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    O mundo de Hermes se desfez. O som da nota solitária da lira foi o prelúdio de uma agonia que superava qualquer ferimento físico. A moeda em sua mão não era um artefato, mas sim uma porta, e ao abri-la, ele se afogou no que havia do outro lado.

    O frio foi a primeira coisa. Um frio antinatural que não vinha do ar, mas de dentro, subindo por seu braço como o veneno de uma serpente do Cócito. Suas veias, visíveis sob a pele pálida, se tornaram negras, não como tinta, mas como a ausência de luz, uma teia de escuridão se espalhando por seu corpo. E com o frio, veio a dor. Era como se areia quente e áspera estivesse sendo forçada por suas artérias, uma abrasão interna que o fazia querer arrancar a própria pele. 

    Cada batida de seu coração era um martelo empurrando aquele tormento para mais perto de sua alma.

    Mas a dor física era apenas o invólucro. O verdadeiro horror estava nas vozes. 

    Ele as ouviu, não com os ouvidos, mas com a mente. Um coro de lamentos, as almas presas naquele metal escuro gritando em um uníssono de sofrimento.

    Ele sentiu a fúria bestial e a humilhação de Gérion em seu momento final, o pavor avarento de Dídimo ao ser arrastado para a escuridão. E sentiu outras, centenas de outras, ecos de vidas roubadas, de mortes profanadas, cada uma uma cicatriz na alma daquela prisão. Para usar aquele poder, ele precisava mergulhar naquele oceano de miséria.

    Seus olhos, antes opacos pela exaustão, explodiram em um brilho dourado puro, a luz do Olimpo em meio ao inferno. Seu corpo, que estava sentado e quebrado, se enrijeceu, a dor o forçando a se erguer, não em um ato de força, mas como um fantoche cujos fios eram puxados por uma força terrível.

    Do outro lado da câmara, Kyros, que saboreava a iminente vitória, viu a transformação. Seu sorriso maníaco vacilou, a diversão em seus olhos sendo substituída por um choque puro, que rapidamente se transformou em uma cobiça faminta e febril.

    — A outra… — ele sussurrou para si mesmo, os olhos fixos na moeda que agora parecia queimar na mão de Hermes. — Então ele também sabe usar.

    O jogo havia mudado. A presa havia revelado presas que ele não previra. Com um movimento rápido e furtivo, o Arconte recuou para as sombras mais profundas perto de seu trono de obsidiana.

    A exuberância dera lugar à cautela. Não podia correr riscos agora, não quando seu plano estava tão próximo de se concretizar.

    Teseu, caído e impotente, assistiu à cena com um horror que gelou seu sangue. Ele viu a dor no rosto de Hermes, uma agonia que parecia quebrar o deus caído de dentro para fora. Viu as veias negras se espalhando, a luz dourada em seus olhos parecendo ardendo não com graça divina mas com uma agonia flamejante. Aquilo podia realmente ser chamado de salvação?

    Não. Era outra abominação. Algo que contrariava as leis naturais, um poder que consumia o portador.

    Magno não viu nada. De joelhos, ele permanecia catatônico, o rosto banhado em lágrimas silenciosas, os lábios se movendo, repetindo os nomes das crianças em murmúrios incompreensíveis, completamente alheio à tempestade de poder cósmico que se formava a poucos metros dele.

    O Hecatônquiro de Eros, sentindo a nova ameaça, a nova fonte de poder que rivalizava com a de seu mestre, virou-se. Com um rugido que era um coro de centenas de vozes infantis distorcidas pela dor, ele atacou. Um punho de carne e ossos, do tamanho de um pilar, desceu sobre Hermes.

    O mundo desacelerou.

    Para Hermes, o punho da criatura se movia através de um mel espesso. Ele viu cada detalhe do ataque, cada músculo se contraindo. E, pela primeira vez em meses, seu corpo respondeu com a velocidade de um pensamento. 

    Ele se tornou um borrão esverdeado e negro, deslizando para o lado. O punho da aberração atingiu o lugar onde ele estava, e o chão de mármore explodiu em uma cratera de poeira e estilhaços.

    Ele estava de pé, a salvo. O poder era inebriante, uma memória de sua antiga glória. Mas seu corpo mortal discordava. Após o desvio, suas pernas vacilaram. Ele tropeçou, quase caindo, a coordenação de seus músculos traída por uma velocidade que sua carne não fora feita para suportar. 

    A areia em suas veias queimou com o esforço, e os lamentos em sua mente se tornaram um grito ensurdecedor. Ele estava de pé, mas não tinha certeza de por quanto tempo.

    A areia quente que ardia em suas veias era um lembrete constante do poder profano que ele agora empunhava. Hermes se ergueu do chão, o tropeço inicial uma lição dura e rápida: a velocidade dos deuses não era algo que um corpo mortal pudesse comandar sem consequências. Ele precisava se adaptar, fundir a memória de sua divindade com a realidade frágil de sua carne.

    O Hecatônquiro avançou novamente, um maremoto de membros e agonia. Desta vez, Hermes estava preparado. Ele não apenas se esquivou; ele dançou com a morte. O mundo se tornou um borrão, mas para ele, cada movimento do monstro era claro, telegrafado. Ele se tornou um fantasma, movendo-se nas brechas da fúria da criatura.

    Sua espada quebrada era uma arma imperfeita, mas em suas mãos, tornou-se um instrumento de precisão letal. Com um flash de movimento, ele passou por baixo de um braço que descia para esmagá-lo e, com um giro, sua lâmina rasgou os tendões de uma das pernas disformes da criatura.

    O monstro urrou em uma reverberação de vozes agudas e cheias de uma dor que preencheu a câmara.

    Hermes recuou, o som o atingindo com mais força do que qualquer golpe físico. Ele olhou para a criatura e viu o rosto de uma menina, com os olhos arregalados de agonia, na coxa que ele acabara de cortar.

    Do outro lado da sala, Teseu, apoiado em um pilar quebrado, assistia à cena com um horror que o paralisava. Ele via a eficácia dos ataques de Hermes, a forma como o deus caído, agora uma figura de luz dourada e veias negras, se movia como uma força da natureza. Mas ele não via um herói lutando contra um monstro. Ele ouvia os gritos. Via os rostos.

    “Ele está matando eles…”, o pensamento era uma tortura. “Cada corte… ele os está ferindo. São eles… Lino, Elara, Neo… eles ainda estão lá dentro.” Ele queria gritar para Hermes parar, para encontrar outro jeito, mas seu corpo o traía, a fraqueza o prendendo ao chão, forçando-o a ser uma testemunha silenciosa daquele massacre misericordioso.

    Kyros, das sombras, observava com uma intensidade febril, a Moeda de Eros pulsando em sua mão, forçando sua criação a continuar a luta.

    A aberração, ignorando a dor, virou-se novamente para Hermes. O corte profundo em sua perna começou a se fechar de uma forma grotesca. A carne ao redor da ferida se contorceu, e a pele do torso de uma criança menor, fundida à perna, esticou-se de forma antinatural, como um tecido vivo, cobrindo o rasgo. O rosto da criança se deformou em uma máscara de dor silenciosa.

    Hermes viu a regeneração e entendeu. Ferimentos superficiais eram inúteis. Ele precisava causar um dano massivo, rápido, antes que seu próprio corpo cedesse.

    A batalha se tornou um borrão de violência. Hermes forçou sua velocidade, e a cada avanço, a sensação arenosa em suas veias queimava com mais intensidade. 

    Os lamentos dos mortos em sua mente se tornaram um rugido, uma estática de agonia que ameaçava engolir seus próprios pensamentos. Ele cortou os dedos de uma das mãos da criatura, e os gritos das crianças o assaltaram. Ele abriu um talho no ombro do monstro, e os lamentos em sua cabeça o fizeram vacilar.

    Ele estava lutando em duas frentes: contra o monstro de carne à sua frente e contra o monstro de ecos dentro de si. A exaustão, mais profunda e mais rápida do que ele antecipara, começou a cobrar seu preço. 

    Seus movimentos, antes fluidos, tornaram-se mais desesperados. A velocidade divina, que deveria ser sua maior arma, estava se tornando sua maldição, destruindo seu corpo mortal a cada uso. Ele estava se esvaindo, a chama de seu poder profano queimando o combustível de sua própria vida. E ele sabia que não tinha muito tempo.

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