Capítulo 47 | O Lamento da Carne
Kyros deleitava-se no horror. Com os braços abertos, como um maestro diante de sua orquestra, ele admirava sua obra-prima.
— Contemplem! — sua voz exultante ecoou pela câmara profana. — A pureza do amor infantil, refinada em sua forma mais verdadeira! Eu o chamo de… o Hecatônquiro de Eros!
A monstruosidade se moveu sobre o altar, um som úmido de carne se arrastando sobre a pedra negra.
Não era uma criatura, era uma escultura viva de agonia. Braços se estendiam em ângulos impossíveis, dedos se contraíam e se abriam. Torsos se fundiam em uma massa disforme, e rostos, os rostos das crianças de Therma, emergiam da carne como máscaras em um pesadelo, os olhos abertos e vazios, as bocas presas em gritos mudos pela própria musculatura esticada da monstruosidade.
Magno estava de joelhos no chão de mármore, a poucos metros da criatura. Ele não ouviu as palavras de Kyros. Não via mais nada.
Seus olhos estavam fixos em um único ponto da massa de carne: um tufo de cabelo escuro ao lado de uma pequena bandana vermelha, quase completamente engolida pela carne de outra criança. Neo.
O som que saiu da boca de Magno não foi um grito, mas uma lamúria desesperada, engasgada, o som de um homem se afogando em sua própria alma. Ele estava congelado, catatônico, forçado a testemunhar o inferno que sua família havia se tornado.
Do outro lado da sala, perto da passagem por onde entrara, Teseu se apoiou na parede, a dor em seus dedos quebrados uma agonia aguda e sufocante. Uma onda de náusea o dominou, e ele vomitou, o esforço enviou uma dor excruciante por suas costelas.
Estava incapacitado, um espectador forçado de um horror que ele ajudara, sem querer, a tornar “imperfeito”.
O Hecatônquiro se moveu. Seu primeiro ataque não foi direcionado a uma ameaça, mas ao alvo mais patético: o homem de joelhos. Um de seus múltiplos braços, um membro disforme e grotesco, ergueu-se, projetando uma sombra sobre Magno.
O ladrão não reagiu, seu olhar congelado na monstruosidade mas sua mente não respondia aos sentidos.
Foi Hermes quem se moveu. Com a lâmina partida de sua xiphos em mãos, ele se jogou na frente de Magno no último instante. Ele não tentou aparar o golpe; sabia que era inútil. Em vez disso, ele usou o próprio corpo para empurrar Magno para o lado. Os dois rolaram pelo chão de mármore no exato momento em que o punho de carne da criatura desceu, esmagando o lugar onde Magno estivera. O chão de mármore se estilhaçou, o som da pedra se partindo ecoando pela câmara.
A aberração soltou um som, um coro de vozes infantis, distorcidas e cheias de dor.
— Me… ajuda… — gemeu a voz de uma menina.
— Dor… Dói… Muito… — sussurrou a voz de um menino.
Cada palavra era uma facada no coração de Magno, que agora olhava para o chão da cripta com olhos vazios.
Hermes levantou, apertou a espada quebrada em punho. Ele viu Teseu, pálido e inválido, incapaz de lutar. Viu Magno, perdido em um inferno particular. Estava sozinho.
Ele olhou para a monstruosidade, para as faces de sofrimento presas nela, o coro de dor e as lamúrias dos miseráveis. Kyros sorria e gritava suas loucuras dramáticas de um cultista insano. Ele agitava a moeda em sua mão com fervor clérigo.
Uma certeza nefasta se apoderou de sua mente quando ele cerrou os dentes. Não havia mais resgate. Não havia cura. Havia apenas a misericórdia do fim.
Hermes avançou. A personificação de uma clemência fúnebre. A espada quebrada em sua mão era uma extensão de sua vontade, uma vontade quebrada e trágica.
A aberração se virou para ele, seus múltiplos membros se movendo em uma cacofonia descoordenada de violência. Ele se esquivou sob um braço que poderia esmagar pedra e usou a ponta afiada de sua lâmina partida para tentar rasgar um dos tendões que movia um dos membros maiores da criatura.
O monstro urrou, uma sinfonia de dor de dezenas de vozes infantis.
— PARA! — gritou a voz de uma menina de dentro da massa de carne.
— Por… favor… — sussurrou a voz de um menino.
O golpe, no entanto, não pareceu produzir efeito algum. O tendão que parecia danificado com o corte pareceu se regenerar com uma transposição das peles das crianças que se esticavam em agonia.
Os rostos das crianças se deformaram com a dor. Lágrimas de sangue desceram dos olhos daquelas que ainda os tinham em meio à disformidade cárnea que haviam se tornado.
Hermes arregalou os olhos. Era mais cruel do que ele imaginava.
O Hecatônquiro chicoteou outro braço em um arco devastador, forçando Hermes a rolar para o lado. O membro se chocou contra a parede, arrancando um pedaço do mármore e fazendo a câmara inteira tremer. Estilhaços de pedra voaram, e um deles atingiu o rosto de Magno, abrindo um corte em sua bochecha. O ladrão nem piscou, seus olhos ainda vazios, fixos na criatura.
Do outro lado da sala, a cena de violência pareceu despertar Teseu de seu torpor de dor. Ele viu a fúria nos olhos de Hermes, a forma como ele atacava a criatura não para subjugá-la, mas para destruí-la. Viu a intenção mortal em cada golpe.
— NÃO! HERMES, PARE! — o grito de Teseu ecoou, uma súplica desesperada. — TEM QUE HAVER OUTRO JEITO! NÓS PODEMOS SALVÁ-LOS!
Ele tentou se levantar, seus joelhos vacilaram. Tentou usar as mãos para se apoiar na parede, mas a dor de seus dedos quebrados o impediu. Rangeu os dentes em agonia. Seus olhos voltaram-se para Hermes mais uma vez, erguendo sua lâmina bastarda para atingir, em vão, um dos braços da criatura.
“Não… Nesse ritmo ele vai-” O garoto se desesperou. Sua mente viajou em busca de uma solução, algo que pudesse fazer para salvar aquelas crianças.
Ele fechou os olhos, tentando controlar a respiração. Tentou ativar mais uma vez aquela sensação, aquele calor interno que o fazia sentir poderoso. Lembrou-se da Dríade, da sensação de tocá-la, do poder das vinhas. Seu corpo se aqueceu, e então, queimou. Seus órgãos falharam, ele vomitou um monte de sangue e caiu com as costas na parede, seus olhos revirados com a dor.

Hermes não ouviu, ou não quis ouvir. O ódio e a misericórdia se fundiam em sua mente.
— Pare… Dor… Dói — O coro de agonia pronunciou um golpe.
Ele se esquivou por pouco de mais um ataque, a criatura destruiu o altar de pedra negra em sua fúria cega. E então, numa velocidade que traía o Hecatônquiro moveu seu braço deformado em um arco horizontal, acertando as costas de Hermes com uma força titânica.
O rapaz voou contra uma das pilastras que rachou com a violência do impacto.
Esforçou-se para se levantar, mas pôde apenas se manter sentado, seus braços falharam e sua boca se abriu involuntariamente dando passagem a um mar de sangue de seus ferimentos internos.
Kyros riu, a Moeda de Eros brilhando em sua mão enquanto ele se deleitava com o sofrimento e a destruição.
— HAHAHAHA- Isso seu desgraçado! Pereça e cumpra o seu papel em minha ascensão! — Kyros gritou numa fúria orgulhosa e excêntrica.
A aberração encurralou Hermes naquele estado. Ele olhou para cima, para a massa de membros e rostos que se aproximava para esmagá-lo.
Hermes respirava profusamente.
Ele estava ferido, exausto, sua arma era um caco, e seu corpo mortal havia atingido o limite. A frustração, a impotência… era insuportável.
Encurralado, ele viu de canto Kyros acariciando a moeda, controlando a criatura com um riso alucinado. Uma ideia, nascida do mais puro desespero, se formou.
— Que seja — ele sussurrou para si mesmo, o hálito formando uma nuvem no ar frio.
Lentamente, com a aberração se aproximando para o golpe final, ele enfiou a mão em sua túnica.
“Se eu não posso salvá-los com minha força atual…”, ele pensou, seus dedos se fechando em torno do metal frio e profano.
Ele puxou a Moeda de Tânatos, o mundo pareceu desacelerar em sua volta. O metal era mais frio do que qualquer gelo, um frio que não vinha do mundo, mas de um vazio absoluto. No instante em que sua vontade se impôs sobre ela, buscando o poder que sentia adormecido, a moeda respondeu. E o que veio não foi força, mas um coro de ecos. Ele sentiu. Sentiu a fúria bestial de Gérion em seu momento final, o pavor avarento de Dídimo e, mais fracas, as centenas de outras almas que a moeda havia consumido ao longo dos séculos. Não eram memórias; eram as cicatrizes de suas essências, presas em agonia naquele metal escuro.
Aquilo não era um artefato. Era uma prisão. Uma tumba profana que roubava os mortos, alimentando-se da energia de suas mortes. Para usar aquele poder, ele teria que mergulhar naquele oceano de sofrimento, tornar-se um com aquela profanidade.
Ele viu de canto a imagem do monstro se aproximando em sua fúria ordenada e em uma ação que desafiava as noções de um combatente sano, fechou os olhos.
No instante em que sua vontade se impôs sobre a moeda, a transformação começou. A dor foi imediata, uma agonia que superava qualquer ferimento físico. Um frio antinatural emanou da moeda, subindo por seu braço, suas veias se tornando visivelmente negras sob a pele. Seus olhos, antes opacos pela exaustão, explodiram em um brilho dourado puro, a luz do Olimpo em meio ao inferno.
E em sua alma, ele ouviu, clara e melancólica, a nota solitária de uma lira.

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