Capítulo 46 | A Aberração de Eros (1)
A escuridão era uma entidade viva, espremendo Teseu por todos os lados. Cada respiração pressionava dolorosamente seus pulmões cansados contra as lascas das costelas quebradas e a exaustão pelo uso de seu poder fazia seus membros pesarem como chumbo.
Ele estava sozinho, enterrado sob uma montanha, mas não estava perdido.
À sua frente, o pequeno vaga-lume pulsava com uma luz verde e suave, seu brilho um farol solitário na imensidão do negrume. Ele se movia com um propósito, guiando Teseu por fendas estreitas que arranhavam sua armadura e por túneis antigos onde o ar era parado e cheirava a poeira de séculos.
Ainda, a jornada que já era difícil por suas condições físicas, se tornou macabra no momento em que se separou de seus amigos.
Em seu caminho, o vaga-lume, por vezes, iluminava restos que a escuridão deveria ter mantido ocultos. Ele viu ossadas, espalhadas e quebradas com uma violência antinatural. Viu crânios de animais, e talvez de homens, retorcidos em formas impossíveis, como se tivessem gritado até seus ossos se partirem.
Em um canto, encontrou os restos de uma armadura de guarda, o bronze rasgado de dentro para fora, como se o homem que a vestia tivesse explodido. Algo terrível havia acontecido naqueles túneis.
O ar denso daquele lugar adentrou suas narinas com o cheiro pútrido da morte. O menino tossiu, sentiu a dor no peito aumentar. Parou por um instante para recuperar o fôlego.
Squick Squickkkkk
Foi então que ele ouviu. Um som, um chiado.
Não vinha da direção para onde o vaga-lume o guiava. Vinha de um túnel lateral, um som baixo, úmido. Um misto de arranhar e um choro fraco, patético.
O vaga-lume parou, pairando no ar, como se o esperasse. O chamado em sua mente o impelia para frente. Mas sua curiosidade, agora tingida de um pavor mórbido, o puxava para o lado. Desobedecendo ao seu guia silencioso, Teseu se virou e caminhou em direção ao som, a xiphos em punho.
Ele contornou uma curva, e o cheiro o atingiu primeiro. Um odor azedo de doença e carne infectada. Ele ergueu a espada, usando o fraco reflexo da luz do vaga-lume em sua lâmina para iluminar o canto escuro.
A primeira coisa que viu foi um olho. Um único olho, grande, leitoso e cheio de uma agonia sem fim, que o encarou de uma massa disforme de pelos cinzentos. Então, sua mente processou o resto. Eram ratos. Quatro deles, ou o que um dia foram quatro ratos. Seus corpos haviam sido fundidos, a carne se unindo em uma única entidade pulsante e grotesca. Múltiplas pernas se debatiam debilmente contra o chão de pedra, tentando arrastar a massa disforme para frente. Uma cauda se contorcia em um espasmo, enquanto outra jazia imóvel, já necrosada. Da confusão de pelos e ossos, três cabeças emergiam em ângulos impossíveis, duas delas com as mandíbulas travadas em um grito silencioso. A quarta, a que o observava com seu olho solitário, soltou o gemido que o havia atraído, um som que não era de ameaça, mas de pura e miserável súplica.
O horror daquela profanidade, daquela união forçada e doentia, subiu pela garganta de Teseu. Ele se virou e vomitou, o conteúdo ralo de seu estômago se espalhando no chão imundo. Ele tremia, não de medo, mas de uma repulsa que abalava sua alma. Tamanho o asco foi que o fez esquecer por um instante da dor que sentia no peito.

Ofegante, ele olhou novamente para a aberração patética que sofria no canto do túnel, e uma única pergunta, cheia de um pavor recém-descoberto, escapou de seus lábios em um sussurro.
— O que… o que é isso?
…………
— Magnífico! Simplesmente magnífico!
A voz calma e divertida de Kyros ecoou pela câmara, um som obsceno em meio ao coro de choro das crianças, que agora se encolhiam umas nas outras ao verem seu verdadeiro captor. Ele aplaudia lentamente, o som de suas palmas estalando no silêncio tenso, um dramaturgo satisfeito com a performance de seus atores.
— O reencontro do pai com seus filhos perdidos… o desespero, a esperança… que cena! Eu não poderia ter escrito melhor. — Ele parou, seus olhos passando por um Magno paralisado e um Neo aterrorizado, antes de finalmente se fixarem em Hermes. Um sorriso largo e genuinamente animado se espalhou por seu rosto.
Atrás das grades de ferro, a alegria de Magno se transformou em uma máscara de horror e fúria.
— SEU DESGRAÇADO! ABRA ISSO! — ele rugiu, agarrando e sacudindo as barras de ferro com uma força desesperada. O metal grosso e enferrujado nem sequer tremeu. — LINO! ELARA! FIQUEM LONGE DELE!
As crianças, ao ouvirem a voz de seu protetor, começaram a chorar mais alto, estendendo as mãos pequenas entre as grades. — Magno! Tira a gente daqui! Por favor!
Kyros ignorou o pandemônio com um sorriso de desprezo, como se o desespero de Magno fosse apenas o zumbido de um inseto. Seus olhos passaram pelas crianças e se fixaram em Hermes, o verdadeiro prêmio. — E o convidado de honra! Finalmente. Estava me perguntando quando você chegaria. A peça não pode começar sem seu protagonista. Sejam bem-vindos ao meu santuário.
Hermes, por sua vez, não gritava. Sua raiva era uma lâmina fria. Ele se ergueu, a xiphos firme em sua mão, o alvo da missão que o guiara por aqueles túneis agora tinha um rosto.
— Você é apenas um peão em um jogo que não compreende, mortal — rosnou Hermes, a voz um trovão baixo e contido.
Kyros inclinou a cabeça, uma expressão de curiosidade divertida. — Um peão? Oh, creio que você me subestima. Eu sou o diretor desta peça.
— Você não é nada! — Hermes avançou até as grades, seus olhos dourados brilhando na penumbra. — É apenas o fantoche de uma deusa ciumenta e entediada! Diga-me, Arconte. O que Ártemis lhe prometeu por esta atrocidade?
O Arconte franziu a testa. A animação em seu rosto deu lugar a uma genuína e quase cômica confusão.
— Ártemis? — ele repetiu o nome, testando-o na língua como se fosse uma palavra estrangeira. — A Donzela da Caça? A virgem mal-humorada com seu arco e flechas? O que, em nome do Tártaro, ela teria a ver com este grandioso trabalho?
A confusão de Kyros foi tão autêntica, tão desprovida de qualquer engano, que desarmou completamente a fúria de Hermes. A certeza que era a fundação de sua raiva se estilhaçou, deixando-o por um instante perdido, desnorteado. Se não era Ártemis… então quem? O que era aquilo tudo?
Kyros riu, uma risada genuína e divertida, ao ver a hesitação no rosto do deus caído. — Ah, eu entendo. O cão de caça na coleira. Você achou que ela era a dona. Que comovente. Não, não. A Dama da Floresta não tem a visão, nem a ambição para uma obra desta magnitude. Ela se contenta com seus bosques e suas bestas. Meu… patrono… tem planos muito, muito maiores.
— SOLTE ELES, SEU MONSTRO! — Magno gritou, chutando as grades em uma fúria impotente.
Kyros suspirou, irritado com a interrupção. Ele caminhou lentamente até o grupo de crianças.
Neo tomou a frente delas, o rosto suando de medo mas tingido com a face da coragem. O menino ergueu a pequena faca na direção do Arconte, a segurando com ambas as mãos. Elas tremiam. Seus dentes rangidos o faziam parecer uma fera selvagem. Um filhote de tigre.
Os outros se amontoaram ainda mais contra as grades, tentando se manter atrás do menino. Kyros não se abalou.
— NEO- NÃO! — Magno gritou, mas era tarde demais.
Neo esperou até que o nobre estivesse perto o suficiente e avançou com o braço estendido, pronto para apunhalá-lo. Kyros segurou sua mão como se nada fosse e pressionou o pulso.
— Gah- — O menino gemeu com a dor.
A faca caiu no chão ao lado. Neo se debatia. Kyros puxou da manga de sua túnica um punhal e pôs a mão sobre a cabeça do garoto. O menino congelou de terror. — Silêncio, por favor. O pai está tentando ter uma conversa de adultos. Não queremos que as crianças se machuquem… ainda.
Magno parou, o rosto uma máscara de ódio e pavor, forçado a assistir em silêncio.
— Onde eu estava? — Kyros continuou, acariciando o cabelo de Neo de forma repugnante. — Ah, sim. Tudo isso… — ele gesticulou para as crianças, para o templo, para Hermes — …começou com você, sabia? Naquele dia, naquela cratera. Quando meu capitão, Íxion, o encontrou, quebrado e coberto de poeira, eu vi apenas um escravo de boa aparência. Uma peça rara para minha coleção. Mas eu estava cego. Não vi o que você realmente era.
Ele parou, virando-se para encarar Hermes, seus olhos brilhando com o fervor de um profeta.
— Mas ela viu. Na noite em que retornei a Therma, após vendê-lo para aquele ogro imundo, Gérion, eu tive uma visita. Uma figura, sombria como a própria noite, surgiu em meus aposentos. Ela não tinha rosto, apenas um capuz e uma voz que era o eco de mil sussurros. E ela… ela me mostrou o futuro.
A voz de Kyros era um sussurro hipnótico, cheio do fervor de um convertido. Ele soltou Neo, que recuou tremendo para junto das outras crianças. O Arconte agora se dirigia apenas a Hermes, o único jogador em seu tabuleiro que importava.
— Um futuro de ordem. De poder. Um cosmos refeito, purificado da mesquinhez dos seus deuses e da fraqueza dos mortais. E no centro de tudo, um novo soberano. Eu.
Hermes o encarou através das grades, a mente girando para processar a enormidade daquela revelação. Não se tratava de uma vingança pessoal de Ártemis. Era uma conspiração de escala cósmica.
— E qual era o preço por esse futuro glorioso? — Hermes perguntou, a voz fria, tentando encontrar a lógica na loucura. — O que essa sombra exigiu de você?
— O preço? — Kyros sorriu. — A condição era simples. Uma profecia, que ela me sussurrou naquela noite, dizia que um escravo recém-chegado, um homem de cabelo branco e sangue antigo ligaria o meu destino a uma segunda moeda. Meu único trabalho seria encontrá-lo e fazer cumprir o meu propósito.
Os olhos do deus caído se arregalaram. Um arrepio percorreu sua espinha antes que ele fosse capaz de enunciar o seu pavor.
— Se-segunda?
A dúvida em sua voz foi como música para os ouvidos do lorde.
Vendo o choque no rosto do deus caído, Kyros riu, saboreando sua vitória intelectual. Lentamente, de forma quase ritualística, ele retirou a luva de couro de sua mão direita. Então, levou a mão ao peito, por dentro de sua túnica opulenta. As crianças se encolheram, e Magno prendeu a respiração.
Quando a mão de Kyros emergiu, ela segurava uma moeda. Não era escura como a de Hermes. Era feita de um metal avermelhado, como cobre polido, e pulsava com uma luz carmesim doentia, quente e nauseantemente convidativa. Gravado em sua superfície, havia o símbolo de um arco e uma flecha, entrelaçados.

Hermes deu um passo para trás, soltando a espada na cintura com um olhar pavoroso.
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