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    A noite engoliu Therma, mas não trouxe a escuridão completa. Uma lua cheia, imensa e pálida, pendia no céu, derramando uma luz fantasmagórica sobre os telhados de terracota. A claridade era enganosa; em vez de revelar, ela criava sombras mais nítidas, mais profundas, transformando as vielas familiares em um labirinto de contrastes assustadores.

    O grupo se movia como uma unidade ferida através desse cenário. Não havia plano, apenas o desespero de Magno como um motor febril. Ele caminhava na frente, não mais com a ginga de um ladrão, mas com a urgência de um pai em busca de um filho perdido, o rosto uma máscara de angústia. Neo o seguia de perto, a mão pequena segurando um punhado da túnica de Magno, os olhos arregalados de um terror que o silenciara.

    Hermes e Teseu formavam a retaguarda. Teseu, com a mão crispada no cabo da xiphos, sentia cada sombra se mover, cada ruído distante. Ele era o vigia. Hermes, por sua vez, era o caçador. Seus olhos dourados não viam apenas a rua, mas analisavam os telhados, as janelas, as possíveis rotas de fuga, sua mente tentando impor uma lógica ao caos daquela busca cega.

    Eles se dirigiram ao porto, onde os sussurros haviam sido relatados. Uma névoa fina e úmida subia do mar, serpenteando pelas ruas de paralelepípedos, enrolando-se em seus tornozelos e abafando o som de seus próprios passos. O cheiro de sal e peixe podre era forte, misturado a uma umidade que parecia se agarrar à pele.

    — É por aqui — disse Magno, a voz rouca, apontando para uma série de becos ainda mais estreitos e escuros. — Os relatos eram mais fortes nesta área. Perto dos velhos armazéns.

    Eles mergulharam na escuridão. Aqui, a luz da lua mal penetrava, bloqueada pelos prédios que se inclinavam uns contra os outros como velhos bêbados. O silêncio era quase total, uma anomalia na cidade portuária normalmente ruidosa.

    — Neo — Magno se ajoelhou na frente do menino, a voz agora um sussurro gentil. — A canção… você consegue ouvir alguma coisa? Qualquer coisa?

    O garoto apenas balançou a cabeça negativamente, encolhendo-se ainda mais contra Magno. O trauma o havia fechado.

    Hermes estalou a língua, impaciente. — Ele está assustado demais. Não vai nos ajudar assim. Precisamos continuar procurando por qualquer outra pista.

    Enquanto Hermes e Magno discutiam em sussurros tensos, Teseu permaneceu em silêncio, seus sentidos em alerta. Ele sentia algo. Não era um som, não ainda. Era uma pressão no ar, uma vibração sutil, a mesma estranheza que precedera a magia na floresta da feiticeira. A sensação fez os pelos de seus braços se arrepiarem. Ele não sabia explicar o que era, apenas que era antinatural. E que estava cada vez mais perto.

    Teseu levou a mão ao ombro de Hermes, um aviso mudo. O deus caído parou, seus olhos dourados focando no rapaz, reconhecendo a seriedade em sua expressão.

    — O que foi? — Hermes sussurrou, a voz pouco mais que um sopro.

    — Algo está aqui — respondeu Teseu. — Não consigo ver, nem ouvir, mas… eu sinto. É como na floresta da bruxa.

    Foi nesse exato momento que aconteceu. Neo, que até então estava agarrado à túnica de Magno, enrijeceu de repente. Seus olhos, antes arregalados de medo, ficaram vagos, desfocados. Um sorriso lento e vazio se espalhou por seu rosto.

    — A canção… — ele murmurou, a voz sonhadora. — É tão bonita.

    Sem que Magno percebesse no auge de sua tensão, o menino se soltou de seu aperto e começou a correr, como se perseguisse um familiar perdido há tempos, em direção à boca de um beco particularmente escuro, de onde emanava um silêncio que parecia devorar a luz da lua.

    No mesmo instante, Teseu também ouviu. A melodia invadiu sua mente, doce e convidativa, prometendo paz e o fim de todo o sofrimento. Por um momento, ele sentiu uma vontade irresistível de seguir, de se entregar àquela paz. Mas, por baixo da beleza, uma outra camada se revelou para ele, uma dissonância que seus novos sentidos captaram: era uma voz rouca e doentia, uma nota errada que corrompia toda a harmonia.

    — Magno, a canção! Ele está sendo chamado! — Teseu gritou, a urgência em sua voz quebrando o feitiço que quase o capturara.

    O grito tirou Magno de seu torpor. Vendo Neo se afastar e desaparecer na escuridão do beco, o pânico tomou conta dele.

    — NEO!

    Ele correu desesperadamente, mergulhando na escuridão atrás do garoto. Hermes e Teseu foram logo atrás, suas mãos já nas espadas.

    — Pivete, pare! — Magno gritou, seus pés ecoando no paralelepípedo úmido. Ele podia ver a silhueta de Neo a poucos metros, caminhando calmamente em direção ao fundo sem saída do beco.

    Ele esticou o braço, o desespero lhe dando um último impulso de velocidade. Suas mãos finalmente alcançaram e agarraram os ombros do menino.

    No exato instante em que o tocou, o chão sob seus pés desapareceu.

    CLANG.

    Um som metálico e o rangido de pedra contra pedra ecoaram pela viela. O chão se abriu como um alçapão, revelando um buraco de negrume absoluto. Magno não teve tempo de gritar. Ele e Neo despencaram na escuridão, suas figuras engolidas pela terra. O grito surpreso do ladrão foi cortado abruptamente.

    Hermes e Teseu chegaram à beira do buraco um segundo depois, parando bruscamente para não terem o mesmo destino. O ar cheirava a terra úmida e a algo antigo. Tudo o que viam era uma escuridão impenetrável, de onde agora emanava um silêncio total.

    — Magno! Neo! — Teseu gritou para o abismo, mas apenas o eco de sua própria voz respondeu.

    Hermes se ajoelhou, examinando as bordas do alçapão. Era de pedra, antigo, e perfeitamente disfarçado no calçamento da viela. Uma armadilha. Uma isca. E eles haviam mordido.

    Ele se levantou, o rosto uma máscara de fria determinação. Teseu o encarou, o coração martelando, esperando uma ordem, uma direção.

    — Eles podem estar feridos. Ou pior — disse Hermes, sua voz grave. — Não podemos deixá-los.

    Ele olhou para o buraco escuro, depois para Teseu, um entendimento silencioso passando entre eles. Não havia outra escolha. Sem mais hesitação, com a xiphos em punho, Hermes saltou para dentro da escuridão. Teseu, engolindo em seco o medo, o seguiu um instante depois, mergulhando no desconhecido para salvar seus amigos.

    A queda foi um borrão de escuridão e pânico. Hermes e Teseu não despencaram em uma queda livre, mas deslizaram por uma rampa íngreme e úmida, o som de seus corpos raspando na pedra ecoando no túnel fechado. Aterrissaram em um baque surdo sobre um chão de terra e cascalho, a escuridão ao redor tão absoluta que parecia ter peso e substância.

    — Magno? — A voz de Hermes foi a primeira a cortar o silêncio, soando abafada no ambiente confinado.

    Um gemido de dor respondeu a alguns metros de distância. Guiados pelo som, Hermes e Teseu tatearam pela escuridão até encontrarem a forma de Magno encolhida no chão. Ele protegia Neo com o próprio corpo.

    — Eu acho… que torci o tornozelo — Magno ofegou, a dor evidente em sua voz. — O pivete… ele está bem?

    Teseu se ajoelhou e tocou o ombro de Neo. O menino tremia, mas o choque da queda pareceu tê-lo arrancado parcialmente do transe. Seus olhos não estavam mais vagos, mas arregalados de um terror muito real.

    — Precisamos de luz — disse Hermes.

    — Deixe comigo. — Magno resmungou, tateando em um dos bolsos de sua túnica. Após um momento, ouviu-se o clique familiar de pederneira e aço, e uma pequena faísca dançou na escuridão. Ele a aproximou de um pedaço de pano embebido em óleo que carregava para emergências, e uma chama fraca e bruxuleante nasceu, empurrando as sombras para trás.

    A luz revelou o ambiente em que estavam. Não era uma gruta natural. Era uma construção antiga, talvez um esgoto esquecido ou parte de um aqueduto há muito abandonado. As paredes eram feitas de grandes blocos de pedra, cobertos de musgo e um lodo escuro que gotejava constantemente, tornando o ar frio e pesado. Um canal raso de água fétida e parada corria pelo centro do túnel, que se estendia para a escuridão em ambas as direções.

    — Não podemos voltar por onde viemos — disse Teseu, olhando para a rampa lisa e íngreme acima deles.

    — Então só há um caminho a seguir — concluiu Hermes, seu rosto sério sob a luz da tocha improvisada.

    Com Teseu ajudando um Magno mancando, que por sua vez se recusava a soltar Neo, eles começaram a avançar, seguindo o curso do túnel. O único som era o de seus passos no chão úmido e o gotejar constante de água das paredes. A chama da tocha lançava suas sombras contra as paredes de pedra, transformando-as em gigantes disformes que dançavam ao seu redor.

    Eles caminharam pelo que pareceram minutos, mas que poderiam ter sido horas. O túnel fez uma curva suave para a esquerda, revelando um trecho ainda mais escuro à frente, além do alcance da luz da tocha.

    Foi então que Teseu parou, o corpo enrijecendo. Ele sentiu novamente. A pressão no ar. A sensação de poder doentio.

    Um rosnado baixo e gutural ecoou da escuridão à frente, um som animalesco e cheio de uma fome antiga.

    Hermes ergueu a tocha, tentando perfurar o negrume, a mão livre já na espada. Magno puxou Neo para mais perto, o rosto pálido.

    E então, eles viram.

    Na escuridão, dois pontos de luz vermelha piscaram, ganhando vida. Não eram brasas. Eram olhos. Olhos que queimavam com uma inteligência malévola, e estavam posicionados muito acima do chão, e muito distantes um do outro, sugerindo uma criatura de tamanho colossal.

    Teseu prendeu a respiração, o terror gelando seu sangue. Aquele rosnado. Aqueles olhos. Ele os conhecia.

    — Não… — ele sussurrou, a voz um fio de puro pavor. — De novo não.

    Ele havia encontrado o monstro de seu pesadelo mais uma vez.

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