Capítulo 41 | Sussurros no Cais
O ar no porão da “A Âncora Quebrada” era uma mistura de mofo, ansiedade e fumaça da pequena fogueira que crepitava em um braseiro improvisado. O segundo dia desde que haviam chegado a Therma caminhava para seu fim, um dia que passaram escondidos, esperando, estudando. O prazo dado por Circe se esgotava pouco a pouco.
Hermes afiava sua xiphos com movimentos lentos e metódicos, o som do aço na pedra de amolar era o único ruído constante. Teseu, sentado em um caixote, observava as chamas, o rosto sério e pensativo. Magno, por sua vez, não conseguia ficar parado. Andava de um lado para o outro, a preocupação com Lino e as outras crianças gravada em cada linha de sua face.
A quietude foi quebrada pelo som de passos apressados na escada de madeira. Neo foi o primeiro a descer, o rosto sujo de fuligem e poeira, mas os olhos brilhando de excitação e importância. Atrás dele, vieram duas outras crianças, parecendo igualmente cansadas e orgulhosas.
— E então? — Magno perguntou, a voz tensa, parando sua caminhada incessante.
Neo, agindo como o porta-voz, limpou a garganta antes de começar seu relatório.
— O Arconte Kyros mal foi visto nos últimos meses. Tornou-se um recluso logo após voltar de uma longa viagem de negócios… uma onde ele vendeu um lote grande de escravos.
Hermes ergueu o olhar da lâmina, o interesse aguçado.
— Os servos da vizinhança dizem que ele mudou depois dessa viagem — continuou o garoto. — Antes era o maior mercador de escravos de Therma, agora parece focar apenas em sua… caça a tesouros. Manda seus homens para longe em busca de artefatos e raridades.
— E as crianças? — Magno interrompeu, a urgência em sua voz palpável.
Um dos outros garotos, com o rosto cheio de sardas, respondeu. — Mais dois sumiram desde que Lino se foi, chefe. Todos órfãos, como a gente. Um garoto que carregava redes no porto e… e a Elara.
Ao ouvir o nome, Magno se enrijeceu. — Elara? A menina do templo?
— Sim — confirmou Neo, baixando o olhar. — A que ajudava a velha Íone com os amuletos. Sumiu há duas noites. A velha está inconsolável.
Magno passou a mão pelo rosto, um gesto de pura exaustão e dor. Elara era conhecida por todos eles; às vezes dividia com os meninos os pães que ganhava no templo.
Um peso caiu sobre o cômodo. Teseu olhou para Magno com compaixão.
— E… tem mais uma coisa. — A voz de Neo hesitou, como se não tivesse certeza se deveria continuar. — É estranho. As crianças nas vielas do porto… elas dizem que ouvem coisas à noite.
Hermes parou de afiar a espada. — Que tipo de coisas?
— Ninguém sabe direito. — Neo deu de ombros, desconfortável. — Dizem que é como o vento, mas… com palavras. A maioria acha que é só história de fantasma para assustar os mais novos.
Um silêncio tenso preencheu o porão. Hermes trocou um olhar com Teseu, depois com Magno. Um Arconte recluso, obcecado por tesouros, crianças desaparecendo à noite longe da acrópole e sussurros fantasmagóricos.
As peças não se encaixavam, mas para Hermes todas deviam pertencer ao mesmo quebra-cabeça doentio.
— Então é para as vielas do porto que vamos esta noite — declarou Hermes, e seu tom não admitia discussão.
As outras crianças foram chegando aos poucos, não traziam informações muito destoantes das que Neo comunicou.
Com um tempo, todas estavam de volta e a luz do dia deixava de vazar pela claraboia no teto do porão.
A decisão foi tomada. A noite seria o palco da caçada. Mas a noite ainda não havia chegado por completo.
As horas que se seguiram foram preenchidas por uma quietude tensa no porão, um limbo de espera.
Hermes sentou-se em um canto, polindo a couraça de couro com um pano, seus movimentos metódicos e silenciosos, a mente já nas vielas escuras. Teseu, por sua vez, tentava disfarçar a ansiedade, mas seus olhos constantemente se desviavam para a escada, como se esperasse que a escuridão os chamasse a qualquer momento.
Foi Magno quem quebrou a tensão. Vendo que a preocupação e o medo começavam a se espalhar entre as crianças, ele as reuniu ao redor do braseiro.
— Certo, seus pequenos ratos — disse ele, a voz assumindo um tom conspiratório e divertido. — Já que temos que esperar os fantasmas decidirem cantar, vou lhes contar a história de como eu roubei o cinto de ouro do general mais temido de Esparta usando apenas um peixe podre e muita, mas muita, cara de pau.
Hermes ergueu uma sobrancelha, cético, mas permaneceu em silêncio. Teseu, no entanto, se viu sorrindo, a tensão em seus ombros se dissipando um pouco. Ele observou, fascinado, enquanto Magno tecia sua história. Ele gesticulava, mudava a voz para imitar o general espartano e até mesmo o peixe podre, arrancando gargalhadas e exclamações de espanto das crianças.
Naquela luz bruxuleante, rodeado por órfãos que o olhavam com admiração, Magno se transformava. Não era o ladrão calculista nem o líder preocupado. Era um menestrel, um pai, cujo único propósito era tecer um escudo de fantasia para proteger aquelas crianças, nem que fosse por alguns instantes, da dura realidade que os cercava.

Quando a história terminou, a maioria das crianças já bocejava, seus medos esquecidos e substituídos por sonhos de aventuras impossíveis. Com uma gentileza que contrastava com sua reputação, Magno começou a ajeitá-las em suas esteiras de palha, cobrindo os menores com pedaços de lona.
— Ei, chefe… — Uma voz sonolenta e sapeca chamou. Era Neo, já deitado, os olhos quase se fechando.
— O que foi, pivete? — Magno respondeu, a voz baixa.
— Esqueceu o meu beijinho de boa noite.
Magno parou, virando-se para o garoto com uma expressão de falsa irritação e um punho levantado. — Eu vou te dar é um cacete de boa noite, isso sim. Agora durma, antes que eu te venda para os espartanos.
Ele se aproximou e, em vez de um cascudo, bagunçou o cabelo do menino com um afeto rude. Neo sorriu, satisfeito, e se virou, adormecendo quase que instantaneamente.
Teseu tinha um olhar tenro para a cena. Percebeu que talvez estivesse enganado sobre Magno.
Com as crianças finalmente dormindo, o silêncio que se instalou no porão foi diferente. Era um silêncio de propósito. Hermes se levantou, a xiphos já segura em sua cintura. Teseu fez o mesmo, o rosto novamente sério.
Magno se aproximou da menina mais velha, Line, que ainda estava acordada, e se ajoelhou à sua frente.
— Ninguém sai deste porão antes de o sol nascer. Ninguém. Não importa o que ouçam. Entendido?
A ordem foi dita em um sussurro, mas carregada de uma autoridade absoluta. A menina apenas assentiu, os olhos arregalados de compreensão.
Magno então se virou para Hermes e Teseu e acenou com a cabeça. Estava na hora.
Os três subiram a escada rangente em silêncio, como três sombras com um único objetivo. Deixaram a relativa segurança do covil para trás e emergiram na noite fria de Therma.
As ruas do porto estavam quase desertas, envoltas em uma névoa fina que subia do mar, abafando os sons e transformando as lamparinas distantes em borrões fantasmagóricos. O ar cheirava a sal e a segredos. E em algum lugar, naquela escuridão, uma canção triste esperava por eles.
— A névoa está mais forte esta noite — comentou Teseu, a voz baixa, o metal de sua couraça parecendo frio e pesado naquele ambiente.
— Bom — retrucou Magno, seus olhos de raposa varrendo cada beco escuro. — Menos olhos curiosos. Os guardas odeiam a névoa. Ficam perto das fogueiras e fingem que o resto da cidade não existe.
Enquanto contornavam a praça do mercado agora deserta, uma figura solitária chamou a atenção deles. Sentada nos degraus de um pequeno templo, estava Íone, a velha vendedora de amuletos. Estava encolhida, os ombros sacudindo com soluços silenciosos, o rosto escondido nas mãos.
Magno hesitou, depois fez um sinal para que os outros esperassem. Ele se aproximou, seus passos surpreendentemente suaves na pedra.
— Íone? — Chamou gentilmente.
A velha ergueu o rosto, os olhos vermelhos e inchados. Ao reconhecer Magno, suas feições se contorceram em mais dor. — Magno… levaram-na. Minha pequena Elara… ela se foi.
— Eu soube. Sinto muito — disse ele, a sinceridade em sua voz palpável. — Mas o que faz aqui fora?
Íone fungou, limpando o nariz com as costas da mão. — O sono não vem, Magno. Só os pesadelos. Vim rezar para que Poseidon a traga de volta. Ou que pelo menos me dê um sinal.
— Um sinal? — Magno perguntou, sentando-se a uma distância respeitosa.
— A canção… — ela sussurrou, abraçando os próprios joelhos. — Antes de Elara sumir, ela me disse que a ouvia. Só pode ser o mar… Só pode ser…
Ela ergueu a cabeça de novo, seus olhos chorosos focados para os céus como se clamasse por ajuda.
Seu olhar então passou por Magno e se fixou em Hermes e Teseu, que se mantinham a uma distância respeitosa. O reconhecimento e o medo surgiram em seus olhos.
— Vocês… — ela sussurrou, recuando. — Vocês de novo. Vieram perguntando da bruxa… e agora… agora minha Elara se foi. É um mau presságio… uma maldição…
Ela se encolheu novamente, afundando em seu próprio luto e superstição, recusando-se a dizer mais uma palavra.
Magno fez um sinal para que os dois seguissem, e então se aproximou pondo uma das mãos nos ombros da senhora. Teseu ignorou o sinal e se aproximou um pouco, seu rosto continha uma tristeza complacente.
— Nós… Sentimos muito. Faremos o possível para trazê-la de volta. — Ele a confortou.
O choro de Ione não cessou.
Magno, Hermes e Teseu se afastaram em silêncio. A dor da velha era uma barreira que não podiam cruzar.
Parados na praça vazia, eles olharam para as bocas escuras das vielas que serpenteavam para longe do templo. A noite caía sobre Therma, e com ela, a promessa daquela canção triste e fantasmagórica que parecia levar as crianças da cidade para a escuridão.
Eles caminharam até que o som de risadas altas e canções desafinadas os guiou a uma pequena multidão de marinheiros. Estavam sentados em barris virados do lado de fora de uma taverna, compartilhando um odre de vinho. Eram homens rudes, com a pele curtida pelo sol e pelo sal, e as mãos calejadas de puxar cordas.
— Deixem comigo — disse Magno, pegando uma pequena garrafa de um de seus bolsos internos. — Marinheiros e ladrões falam a mesma língua: a do vinho de graça.
Ele se aproximou do grupo com um sorriso fácil. — Boa noite, senhores do mar! Vejo que a noite está animada. Posso me juntar à celebração?
Um marinheiro barbudo e corpulento riu. — Se tiver o que beber, pode até se juntar à minha esposa, amigo!
Magno riu junto e ofereceu a garrafa. Em minutos, ele estava no meio deles, trocando histórias exageradas. Hermes e Teseu observavam à distância, das sombras de um armazém. Após algum tempo, Magno habilmente guiou a conversa.
— …mas falando em coisas estranhas, um amigo meu disse que ouviu uma canção fantasma vinda da névoa. Coisa de doido, né não?
O marinheiro barbudo ficou sério por um instante. — A canção da névoa… — ele murmurou, fazendo um sinal para afastar o mal. — As sereias. Elas chamam as almas dos jovens para o fundo do mar. Só se ouve nas noites de névoa pesada, como esta.
Outro marinheiro, mais jovem e um pouco menos bêbado, cuspiu no chão. — Não seja idiota, Yorgos. Não são sereias. Mas a canção é real. E tem mais. Nessas noites, a patrulha da cidade não desce para o cais. Ordens diretas, dizem. O próprio Arconte não quer que eles se metam aqui quando a névoa está baixa.
A informação pairou no ar, mais fria que a brisa do mar.
Magno se despediu dos marinheiros com mais algumas piadas e se reuniu com Hermes e Teseu nas sombras.
— Então temos isso — disse Magno, a voz agora séria. — Uma canção que só aparece na névoa, e guardas que convenientemente somem nessas mesmas noites, por ordem do Arconte.
— Ele sabe — afirmou Hermes, seu olhar fixo na névoa que se contorcia no final da rua. — Ele não tem medo do que quer que esteja causando isso. Ele está protegendo.
……………
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