Capítulo 42 | História para dormir
O sol da manhã lançava um brilho impiedoso sobre os telhados de terracota de Therma. Do topo de um prédio de apartamentos inacabado no distrito dos artesãos, a vista era privilegiada e deprimente. Abaixo deles, a cidade se estendia como um organismo caótico, mas ali, na colina que dominava o horizonte, a mansão do Arconte Kyros era um mundo à parte. As muralhas de mármore branco pareciam zombar da sujeira e da desordem do resto da cidade, uma fortaleza de silêncio e poder.
Por horas, Hermes e Teseu permaneceram ali, imóveis como gárgulas, observando. O sol se moveu pelo céu, transformando sua sombra de uma longa mancha matinal em uma poça compacta ao meio-dia.
— Você vê alguma coisa? — Teseu finalmente sussurrou, a voz rouca pela falta de uso.
Hermes não se virou. Seus olhos dourados estavam fixos em um ponto específico: a troca da guarda no portão principal. — Vejo o que eles querem que vejamos. Perfeição.
E era verdade. Os guardas se moviam com uma precisão mecânica, suas rotas se sobrepondo de forma a não deixar um único ponto cego. Não havia frestas nos muros, nem árvores próximas que pudessem oferecer uma escalada. A propriedade era uma ilha, projetada para manter o mundo do lado de fora e seus segredos, do lado de dentro.
— Os intervalos são irregulares — murmurou Hermes, mais para si mesmo do que para Teseu. — Às vezes uma hora, às vezes uma hora e quinze. Proposital. Para quebrar qualquer padrão. Eles não são preguiçosos. São bem treinados.
A frustração começou a corroer a paciência de Teseu. Cada minuto que passavam ali era um minuto a menos para Sêneca. Ele olhava para as muralhas brancas e sentia uma impotência esmagadora.
— E então? — Teseu insistiu, incapaz de conter a ansiedade. — Vamos ficar aqui o dia todo? Precisamos fazer alguma coisa.
— Ficar aqui é fazer alguma coisa — retrucou Hermes, a voz fria, sem desviar o olhar. — É aprender. E o que aprendemos é que a porta da frente é um suicídio. E a porta dos fundos não existe.
Quando o sol começou a descer, pintando o céu com tons de laranja, eles finalmente recuaram. A caminhada de volta para o porão da “A Âncora Quebrada” foi silenciosa, cada um imerso no peso de seu fracasso.
A situação no porão da “A Âncora Quebrada” não era mais animadora. As crianças de Magno retornavam em pequenos grupos ao longo do dia,
Encontraram Magno andando em círculos ao redor do braseiro, o rosto uma máscara de ansiedade contida. As crianças batedoras haviam retornado, os rostos sujos de poeira e desapontamento. Traziam fragmentos de conversas, ecos de fofocas, mas tudo apenas aprofundava o beco sem saída.
— Nada — disse uma menina magra, sentada em um caixote. — Os servos da cozinha não falam dele. Quando alguém pergunta sobre o Arconte, eles abaixam a cabeça e mudam de assunto. Têm medo.
— Vi a carroça de comida entrar — acrescentou Neo, que estava encolhido perto de Magno, mordendo uma maçã já pela metade. — O cozinheiro parecia que ia desmaiar. Olhava para os lados o tempo todo. Deixou as caixas no portão e saiu correndo como se fugisse de um fantasma. Eu roubei uma maçã.
A cada relato, uma nova camada de pedra era adicionada ao muro que cercava Kyros.
Confirmaram a reclusão, a obsessão por tesouros, mas sobre a Lótus de Perséfone, nada. A flor era um segredo bem guardado demais, ou talvez, Hermes começou a temer, uma mentira completa de Circe. E sobre as crianças desaparecidas, o silêncio era ainda mais profundo. Ninguém falava sobre isso. Era um tabu, um medo tão grande que se tornara invisível.
A cada relatório vago, a tensão no rosto de Magno se aprofundava. Ele andava de um lado para o outro no porão como um animal enjaulado, o desaparecimento de Lino e dos outros pesando em seus ombros como uma âncora.
Magno finalmente parou de andar e socou a parede de pedra com o punho, um som surdo de frustração. — DIAS! Estamos há dias aqui e não temos NADA! — Sua voz se quebrou. — Meus pivetes… eles podem estar…
Ele não completou a frase. Não precisava. A imagem do que poderia ter acontecido com Lino e os outros pairava no ar como fumaça tóxica.
Hermes permaneceu em silêncio, seus olhos fixos nas chamas dançantes.
Pela primeira vez desde que caíra do Olimpo, ele sentiu a verdadeira natureza da impotência mortal. Não era a dor do chicote ou o peso das correntes. Era aquilo: o conhecimento de que o mal existia, logo ali, do outro lado da cidade, e não ter em suas mãos o poder bruto para simplesmente esmagá-lo. Ou talvez…
Sua mão tateou o tecido que amarrava sua cintura, pouco abaixo da couraça.
Não, ele não sabia como.
Eles se sentaram em silêncio por um tempo, o único som sendo o crepitar da fogueira. Estavam em um beco sem saída. A única pista que tinham eram os sussurros fantasmagóricos, um fio etéreo e sobrenatural que eles não sabiam como seguir.
Decidiram descansar, a exaustão física e mental pesando sobre eles. O dia seguinte traria novas ideias, eles esperavam. Mas a noite de Therma guardava para eles um tipo diferente de despertar, um que transformaria sua frustração em puro e absoluto terror.
As horas se arrastaram na quietude do porão, cada um dos três homens perdido em seus próprios pensamentos sombrios. As crianças, sentindo a tensão dos mais velhos, mantinham-se encolhidas perto do braseiro, falando em sussurros.
Foi Line, a menina mais velha, cuja trança desfeita caía sobre um ombro, que se aproximou de Magno. Ele estava sentado, encarando as chamas, o rosto uma máscara de preocupação.
— Magno? — ela chamou, a voz baixa. — Vai nos contar outra história hoje?
Magno ergueu o olhar, e por um momento, a fachada de líder despreocupado se quebrou, revelando o homem exausto por baixo. Mas ao ver os rostos ansiosos das outras crianças se virando para ele, ele forçou um sorriso cansado.
— Haaa- seus ratinhos. Ninguém ouve mais de uma história minha sem pagar por isso! — disse ele, forçando ânimo na voz com um sorriso que emulava o de sempre. — Mas eu vou fazer uma exceção. Reúnam-se. Hoje eu vou lhes contar sobre a vez em que enganei uma manticora usando apenas minha inteligência, o turbante de um oriental e uma fatia de queijo muito, muito fedorenta!
Um pequeno círculo se formou ao seu redor. Hermes observava de seu canto, impassível, mas Teseu se permitiu ouvir, encontrando um estranho conforto na voz do ladrão.
A história de Magno era uma tapeçaria de bravatas e mentiras descaradas, mas era tecida com um fio de esperança. Em seu conto, o pequeno e astuto sempre vencia o grande e brutal. Era um feitiço de palavras, um escudo frágil contra a escuridão do lado de fora.
Um por um, embalados pela cadência da voz de Magno, os medos das crianças deram lugar ao sono. Ele as ajeitou em suas esteiras, um gesto paternal e silencioso na luz bruxuleante.
Teseu dormia, mas seu sono não era de paz. Ele sonhou. Estava em um campo verdejante, o sol quente em seu rosto. Ao seu lado, seu irmão, Agouri, ria, saudável e vibrante como nas melhores memórias. Eles corriam, livres, sem correntes ou o peso da mina. Era perfeito.
Mas então, uma melodia começou ao longe. Uma canção doce e convidativa. Agouri parou de rir e virou-se para a música, um sorriso vago no rosto. “Vamos, Agouri”, ele disse, a voz estranhamente vazia. “Ela está nos chamando.”
Teseu sentiu um arrepio.
A canção, que antes parecia bela, agora soava errada, dissonante. O campo verdejante começou a apodrecer, a grama se tornando cinza e o céu, de um roxo doentio. A voz de seu irmão se tornou um eco rouco. O chamado se intensificou, puxando-o, mas algo dentro dele, uma força teimosa e selvagem, resistiu. A canção se tornou um grito, e o rosto do menino franzino se contorceu em uma máscara de fúria e fome.
— Teseu! — A voz de Hermes o chamou, distante. Ou seria a sua própria?
Ele acordou com um sobressalto, o corpo coberto de um suor frio, o coração martelando contra as costelas. Ele se sentou, ofegante, a imagem do pesadelo ainda queimando em sua mente. O porão estava escuro, as brasas do fogo quase extintas. Ele olhou em volta, tentando se acalmar, e foi então que o silêncio o atingiu.
Um silêncio absoluto. Pesado. Errado.
Ele olhou para as esteiras de palha espalhadas pelo chão. Estavam vazias. Todas elas. Apenas os contornos dos corpos no feno amassado permaneciam.
— Line? — ele sussurrou para a escuridão, a voz trêmula. — Neo?
Nenhuma resposta.
Um pânico gelado, mais real que qualquer pesadelo, tomou conta dele. Ele se levantou de um salto e correu até onde Hermes e Magno dormiam, sacudindo-os com desespero.
— Hermes! Magno! Acordem!
Magno resmungou, virando-se. — O que foi, garoto…?
Ele se sentou, os olhos se ajustando à penumbra, o coração começando a martelar contra as costelas. As brasas do fogo eram apenas pontos vermelhos moribundos.
Então, sua visão clareou e focou no rosto aterrorizado de Teseu, e depois varreu o porão vazio. O sono desapareceu de seu rosto, substituído por uma descrença que rapidamente se transformou em puro horror.
— Não… — ele engasgou, levantando-se e tropeçando em sua pressa para verificar cada canto, cada sombra. — Não, não, não…
Hermes já estava de pé, totalmente desperto, a mão instintivamente no cabo de sua xiphos. Ele não precisou de explicações. O silêncio e o desespero de Magno contavam a história toda.
As esteiras de palha estavam vazias. Todas elas.
Um pânico gelado começou a subir por sua espinha. Ele se levantou de um salto, tropeçando em sua pressa. Verificou cada canto escuro, cada pilha de sacos. Vazios. Todos eles haviam sumido.
— NÃO! — O grito dele foi um som rasgado, um lamento de pura dor que finalmente quebrou o silêncio.
Hermes já estava de pé, a mão na espada. Seus olhos encontraram Magno no meio do porão, o rosto desfigurado pelo terror, olhando para os leitos vazios.
— Eles se foram… — Magno engasgou. — Todos eles…
Foi então que um soluço baixo veio debaixo de uma pilha de lonas velhas em um canto. Magno se virou, uma faísca de esperança desesperada em seus olhos. Ele arrancou as lonas e o encontrou.
Neo estava encolhido em posição fetal, tremendo incontrolavelmente, os olhos arregalados de um terror que o deixara mudo.
— Neo! O que aconteceu? Onde estão os outros? — Magno o segurou pelos ombros, a voz uma mistura de alívio e pânico.
O menino apenas tremia, incapaz de formar palavras. Seus lábios se moveram, e um único sussurro escapou, um eco do trauma da noite.
— A canção… ela chamou… eles foram…
A fachada de Magno desmoronou. As lágrimas que ele segurava escorreram livremente, misturando-se com a sujeira em seu rosto. Ele abraçou o menino trêmulo, o único que restara de sua família improvisada.
Hermes se aproximou lentamente, seus passos silenciosos na palha espalhada. Ele olhou para Magno, que soluçava abraçado a Neo, e para Teseu, que assistia à cena paralisado, o horror estampado no rosto. Por um momento, o deus caído não disse nada, apenas observou a dor crua que preenchia o porão.
Ele se ajoelhou ao lado de Magno, um gesto que surpreendeu Teseu. Colocou uma mão firme no ombro do ladrão, um toque que não era de consolo, mas de uma gravidade compartilhada.

— Magno. Olhe para mim — disse Hermes. Sua voz era baixa, mas cortava o som dos soluços. — Sua dor, agora, não vai ajudá-los.
Magno ergueu o rosto, os olhos vermelhos e inchados, uma fúria impotente queimando através das lágrimas.
— Mas o medo deles vai — continuou Hermes, seu olhar dourado fixo no de Magno, intenso e terrivelmente sério. — O medo que eles estão sentindo neste exato momento… nós podemos usá-lo. Precisamos ser a fúria deles.
As palavras, embora duras, não eram frias. Eram uma transfusão de propósito. Magno parou de chorar, sua respiração ainda ofegante, mas o olhar em seus olhos começou a mudar, a dor se cristalizando em uma resolução gélida.
Foi então que Teseu se moveu. Ele se aproximou e colocou a mão no outro ombro de Magno, sua expressão não era de fúria, mas de apoio, cumplicidade.
— Ele está certo, Magno — disse Teseu, a voz firme, reforçando a união deles. — Isso não é uma missão de vingança, mas sim um resgate!
O olhar de Magno passou do rosto de Hermes para o de Teseu. Ele viu a fúria e a esperança, a vingança e a justiça. Viu dois aliados. Ele assentiu lentamente, as últimas lágrimas secando em seu rosto.
Hermes se levantou, puxando Magno consigo.
— Kyros conhecerá nossa lâmina hoje. — afirmou Hermes, e agora sua voz não era a de um líder solitário, mas a de um membro de um pacto sombrio.
Naquele porão silencioso e vazio, a busca por uma cura se transformou em um juramento de resgate e vingança.
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