas.
Ágatha sorriu para o rapaz de maneira desanimada.
— Não que ele tenha me ajudado em alguma coisa até aqui.
Encarou a garota com a sobrancelha levantada em um olhar um tanto surpreso. Tinha certeza de que pouquíssimas pessoas ainda criam em deuses na Grécia atualmente.
Um gosto amargo tomou sua boca, sua língua azedou com a palavra que preencheu sua mente.
Seguidores…
Há quanto tempo já não os tinha. Ou melhor, há quanto tempo já não ligava para eles.
Ponderou encarando o teto da caverna.
— Logo os guardas reclamarão se nos ouvirem conversando — Sêneca disse se levantando. — Pare de importunar o rapaz, senhorita Ágatha. Ele tem trabalho a fazer amanhã.
Passou por ela em direção a uma das redes próximas a Hermes.
— Certo- Desculpe… — respondeu a garota em um tom um pouco arrependido se levantando um pouco apressada.
Ágatha e Sêneca se deitaram cada um em sua rede, e mais uma vez o silêncio se apossou da caverna.
Hermes encarou os dois com um rosto pensativo. Aquela raiva ainda pairava em sua mente.-
Ainda se sentia vazio, encontrar um suposto seguidor levou sua mente de volta ao Olimpo.
Ao mesmo tempo, o fez querer pensar de novo sobre o que o havia levado até ali.
Como tudo havia chegado àquele ponto.
Por que precisava sofrer tanto. Ele estava errado em ter se defendido?
— Humpf- — Suspirou.
Buscou se aconchegar na rede o máximo que seu corpo surrado permitia.
A única certeza que tinha neste momento era que precisava dormir.

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