Índice de Capítulo

    O rosnado baixo e gutural se transformou em um urro que fez a própria pedra do túnel vibrar. 

    Da escuridão impenetrável, a criatura explodiu para a luz trêmula da tocha. Era um lobo, mas a palavra parecia uma ofensa à monstruosidade que se materializou diante deles.

    Maior que um cavalo, uma massa de músculos nodosos e pelos negros emaranhados, com garras que riscavam o chão de pedra, produzindo faíscas. A saliva, espessa e escura, escorria de uma bocarra cheia de presas que pareciam cacos de obsidiana.

    E os olhos. Olhos de um vermelho carmesim que não refletiam a luz da tocha, mas que pareciam queimá-la de dentro para fora, fixos neles com uma inteligência antiga e uma fome absoluta.

    Teseu congelou. A imagem era idêntica à de seu pesadelo, uma memória de morte que agora respirava o mesmo ar fétido que ele. A xiphos em sua mão parecia um graveto.

    Não houve tempo para pensar, elaborar estratégias. Ela avançou, não como um animal, mas como um projétil de pura fúria.

    — Para trás! — Hermes gritou, empurrando Magno e Neo para o lado e se colocando como a única barreira entre eles e a aniquilação.

    Ele ergueu a espada para aparar o primeiro golpe das garras, mas foi como tentar parar uma avalanche com um galho. O impacto foi de uma brutalidade inimaginável. O aço da xiphos de Hermes gritou em protesto, e a força do golpe o arremessou para trás como uma boneca de pano. Ele bateu com as costas contra a parede de pedra, o ar sendo expulso de seus pulmões em um gemido de dor. Seu braço inteiro formigava, quase dormente pelo choque.

    Magno, com o tornozelo latejando, agarrou Neo e o jogou para uma pequena alcova na parede. — Fique aí, pivete! Não saia por nada! — ele ordenou, antes de sacar sua faca e se postar de forma desajeitada, mas desafiadora, entre a luta e o garoto.

    O monstro ignorou o homem ferido, seu foco totalmente no obstáculo principal. Virou-se para Hermes, que se levantava com dificuldade, o gosto de sangue na boca. O lobo avançou novamente, a bocarra escancarada. Hermes, sabendo que não podia aparar outro golpe, tentou se esquivar. 

    A velocidade, sua maior qualidade, era uma piada. Ele conseguiu tirar o torso do caminho, mas as garras traseiras da criatura o rasgaram na coxa, abrindo sulcos profundos no couro de sua armadura improvisada e em sua carne. A dor foi um fogo líquido que subiu por sua perna.

    Em um ato de pura fúria e desespero, Hermes usou a dor como combustível. Enquanto a criatura passava, ele girou, a xiphos em sua mão traçando um arco ascendente. A lâmina encontrou resistência, cortando profundamente o flanco da besta. Um uivo agudo e cheio de dor ecoou pelo túnel, e sangue negro e espesso jorrou da ferida.

    A criatura, ferida, parou. Um rosnado gutural preencheu a escuridão daquele corredor fedorento.

    Ela se virou lentamente, e o ódio em seus olhos vermelhos agora estava focado inteiramente em Hermes. A inteligência malévola deu lugar a uma selvageria pura. 

    Com um rosnado que parecia vir do próprio Tártaro, a fera avançou. Não com garras, desta vez. Ela o atingiu com o peso de seu corpo, uma montanha de músculos e fúria que esmagou Hermes contra a parede do túnel. 

    Ele sentiu as costelas estalarem e o mundo girar em uma explosão de dor branca. Antes que pudesse cair, a criatura o agarrou com a bocarra e o arremessou, como um brinquedo, para o outro lado do túnel.

    Hermes bateu contra a parede oposta e desabou no chão, sem ar, a xiphos rolando para longe de sua mão.

    Com o deus caído neutralizado, o monstro lupino, Licaão, fixou seus olhos vermelhos no alvo mais fácil. Ele se virou, um rosnado baixo vibrando em seu peito, e começou a avançar lentamente na direção de Magno e do nicho onde Neo se encolhia em terror.

    Enquanto a criatura passava por ele na luz da tocha, que Hermes viu. Gravada a fogo no ombro da besta, brilhando fracamente com uma luz interna, havia uma marca rúnica. Apesar de mais escuro do que se lembrava, um símbolo de caça que ele conhecia melhor que seu próprio nome.

    — Eu sabia! — ele gritou, a voz uma mistura de fúria e uma terrível confirmação. — É Licaão, o cão de caça de minha irmã!

    Magno o encarou, a confusão momentaneamente superando o medo. — Que irmã, seu maluco?!

    Mais atrás, Teseu observava, congelado. 

    A cena se repetia em sua mente: o monstro, a escuridão, a morte iminente. Ele via o pânico no rosto de Magno, a forma como o ladrão mancava, tentando se manter firme entre a fera e a única criança que restara de sua família. Viu Hermes, caído e quebrado, incapaz de ajudar.

    “O que eu faço, o que eu faço?” Seu rosto se moldava em pânico a cada milésimo. A mente viajava em busca de uma solução.

    Ele fechou os olhos em desespero como se o ato fosse levá-lo para longe dali.

    Em meio ao desespero, a imagem de seu próprio irmão, Teseu, morrendo fraco e indefeso, brilhou em sua mente. A promessa que fizera sobre sua lápide improvisada. Proteger os fracos. Ser um herói.

    E então veio. Um sussurro etéreo que fez sua orelha tremer.

    “Apenas faça. É a sua natureza.” A voz da dríade ecoou em sua mente.

    Teseu olhou para suas mãos trêmulas, depois para a criatura que se aproximava de Magno, a morte em cada passo. Ele não era um deus. Não era um guerreiro experiente. Era apenas um garoto assustado em uma armadura grande demais. Mas ele era o Campeão da Floresta. E, pela primeira vez, ele se perguntou o que aquilo realmente significava.

    Fechou os olhos, não para se esconder, mas para buscar. Ignorou o cheiro de sangue e o som do rosnado, e se concentrou. Alcançou com sua mente a pedra fria e úmida sob seus pés, o musgo que crescia nas frestas, as raízes antigas que, mesmo ali, na escuridão sob a cidade, ainda se agarravam à terra. Ele sentiu uma conexão, um poder que não era seu, mas que respondia ao seu chamado.

    Seu corpo inteiro pesou, como se a gravidade aumentasse sua pressão sobre ele, o ar pareceu se tornar espesso em seus pulmões, o cansaço o atingiu como se tivesse corrido por horas. Quando abriu os olhos, eles tinham um brilho verde fraco.

    Licaão, o monstro, deu mais um passo em direção a Magno. Mas seu pé escorregou. O musgo sob suas patas, de repente, tornou-se liso como gelo. Raízes finas e fortes, como fios de aço, irromperam das rachaduras no chão de pedra, enrolando-se em seus tornozelos. A criatura urrou de frustração, sua atenção desviada por um instante, tentando se livrar das amarras da terra.

    Foi a única abertura que teriam. Teseu não pensou. Ele avançou. Seu alvo era o coração. Um golpe final e desesperado para acabar com o pesadelo. O brilho verde de seus olhos surgiu fracamente na lâmina.

    Ele correu, a espada em punho, ele sentiu como algo fluísse dele para ela, um grito silencioso em sua alma. Pulou, mas no último instante, Licaão se virou, sentindo a aproximação.

    Teseu, em seu avanço, tentou corrigir a trajetória, mas era tarde demais. Sua xiphos, que mirava o peito, errou o alvo por um palmo. A lâmina não encontrou carne macia, mas bateu com um CLANG agudo contra a runa no ombro da besta.

    O resultado não foi um corte, mas uma detonação. A runa se estilhaçou, e uma onda de choque de poder profano explodiu para fora, arremessando Teseu violentamente contra a parede do túnel. Ele caiu no chão, a dor em suas costelas quebradas o cegando por um instante, o gosto de sangue em sua boca.

    “Droga-Kahk- Eu errei-” Ele lamentou em sua mente, sentindo a dor tomar conta de seu corpo.

    Foi então que, para a surpresa de todos, Licaão, em uma agonia cega e sem mente, começou a se debater loucamente. A energia descontrolada o consumia. Suas garras e presas rasgavam as paredes de pedra, arrancando pedaços do teto, a estrutura antiga gemendo em protesto.

    — O túnel vai desabar! — Magno gritou, puxando Neo para mais perto.

    Pedras começaram a chover do teto. Hermes, recuperando a consciência a tempo de ver o caos, agarrou sua espada e correu na direção de Magno e Neo. — Saiam! Agora!

    Pedras começaram a chover do teto. O monstro, em seu frenesi de dor, continuou a atacar a rocha, e com um último e terrível rugido, uma seção inteira do teto desabou sobre ele, soterrando a criatura sob toneladas de pedra e terra.

    Um silêncio súbito e absoluto caiu sobre o túnel, quebrado apenas pelo som de pequenas pedras ainda rolando. A poeira era tão espessa que a chama da tocha de Magno mal conseguia perfurá-la.

    Hermes, que se recuperava do impacto contra a parede, levantou-se, tossindo. — Acabou…

    Ele olhou para Magno e Neo, que estavam encolhidos, mas seguros. Então, seus olhos varreram a escuridão empoeirada. Um pânico frio começou a subir por sua garganta.

    — Teseu? — ele chamou, a voz tensa.

    Não houve resposta. Apenas o silêncio.

    — Teseu! — Hermes gritou, a voz agora carregada de um pavor que ele não sentia há muito tempo, enquanto ele e Magno começavam a olhar desesperadamente ao redor, percebendo o vazio onde o garoto deveria estar.

    Nesse momento, eles viram a muralha de rocha recém-formada que bloqueava o túnel. 

    — Não. Não, não- — Hermes correu para a muralha de pedras, seu rosto se moldando no desespero. — Ele também não-

    Foi então que, do outro lado da barreira de pedra, a voz de Teseu, fraca e cheia de dor, finalmente respondeu.

    — Eu estou bem! — Ele tossiu, um som úmido e alarmante. — Sigam em frente! Salvem as crianças! Eu… eu encontrarei outro caminho!

    Hermes suspirou, aliviado, e então sorriu, o instinto gritando para que ele abrisse um caminho através da rocha. Quão forte esse menino tinha se tornado? E que poder foi aquele que ele tinha despertado do nada?

    — Magno, a canção, eu estou ouvindo! — A voz de Neo soou apavorada.

    Hermes virou-se na direção dos dois e viu Neo apontando. A direção contrária ao desmoronamento.

    Ele olhou para Magno, que o encarava com uma dor desesperada nos olhos. Não havia tempo.

    Com o maxilar cerrado em uma frustração amarga, Hermes fez a escolha.

    — Tome cuidado! Nos encontramos depois! — Hermes

    Deixando Teseu para trás, ele, Magno e Neo foram forçados a continuar, seguindo o eco fantasmagórico da canção que os levara até ali, mergulhando ainda mais fundo no coração da escuridão.

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